…Cenário – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Luzes sombreadas. E pôr mais sombras quase aladas. Barulho de mar. Cheiro forte e azedo. Estou lendo a terceira página do texto.

O Cenário.

O Cenário é um salão cercado do barulho de mar. De poucas janelas. Apenas uma porta que range quando sopra a brisa. É uma brisa que desesperadamente quer sair. Agora o texto.

Um anjo o primeiro a chegar. Está molhado. Despe o sobretudo. Tira o chapéu. Senta-se entre duas mulheres. A da direita faz um jogo de sombras com as mãos, aproveitando a luz do lampião dependurado no fim da sala. Criando figuras de aves, pequenos lagartos, marrons de olhos verdes. A mulher sentada à sua esquerda puxa os cílios e deposita-os sobre um pouco de umidade saída de uma garrafa de Vodka gelada. Com eles constrói uma bússola cujo norte magnético é a porta por onde entram os anjos.

Eu estou de pé sob um abajur lilás repleto do desenho de peixinhos que gira aleatoriamente sem sair do lugar. Mas o cheiro de mar e o pitiú dos peixes inundam o salão. Alguém falou em dançar. Pedem que eu cante. Tímida e achando-me mal vestida dentro de um vestido desbotado, e um par de sandálias surradas, e sujas de terra, que mal esconde as unhas roídas por mim e pelo tempo. Hesito!

Agora já são oito os anjos. Começam a bater palmas num ritmo que me lembra os cânticos das mulheres do Marabaixo de Macapá, do Sirimbo do Pará, do Batuque das ilhas Bailique e Cametá… Coisas de garras, dentes e presas sedentas de sangue e sal. Não parecem anjos, parecem Demos. Eu coberta de trapos, fedida de suor, suja de óleo, de frituras e cheia do cheiro de sabão e detergentes, sinto-me desejada e feliz.

Eu era um mapa de mãos e beijos, dos bêbados daquele cais até aquele momento. Mas ali não estavam eles com seus delírios e vômitos, e espasmos de gozos incompletos. Estavam os anjos sentados em círculos nas cadeiras amareladas, batendo as mãos e olhando-me como os índios olham um totem sagrado. Não em busca de fé. Em busca do pecado.

Dancei em círculos, em retas e oblíquas. Redescobri as paralelas já traçadas em Abril de 1968. Paralelas entrelaçadas sob o impacto dos estudantes em Paris, e a falsa moral que provocou a detenção por maus costumes de um marujo que brevemente me disse amar, e que depois se deixou matar de fome e sede. Não muito longe daqui, no fim da rua Treze de Maio, atrás do Mercado Ver o Peso, outro amigo que queria que aqui estivesse passou a vida, atormentado, de dia pelo dia, à noite pelos ingleses com beijos e Oks. U’a manhã estrangulou-se não sem antes se depilar toda. Deixou de herança o par de sandálias que eu uso agora.

Um pouco depois, eu anoiteci várias vezes, ainda sob o impacto de sua morte, sob as mãos finas de unhas bem tratadas dos ingleses quando vieram me ver ali, pela primeira vez. Deflorei os ouvidos. Depois deflorei o umbigo. Por último deflorei o passado, e o presente, e o futuro. Agora com cinquenta e oito anos. Já não tenho nada a oferecer. A boca lívida. Os olhos esmaecidos e turvos. A pele eternamente cheia de um cheiro de peixe podre e as tatuagens do tempo criando manchas e sinais.

Por isso dancei e danço. Dancei até que um por um, os anjos, após abusando de mim, repetidas vezes, foram saindo. O que garimparam em mim com suas línguas mornas e seus cheiros de jasmins. Não sei. O abajur deixou de rodar em torno de si mesmo, matando os peixes afogados. As duas mulheres deixaram de brincar com suas sombras na parede e com seus cílios sobre a mesa. Beijaram-se e saíram, uma arqueada, puxando da perna, a outra anã, equilibrando-se sobre um grande salto alto. Caminharam então, cada uma para o seu lado.

Eu parei de dançar e fui até a parede, de onde arranquei a folhinha do calendário e com ela fiz um aviãozinho que atirei a esmo. Chegava um novo dia. E com ele a solidão. Estava novamente sozinha. Os cotovelos sobre a mesa. Com ela fiz um aviãozinho e atirei ao chão sobre os meus pés. Meus pés estremeceram de frio dentro da poça de água criada pela garrafa de Vodka agora também vazia como eu. Saí dali e pus fogo no salão. Ia matar-me queimada, mas lembrei dos anjos. Corri gritando por socorro desesperada, nua e descalça em direção ao cais.

CONCLUSÃO DE ROTEIRO: Estabelecer semelhanças entre o sal e o sol. Iluminar a lua e adoçar o amargo. Maquiar bem a anã e a mulher alta, arqueada. Passar a ferro as asas dos anjos (os da primeira fila). Deixar como está os demais. Obs.: Datilografar em espaço dois. Não. Espaço um. Vamos valorizar no texto a solidão. E por fim. Não pôr THE END. Pôr FIM.

Mal entendido – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Nos dávamos bem. Sexualmente, então, nos dávamos muitíssimo bem. Ficávamos trocando afagos e, depois das transas, longos papos. Roberta gostava de falar dos machos que passaram por sua cama. Sem fazer comparações, é claro. Eu falava das minhas mulheres também, mas ela sabia colocar mais entusiasmo nas suas histórias de amor e sexo, o que tornava sua vida bem mais interessante.

Roberta era legal. Se tivéssemos ficado juntos, hoje eu estaria morando no seu apartamento, no oitavo andar de um edifício mais ou menos chique, latinha de cerveja na mão, assistindo a algum programa vespertino babaca, sem muito o que fazer a não ser esperar a chegada de Roberta para darmos início a mais umas sessões de sexo. Algo bem parecido com felicidade. Pensei até em casamento, papel passado, aliança, champanhe e tudo o mais. O que fez as coisas entre nós desandarem foi a amiga que se hospedou no apartamento de Roberta.

*** *** ***

Quando eu ia ao apê de Roberta e Jane estava só minha libido disparava, passava do oitavo andar e ia muito além. Jane estava sempre fazendo ginástica. Meu Deus do céu! Quantas fantasias Jane despertava em mim, ela muito gostosa enfiada num microscópico short azul, malhando, louca pra deixar o corpo ainda mais delicioso.

Certa vez, cheguei ao apartamento numa hora em que Roberta não estava. Jane abriu a porta, tinha acabado de malhar, estava salgadinha de suor. Usava apenas uma camiseta, por baixo só a calcinha e a coisa maravilhosa que ela era. Ligou a televisão, dizendo que Roberta não demoraria. Imagina! Eu sozinho com aquela mulher! Ela andando pra lá e pra cá, com a ponta dos seios tentando romper a fina malha da camiseta.

Jane sentou no sofá e passou a cruzar as pernas a todo momento, comentando displicentemente o bárbaro crime que o telejornal tentava explicar. As fantasias rolavam na minha cabeça. Eu só conseguia me ver passando, muito lentamente a língua por toda a extensão do corpo nu de Jane. Não ficava um milímetro sequer daquele corpo sem sentir o calor da minha língua, que tinha calma suficiente para esperar a parte mais doce e procurar a parte mais salgada.

Quando minhas fantasias já cavalgavam furiosos cavalos alados, tentando dissipar o nevoeiro que me envolvia, me levantei pra ir embora. Jane barrou minha passagem, a ponta dos seios quase me tocando: “A Roberta vai chegar a qualquer momento. Espera um pouco. Fica aí, vendo televisão. Eu vou tomar um banho”.

Obedeci. Fiquei vendo TV e, através da tela, como se fosse um filme e com a trilha sonora do ruído do jato d’água do chuveiro, vi Jane tomando banho. Só que não era banho de chuveiro, mas de uma cachoeira que despencava de uma altura infinita, em câmera lenta, indo cair em cima de Jane.

Imaginei estar me aproximando da televisão para ver aquele espetáculo mais de perto, mas, na realidade, eu me dirigia ao banheiro. Abri a porta e vi Jane nua, majestosa, a água escorrendo por seus pelos. Ela não fez qualquer gesto de vergonha, parecia que já esperava a minha chegada.

*** *** ***

Nos deitamos na cama onde eu e Roberta tantas vezes realizamos nossos jogos eróticos. Jane só queria ficar deitada, abraçada comigo, nada mais. Ela sabia que não era o momento e eu não tentei nada, só a envolvi em meus braços. Eu queria mais, queria tudo, mas aceitei a situação.

Claro que Roberta não acreditou, ninguém acreditaria. No momento em que abriu a porta do quarto, sua cabeça só conseguiu registrar a imagem de dois corpos nus abraçados. Seu namorado e sua amiga deitados na sua cama. Que droga! Havíamos pegado no sono.

Me senti largado no vazio da cama quando Roberta, num golpe preciso, me cravou uma tesoura no pescoço. A única coisa que consegui divisar, antes de perder a consciência, em meio a tanto sangue, foi Roberta abrir a gaveta da cômoda, tirar um revólver calibre 38, apontar para Jane e disparar um tiro, dois tiros, três tiros.

Gigantes – Conto firmeza de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu brincava com bolhas de sabão quando vieram os gigantes, cada um deles trazia outros pequenos gigantes, que pensei serem seus filhos, mas soube mais tarde que faziam parte de um circo, em que as pessoas nasciam sempre com mais de cinco metros.

Eu vi quando um deles menorzinho, mas muito, muito grande, quebrou a torre da igreja e derrubou o sino que nos chamava para a missa nos dias de Domingo. O sino era verde por dentro, cheio de limo e espalhou este verde por muitos lugares.

Minha mãe assustou-se com a chegada dos grandes gigantes, não catou mais feijão, não se demorou mais indo ao poço apanhar água, nem foi mais a casa de Dona Maricota, que era pertinho então eu pensei que estavam de mal. O cego Faustino que costumava sacudir a cuia com moedas cantarolando gemidos e quase uivos, agora pedia com um mexer de lábios. Tinha medo de com os seus lamentos, acordar os gigantes.

Eles ficavam na frente da televisão, riam e roíam as unhas e mexiam com as mãos entre os cabelos, depois atiravam no chão uns piolhões que possuíam o tamanho do carro de boi de Seu Jaime. Os piolhões corriam e começavam a cavar ate desaparecem entre a terra que ficava fofa e amontoada formando um morro, que depois subíamos. Era tal como escalar uma montanha.

Os gigantes apesar do fedor que exalavam, fomos nos acostumando com eles. Muitas vezes eu vi Seu Faustino entre os dedos dos seus pés, catando moedas. Ate mesmo os cavalos dos que apeavam a frente da venda de Quele, pastavam encostados aos pelos de suas pernas. Eu voltei a brincar com as bolhas de sabão e mamãe voltou a atravessar dois quintais para ir a prosa com Maricota, bastava entardecer.

Eu já tecia paneiros que vendia para os pescadores do Porto, quando os gigantes foram embora. Os menorzinho estavam pálidos e saíram arrastando os maiores e deixando enormes valados que acabaram por derrubar os montes abrir crateras e fazer com que aqueles piolhões pulassem de volta para o corpo deles.

O cego iniciou a cantar lamentos para pedir moedas e eu comecei a tecer enormes caixões de cipós e folhas de açaí, de maneira que para quem olhava de longe já não enxergava mais minha casa e nem mamãe conseguia sair para ir ao poço apanhar água e nem ouvia mais Dona Maricota gritar.

–Ô vizinha!-Ô vizinha!

Dentro de casa era sempre escuro porque os enormes caixões impediam a entrada da luz do sol.E eu não conseguia parar de tece-los. Certa vez eu deitei dentro de um e morri.

Mamãe gritou tanto que estranhamente voltarão os gigantes e os piolhões. Agora tão pequenos, que para vê-los, ela precisou da lente dos seus óculos, uma sobre a outra. Ela se afeiçoou a eles. Passaram o resto de suas vidas, falando da minha vida aventureira e cristã.

E tecendo minúsculos paneiros e caixões. Construíram um sino de cipó, que todos os Domingos toca. Mas ninguém escuta.

*Luiz Jorge Ferreira é poeta e médico Macapaense criado no Laguinho, que atua em São Paulo. Ele também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de escritores Médicos (Sobrames).
**Do livro “Antena de Arame”.

A última ceia – Conto de Júlio Miragaia – @julio_miragaia

Conto de Júlio Miragaia

Não havia nenhum luxo naquela comemoração. A época de chuva umedecia os caminhos de madeira da ponte onde ficava a humilde casa, das tábuas encharcadas e cada vez mais escuras e enlodadas com o passar dos anos.

Dos três irmãos, apenas João havia conseguido, com suas economias, comprar uma roupinha nova, que não tinha nada de mais.

A ceia também não era o mais refinado dos banquetes, mas era a melhor refeição que poderiam ter naquela noite. Os enfeites, luzes compradas numa importadora e uma pequena árvore de plástico, completavam o ambiente natalino.

O cheiro de comida que vinha da sala e da cozinha se espalhava por toda a casa, fazendo junto com as canções evangélicas que tocavam num aparelho de som, com que aquela noite tivesse qualquer coisa relacionada a um sentimento de agradecimento entre todos os que ali estavam.

No centro da mesa foram colocados dois frangos assados, uma tigela cheia de risoto, um vatapá feito pela avó, dois bolos, um cento de salgadinhos e outro de monteiro lopes com brigadeiro. Uma garrafa de cinco litros de Cantina da Serra era guardada para que os mais velhos bebessem depois da meia-noite.

João, do alto dos seus quatorze anos, planejava passar o reveillón na casa do tio, em Belém, no bairro da Sacramenta. Além de contribuir com duzentos reais com a ceia da família, conseguiu juntar trezentos e oitenta para comprar as passagens para ir de navio de Santana até a capital paraense.

Foram longos meses, subindo e descendo de ônibus vendendo jujubas, amendoins e mentas para alcançar o objetivo. O dinheiro que juntava também ajudava a comprar comida para casa nos dias difíceis.

O pai, pedreiro desempregado, tinha feito bicos, pintando casas e lavando carros para conseguir algum dinheiro para o jantar de natal que fizeram naquela noite.

Havia uma felicidade não parcial, apesar das dificuldades daquela família. Uma felicidade em saber que estavam todos com saúde na casa, depois de um ano tão cansativo e injusto em diversas ocasiões.

Ninguém tinha comprado presente para ninguém. Mas a conversa e as brincadeiras fluíam pela sala, nos dois sofás e ao redor da mesa ainda intocada.

Por volta de onze e quarenta, a energia elétrica foi embora. Menos de dez minutos depois, ouvem-se quatro tiros. João, o terceiro filho da família, que viajaria sozinho pela primeira vez para Belém, depois de trabalhar duro, soltou um misto de gemido, grito e choro da cadeira onde estava sentado até o chão onde caiu. O choro e o grito da mãe e da avó saíram como que sincronizados, atravessando o som dos sapos e dos grilos da ponte.

A energia voltou meia noite em ponto. Os vizinhos se aglomeraram dentro e na frente da casa. João estava entre a mãe e o pai, no chão da sala, o corpo sem vida e as roupas novas ensanguentadas. Foi uma noite em que as horas se arrastaram desgraçadamente e o natal se revestiu de lágrimas e luto.

O dia iniciou com uma chuva tão forte que o lago onde fica a casa começou a transbordar. O vento forte e frio fazia as janelas da casa e o rosto triste de seus moradores tremerem.

Fez-se manhã, tarde e noite de natal e parecia que nunca mais pararia de chover. A ceia permaneceu intocada. A água invadiu o piso de madeira, lavando lentamente o sangue de João. E a vida daquela família, principalmente nas noites de natal, foi encharcada de tristeza e de uma estranha e profunda solidão.

As Mirandas que encontramos na vida – (Crônica de Elton Tavares – do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”)

Crônica de Elton Tavares

Quem curte cinema lembra-se da Miranda Priestly, a nojenta editora de uma revista de moda famosa, interpretada por Meryl Streep, no filme The Devil Wears Prada (O Diabo Veste Prada).

Então, conheço algumas “Mirandas” que vivem a atazanar a vida dos outros. É, tem gente mestre na arte da escrotidão. Ah, se tem!

Uma em especial parece muito com a do cinema, só não possui a fineza (mas pensa que sim) e nem a sinceridade da personagem de Streep. A editora da revista deixava claro quem era para todos e não dava uma de “gente boa”, de acordo com sua conveniência.

Fico só observando essas figuras, que pensam ser a bala que matou Lennon, o suprassumo da competência, mas não são. Ainda bem que, apesar de continuar um cara cascudo, brabo, encrenqueiro, irônico e genioso, aprendi a lidar com elas.

Portanto, querido leitorado, não dê moral para este tipo de canalha. A não ser que já seja “assédio moral”, ignorem as “Mirandas”, pois é tudo que elas não querem. É isso!

*Crônica de 2016. 

**Texto do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”, de minha autoria, lançado em setembro de 2020.

Embrulhando o Outono – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ele há muitos anos não bebe água…
Ocupado em recolher as datas, as que são ocupadas por episódios trágicos.
Arranca dos Calendários da parede as folhas numeradas com dia do mês e dia da semana.
E as coloca dentro de um saco de plástico bege que chama de Existência.
Sua mulher doutro lado da sala, onde nós últimos anos eles transformaram em sala, quarto, cozinha e área de na banho,.. O observa em silêncio…sua ocupação, aparar as bordas desniveladas da papelada que ele ensaca para lhes dar um primoroso acabamento…


Ele não bebe água…embora a vasilha que ela encheu da bica que a chuva enche e deixa escorrer abundante, estivesse chegando ao meio só ela havia consumido o líquido.
Ele, da água não beberá.
Estava magro e ressecado, como uma mala velha de couro, e sua calça e camisa pareciam tão secas como ele próprio.
Estava recolhendo o que ele próprio chamava de existência…


Os discos, as fichas telefônicas, as gaiolas onde pulavam os curios, o tapete espesso onde procriaram três gerações de gatos siameses, e estampilhas de imagens de toureiros, damas tocando castanholas, e espadachins portentosos.
Um monte de sacos amontoados no caminho do antigo corredor que ia rumo ao quintal desaparecerá…o barulho da televisão, agora mas um chiado continuo, que fala audível, se fazia presente…
E vários pacotes de vela, para serem acessas em sequência, pois a tempo se fora a luz elétrica, não que não tivesse, foram se as lâmpadas, vieram as velas.


A casa era triste…as dobras da rua defronte pareciam querer fugir dali…mas ele não bebia água…
As árvores plantadas no quintal decorando de folhas o chão não eram de madeira, eram agora de papel machê, porque também não bebiam água…
Ele catando passos, falas, espirros, algazarras, sorrisos, e desenhos feitos a mão, em determinado momento, cuja a única testemunha eram os ponteiros do relógio, que ele usará para prender um cadaço de sapato na parede para dependurar coisa esquecidas…


Um caos…a própria vida começou a evitar aquela casa.
A noite passava ao largo.
A chuva deixou de vir…
Um silêncio triste, sentou debaixo das árvores, e ficou calado.
Tudo era um traçado de ensacar coisas deles, e de tudo o todo.
Ela doutro lado da então agora uma coisa qualquer chamada antes de sala, se transformou, em água.
E ele cabisbaixo entrando no derradeiro saco, não bebeu.

Luiz Jorge Ferreira.
Osasco…26.11.2022
São Paulo…Brasil.

Bar Cantinho do Céu – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O local tinha sido um bar…
Com a vinda da Pandemia… e a morte de Seu Sotero…e a ida de Dona Generosa, para Ananindeua no interior do Pará, fecharam-se as portas, a sua falência, pegou todos os seus fregueses sobreviventes da grave doença,  de surpresa, em uma surpresa anunciada, os clientes se recusavam a usar máscaras, manterem distância regulamentar, jogavam suas partidas de Sinuca, seus tira teimas no Dominó, suas apostas na “purrinha” de bebidas geladas, suas partidas de Carteado as mais cobiçadas pelos frequentadores pois haviam apostas de quem estava jogando e de quem apenas olhava os jogadores mais famosos das redondezas, ou até vindo de outros bairros, com todos falando alto, e todos a vontade, como se cerrada as portas do “Cantinho do Céu”… pois esse era o nome do Bar aberto desde cedo da manhã até por volta de 22hrs, nenhuma Praga pudesse entrar…

Agora tudo passado para o passado…

Os herdeiros, que eram apenas três, resolveram vender o que restava do Bar… sem a manutenção diária, sem os cuidados de limpeza, e o recolhimento do lixo por muito abandonado, tornara-se um terreno baldio ocupado por uma construção de madeira sem o aspecto nenhum do que fôra… A vizinhança via aquela agitação de máquinas e trabalhadores retirando o madeirame, e as louças de banheiro e sanitário, pasmas… que será que iam construir em substituição do Bar Cantinho do Céu…

Em primeiro lugar nos terrenos totalmente limpos…demarcaram quadras milimetricamente iguais, e construíram no centro disso tudo uma casinha à semelhança de uma Capelinha…
Em seguida cercaram toda a extensão do terreno repartido em quadras com um muro de regular altura dos seus três lados e na parte da frente menor e separados por quatro grandes portões de ferro em forma de lanças de pontas afiadas.

Toda a vizinhança apostava no destino que se daria aquela obra quase concluída…
Uns apostavam em um Condomínio… vila de casas populares pelo tamanho das quadras já demarcadas…
Depois plantaram vasos de flores e pequenas árvores em toda a extensão das quadras formando corredores, ruelas arborizadas…
Os antigos frequentadores de tardezinha se deixavam ficar sentados a frente da obra, distraídos conversando entre si, sobre os anos que foram felizes no aconchego do Cantinho do Céu…
Muitos felizes tempo contado em anos…

Um certo dia a obra foi concluída… veio um caminhão tri-articulado já era de noite, de uma noite escura e fria, e ninguém da vizinhança se arriscou a sair para olhar o que parecia ser uma estrutura à semelhança de uma placa enorme dividida em três partes…
Dizem os que por lá moram… que nem as três Comadres mais curiosas do bairro se arriscaram a sair para conferir a novidade…
De manhã cedinho, como se combinado estivessem, se encontraram defronte da obra… a grande placa tinha sido montada mas ainda estava protegida por um grande plástico…
Havia trabalhadores se aprontando para retirá-la.


Ficaram eufóricas… seriam as primeiras do bairro, a ver por fim que serventia teria aquele apronto todo.
Entre si comentavam que fôra uma noite de sono assustado…
Sim… Comadre.
Sim.
Comigo também… Dona Alessandra.
Barulho de batidas, como se fosse alguém jogando Dominó,  igualmente era quando o Bar existia, os barulho de copos…
Comadre eu ouvi até ruído de descarga de Sanitário…
Cruz credo… Comadre Luiza…
Noite pavorosa… espero nunca mais ter uma dessa…
E as comadres se benzeram.

Os homens cortaram as cordas do plástico que cobria a grande Placa de Neon, com certeza ficaria acesa a noite.
… leram-na estupefatas…
Park Memorial Horizontal.
Cemitério Valetes e Damas.
Seja Bem-vindo!

Osasco, SP, Brasil.
25.09.2022.

O dia do meu aniversário – Conto apocalíptico de Fernando Canto

Continho apocalíptico de Fernando Canto

Quando eu tinha 106 anos, a idade do meu avô morto no sítio dele num incêndio de setembro, eu queria viver um tempo em que no planeta não existissem mais pessoas se matando por deus e por Dinheiro (– Ô utopia velha besta!). Queria viver num tempo em que o carnaval matasse o tempo e abrigasse só alegria. Viver num tempo de expressões puras em que nenhuma fagulha de bomba, uma cinza de lava vulcânica, um novo vírus fugido de laboratório caísse sobre mim. Queria mesmo que uma pequena paina de samaúma flanasse no céu girando como uma borboleta sem rumo e pousasse sobre mim como pousa a luz do sol, assim quando eu ousava abrir minhas janelas, descerrando as grades para enfrentar sem medo os perigos rondantes. E foram tantos os perigos que nem mais os lembro, nem saberia contá-los. Venci a todos.

Carrego em minhas costas uma longa idade, eu sei. Mas ainda ando cheio de esperança e sonhos, apesar da cadeira de rodas. Ardo na expectativa de assistir ao futebol na TV nas tardes de domingo, acompanhado de um gole de aguardente para matar a saudade do meu tempo velho, e acelerá-lo. Hoje minhas memórias pertencem aos outros. Trago em mim apenas minha própria vida, imperturbável até a morte, respaldado que estou por um contrato assinado em cartório.

Lá fora a política e a ganância dos humanos não morreu de dor. Elas não doem para quem vive dela. Doem para os dependentes, para os bajuladores que há séculos rodeiam os poderosos. Doem para os religiosos, que em nome do que acreditam, de tudo fazem, ao contrário do que querem acreditar. Quem dói em mim é a própria dor, quando chega lancinante, emergindo dos ossos e dos tendões. Nem digo das dores do coração, do rim e do fígado transplantados, pois tenho remédios eficazes. Mesmo assim sou otimista e tenho sonhos e esperanças.

Se fui rico como poucos, já não tenho mais amigos, nem parentes nem herdeiros. Se fui detentor de poder político e econômico, a troco do suor dos pobres, agora tenho uma ótima renda que me permite usufruir dos avanços da tecnologia, principalmente das descobertas da química e da medicina deste mundo capitalista, mesmo que na solidão – meu destino de viver uma vida longa vida – fique à mercê das ordens de cuidadores num degredo social necessário – e não voluntário. Num tempo de esperança – e não de espera – da morte.

Hoje alguém me disse que completo 116 anos, que pareço jovem. É que estou sem rugas e com uma grande cabeleira preta, mas não rio mais. Nada em mim é meu, nem a memória nem meus esquecimentos de lampejo, como já disse antes. KKKKK! Nem meus dentes os tenho mais para sorrir. São de titânio. Trago sob a pele – só eu sei – as verdadeiras rugas – ruas da face – que não aparecem no meu rosto verdadeiro. Ninguém me cumprimenta. Não há bolo de chocolate, não cantam parabéns a você nesta data querida. Não existe o primeiro pedaço vai para quem? Talvez porque não haveria lugar para tantas velas e o pulmão não aguentaria soprá-los de uma só vez. Ainda assim persisto no meu otimismo. Lá fora está tudo queimando como no dia em que meu avô morreu.

Acho que este mundo vai mudar devido a tempestade de fogo dos meteoritos insólitos e seus bólidos resplandecentes. Vai mudar, sim, pela ablução ardente dos degenerados, dos sobreviventes. Ora se vai. Já disse a vocês, que me cercam e rasgam minhas vestes, que a dor é a origem da espécie e os humanos chovem antes da morte vaticinada. Ah, eu não paro de sonhar e de ter esperança em ver este mundo destruído.

Bar cochilo – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Tia Caetana comprou um bar, quando ficou viúva…
Era um bar perto de sua casa onde seu falecido esposo passava horas antes de chegar em casa vindo do trabalho, na companhia dos amigos, tomando vinho e jogando dominó, ou dama, nas diversas mesas já preparadas para isso. O tabuleiro pintado nas mesas.

Ninguém da família tinha experiência nesse ramo de negócio…diziam que um primo, que morava em Soure no Pará, fora dono de uma Casa Noturna de nome Cochilo. De tal forma que tia Caetana reformou tudo mas manteve as mesas do estilo tabuleiro de Dama, e a equipe da casa, cozinheiros garçons, e a moça que anotava as solicitações para o violonista Cantor.

Arrumou as mesas de forma que diante do tablado onde se posicionava o Cantor, ficasse um espaço para algum casal de clientes mais alegres, poder dançar.

Tia Caetana, não fumava, não bebia, era carola, de frequência rigorosa nas missas, e atividades da Igreja, desde de que não interferissem na sua jornada de trabalho, no Cochilo, nome com que havia rebatizado, o antigo estabelecimento, vestia-se quase sempre com roupas escuras, e sapatos que imitavam pequenas botinas, usava óculos de lentes de grau azulados, que na atmosfera de pouca luz no interior do Cochilo, lembravam um par de olhos de gato.

Bebia em ocasiões que ela dizia serem especiais uma mistura que ela guardavam em uma garrafa de vidro decorada com uma paisagem parisiense em que se via a torre Eiffel e sobre ela a imagem do Mademoiselle do Santos Dumont.

Tal garrafa era guardada como uma peça preciosa e seu conteúdo intocável.
…a garrafa continha o que ela denominava …de meu Absinto caseiro.

O dia que o Papa visitou o Brasil ela nos brindou por conta da casa com esse néctar…
A casa ainda não abrirá e ela nos convidou para sentarmos nas várias mesas postas em volta, em círculos, e colocou a bebida dentro de seu reluzente cálice e em seguida tocou fogo vendo a chama azulada criar corpo, juro que me pareceu ver um rosto entre meio das chamas, que lembrou a figura do tio que falecerá, antes dela comprar o Cochilo.

Tia Caetana deu um gole, e passou o cálice para os amigos e parentes em torno. Nenhum de nós lembrou de mais nada, eu mesmo que nunca falará Chinês citei Confúcio em vários parágrafos sei que o fiz pela gravação feita pela moça que anotava as solicitações musicais, e depois postou no número do celular que lhe passei…ela mesmo fez vídeo de todos em uma pequena procissão ao redor das mesas e tia Caetana liderando e cantando Cantos Gregorianos que ninguém ali com certeza tinham escutado, mas a acompanhavam perfeitamente bem com sotaque romano.

Depois desse dia, o Cochilo ganhou um público diferente, antes das 22 horas, era um entra e saí de senhoras, que eu sempre via nas festas ecumênicas da Igreja…agora as via entrar no Bar Cochilo, e dirigirem-se ao balcão de chás que Tia Caetana tinha posicionado um pouco antes dos banheiros femininos, másculos e o indiferenciado que ela batizará com o nome de Neutros.
Tia Caetana fizera um mix no Bar …Religiosidade e Boêmia…
Até as 22…aconselhamentos, chás, bolachas biscoitos, e outros salgados…


Depois das 22…as meninas de botas, calças super apertadas, shorts fujões do corpo, e shows de nádegas.  Tia Caetana reformava a postura punha um lenço colorido nos cabelos, trocava os óculos sisudos por um leve óculos ray-ban dégradé, e um vestido amarelo com grandes floreios lilás…
E se manifestava batendo cadenciadas palmas apropriadas para um casal dançando um Passo Dublê…

Aos sábados lavagem geral com sal grosso e espalhamento dos vasos do Tajá … ‘ Comigo ninguém pode…’ e no Domingo não abria… Tia Caetana ia a Missa e comungava sem confessar, apregoava que a Confissão era íntima consigo mesmo…Tia Caetana fazia escola na Matriz…dava Curso para Formação de Casais, com fila de espera…


De noite, aos domingos, lia o jornal da Cúria Romana …L’Osservatore Romano …que todos os dias era publicado em Italiano, e na semana em outros idiomas.Depois anotava as duvidas e as suas o piniões para serem enviadas a Roma, por meio da correspondência que a Matriz mandava.

Eu ia apanhar uma vez ao mês as Cartas endereçadas a Matriz e outras enviadas ao Bar Cochilo, coisas comerciais, impostos, propaganda de novos eletrodomésticos etc…etc. Um dia deparei com um envelope internacional, vindo da Itália…Tia Caetana ficou eufórica, nesse dia os clientes do Bar Cochilo tiveram abatimentos gigantes em suas contas…
Foi uma noite de alegria.

Daquele dia em diante ela dedicou-se mais ao treinamento do Gerente, e começou a pensar em viajar…incluiu um repertório romantico de Músicas Italianas, e ajudou a canta-las, ensaiou uns sapateados, e tirou Passaporte…

Certo dia …notei sua ausência, tomei a liberdade de remexer suas correspondências nas gavetas da sua escrivaninha em seu escritório, muitos jornais, muitos L’ Osservatore Romano, folhei, tia tinha se tornado uma colaboradora frequente, escrevia sobre as religiões afro amazônicas e suas presenças no controle e tratamento dos seguidores delas.

O Bar Cochilo, nesses três meses de ausência dela, havia mudado seu perfil, vinham os frequentadores das igrejas vizinhas, faziam um lanche, tomavam café, bebiam água, discutiam passagens bíblicas e renovavam as flores sob os retratos dos Religiosos locais falecidos mais influentes…e considerados Santos. O Cantor agora cantava Louvores e sua esposa fazia saladas veganas…

Escritores Elton Tavares, Lorena Queiroz e Fernando Canto, no imaginário Bar Cochilo, da Caetana e Luiz Jorge

Um dia o gerente me viu passar defronte, veio em minha direção, disse-me que Tia Caetana havia lhe doado o Bar Cochilo, e que ele queria saber se eu me opunha, a esse fato, e que trocaria o nome de Bar Cochilo, para Cantinho Santo Cochilo, disse o fizesse, e que havia recebido um telefonema de Macapá dos escritores Fernando Canto, Elton Tavares, Lorena Queiroz, porque haviam tido notícias sobre o Bar Cochilo, e vinham a mim convidar para escrever alguma coisa sobre ele, tendo em vista que havia morado em Macapá e haveriam de publicar um Livro sobre estórias de Bares…
Agradeci ao Gerente pela notícia, pedi que agradecesse ao convite quando ligassem…
E dissesse que gostaria muito de fazê-lo. Mas que eu poderia escrever de interessante sobre Bar?

O porão da velha Marta – Conto de Lorena Queiroz – @LorenaadvLorena

Conto de Lorena Queiroz

Viúva, rabugenta e peculiarmente religiosa, era assim a velha Marta. Tudo mudou depois que o marido faleceu, ou melhor, se tornou o que era antes de nascer. Era assim que ela pensava nele e em sua morte, algo associado com uma das poucas coisas que lembrava da leitura de Schopenhauer.

Ao se tornar viúva, a nossa Marta não teve mais como se sustentar. Tinha uma única filha, uma ingrata que foi embora com o marido e nunca mais deu notícias. Mas quem nasceu sobrevivente nunca é engolido por naufrágio. Pensou em abrir um pequeno comércio, mas não tinha simpatia para lidar com os clientes. Pensou em ser prostituta, mas lhe faltava vocação e sobrava bexiga baixa.

Então, olhou para seu porão e pensou em abrir um bar e, com bêbado, ela sabia tratar. Viveu com um durante trinta e cinco anos, tinha plena consciência que dono de bar não precisa ser simpático se a cerveja estiver gelada e o tira-gosto com preço camarada e, como não lhe passava pela cabeça pagar impostos, seu preço seria um atrativo.

Assim nasceu o porão da velha Marta, escada de madeira velha, umidade demais e tubulação aparente. Aquelas escadas levavam até o submundo das almas perdidas, como se o próprio Hades tivesse abençoado o lugar em parceria com Dionísio. E se lá era o lado divertido do inferno, Cérbero andava entre aqueles que bebem, um cachorro caolho e de três patas que a velha Marta adotou após encontrar o pobre estropiado em sua porta.

Muitas pessoas desciam aquelas escadas; gente de todo jeito, com um fator em comum, a clandestinidade. E isso a velha Marta adorava. Era a mãe de todos os que foram rejeitados pela normalidade. A velha Marta conhecia os hábitos e as histórias de cada um, e os que iam chegando, a nova leva, como dizia nossa Marta, ela adivinhava algum traço de personalidade pela bebida que pediam; Campari; bicha velha. Martini; hum, puta. Gim; atrás de sexo. Marta também reconhecia vários de seus clientes assistindo o noticiário; o prefeito desportista que adorava a prostituta de cabelos vermelhos. O rapaz que sempre bebia whisky, sozinho no canto mais escuro do porão, e se matou enforcado dentro do próprio quarto. Entre muitos outros. A velha Marta era conselheira e ouvinte de muitos deles, ouvia cada empolgação, desgraça ou ilusão que lhe relatavam. Era impaciente, mas sua vasta experiência de vida lhe propiciara a dar conselhos; se eram bons? Questão de perspectiva. Sempre aconselhava os casados que a viuvez é melhor que a separação. Toda mágoa vai junto com eles para o fundo da terra, é libertador, dizia ela à uma. O que é a vida? É o simples agora, o imediato e nada vale mais a pena do que o agora, disse ela para o outro. E o que seria a morte? Um momento inevitável de solidão, pois você pode viver junto, mas vai morrer sozinho, disse para mais um.

E todos os dias ao nascer do sol, a velha Marta fechava o caixa, alimentava Cérbero e se despedia de cada uma daquelas almas que continuariam; algumas felizes, outras perdidas e muitas mutiladas, mas agora, expostas à luz do sol.

*Lorena Queiroz é advogada, amante de literatura, devoradora compulsiva de livros e crítica literária oficial deste site, além disso é escritora contista e cronista. E, ainda, de prima/irmã amada deste editor.

O bar de Yeye – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

A Yeye a senhora que trabalhava em casa há muitos anos, vinda de Belém do Pará, trazida por minha esposa, e recomendada por minha sogra, aposentou-se depois de trinta anos de trabalho, tendo inclusive ajudado na tarefa de auxiliar as crianças em sua criação, nas suas atividades do dia a dia, tal como banho, encontrar os sapatos, os chinelos, as tiaras, acertar franjas… etc… etc…

Yeye, que se chamava Maria de Nazaré Viana de Castro, foi uma profissional cumpridora de suas tarefas, e tornou-se uma pessoa da família. Chegou mesmo a se aposentar nessas tarefas todas.

Yeye criava canários, pintassilgos, cães, gatos, um loro cego do olho direito que xingava em Nagô, aprendido em seu tempo de moradia em Oiapoque, e em francês cantava marselhesa, e Edith Piaf Hynme a L’amour… primeira parte porque na segunda punha-se a chorar…

Passava horas conversando com as tartarugas após lhes banhar com água e as massagear com um pouco de azeite para lhes lubrificar os cascos. Todos lhe entendiam, e ela se entendia com todos.


As crianças cresceram, foram embora para outras cidades e o trabalho ficou resumido a limpeza da casa e ao cuidar dos animais e o preparo da alimentação que também era coisa pouca, porque eu passava a maior parte da semana no trabalho em outro município e por lá fazia as refeições. Nos momentos de folga dediquei-me como hobby a um curso de ventríloquo amador… coisa que me deu muita alegria e a possibilidade de brincar com amigos. Treinei bastante nas horas vagas e já conseguia projetar a ilusão da voz anasalada a uma distância de uns 5 metros…

Yeye andava muito triste, conversando com ela sobre o motivo… tive a impressão de que começará a beber, e que suas novas amizades no bar mais perto da única farmácia do bairro, agora consumia muito seu tempo, o que a fazia se descuidar do trato dos animais, que já começavam a apresentar marcas deste descuido, perdas exageradas de penas, perda de peso dos cães e gatos, casco ressecado nas tartarugas, e tristeza do velho loro que enrouquecido cantava Edith Piaf, dois tons abaixo.

Dei de presente uma viagem para Yeye ir rever seus parentes em Belém do Pará, e férias de 90 dias, para que eu pudesse contratar um mestre de obras para fazer uma reforma que tinha em mente…
Para cuidar dos animais pedi ajuda a um casal vizinho que também criava passarinhos, gatos e alguns cães.

De modo que eles até se animaram mais… recuperaram penas, cascos e pelos, e voltaram a gorjear, tomar banho de sol e o loro voltou a xingar os times pelo qual não torcia… focando no goleiro, que ele chamava de guarda-metas, coisa herdada de uma vizinhança luzitana pelos bairro do jurunas em Belém, muitos anos atrás.


Os pedreiros terminaram o trabalho e eu gostei do resultado. Uma das tardes de sábado fui até o bar onde Yeye bebia com os amigos, razão da sua alegria, e vi poucos frequentadores, estava “às moscas”… fui até a moça detrás do balcão e indaguei por todos os veteranos cujo apelidos havia levado anotado um pedaço de papel.

De quem tanto ela contava casos e gafes. Lamentável disse-me ela, com essa pandemia, a maior parte deles adoeceu e faleceram, os que escaparam ficaram muito ruins, não conseguem vir aqui… sabemos notícias deles por seus parentes quando os encontramos.  Triste.


Declinou o nome de muitos deles, que não moravam longe dali, os boêmios têm preferência sempre por lugares próximos as suas residências para evitar longas caminhadas com o “tanque cheio”.  Anotei tudo e dei um até logo.

Yeye chega. Vem de táxi. Traz na bagagem quase toda a flora Amazônica, e da fauna muitos mosquitos escondidos nos vasos de espada de São Jorge e latinhas de “comigo ninguém pode” e uma gaiola coberta com um pano fino servindo de capa. Peço que a vizinha lhe tampe os olhos e só os descubra na cozinha.

Agora depois da reforma fisicamente duble do bar que ela frequentava e na parede as imagens dos parceiros que há muito custo tinha conseguido que um retratista os desenhassem.. Um toca disco recuperado com LP’s variados, esses emprestados do bar, e uns dois ou três da vizinhança fazendo número.

Os animais dispostos no quintal com visão para a porta aberta aumentada de tamanho, a semelhança de um saloon dos filmes de bang bang… e o Loro sobre um varal de madeira extenso que o permitia se movimentar em quase toda a extensão do bar que cozinha agora imitava. Cantaram parabéns, embora não fosse seu aniversário e retiraram o pano dos seus olhos.

Houve choro e Yeye quase desmaia de feliz. o Loro gritava feliz. Mais feliz ficou quando descobriram a gaiola que ela havia trazido e ele viu a Lora de penas coloridas e vistosas. Quando eu subi a noite para dormir ainda ouvia os gritos do Loro, agora já com a voz rouca:

Tragam ela para cá…
Tragam ela para cá…

O violino do bar Ojuara – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Local onde funcionava o Bar Ojuara, na Rua General Rondon, em Macapá. Foto: Fernando Canto.

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O garçom tocou de leve no seu ombro…Eduardo levantou os olhos e pegou da bandeja a xícara de café e um prato com um pãozinho assado na chapa… era o seu habitual pedido…

Havia saído da última aula daquele dia e aguardava a passagem de sua mamãe para se encaminharem a Igreja onde ela prestava serviço secretariando a Arquidiocese de Macapá.

O estabelecimento misto de bar e mini padaria, ficava defronte a praça onde se erguia uma Cruz, cercada de batentes onde os devotos acendiam velas em ocasiões especiais, gerais, ou às vezes muito íntimas.

Folheou aleatoriamente o caderno brochura de 8 matérias…Cujo o nome do seu dono estava desenhado em letras góticas cheias: Eduardo Corrêa Alves.

A foto que embelezava a capa era representada por uma pintura de um dos mestres italianos e mostrava a subida de vários grupos de pessoas  em direção a uma nuvem colorida, com certeza se entendia como o sol…

Doutro lado da praça do cruzeiro, nome que havia dado a praça da grande cruz… ficava o cemitério… ocupado por um silêncio enorme só cortado por um ou outro barulho vindo do bando de periquitos que se deliciavam com os frutos das mangueiras por ali espalhadas.

Na última mesinha próxima ao banheiro masculino estava a moça de sempre, sua companheira de horário, hoje não trazia o estojo de seu instrumento musical,  o que muito lhe intrigava para saber o qual seria…

Mas não a conhecia… nem nunca trocaram cumprimentos, afora um leve balançar de cabeça, de sua parte… nem imaginava se correspondido.

 

Dirigiu-se ao banheiro, demorou mais que o normal, passando fio dental entre os dentes recém obturados, imaginou que agora aos 15 anos, redobraria os cuidados com eles… Tinha ódio do barulho do motor da obturação.

Voltou e viu que a moça havia saído. Nem o leve balançar de cabeça não lhe daria. Olhou ao redor da mesa em que ela estivera e viu uma sacola no chão entre duas cadeiras . Apanhou e viu que era o embrulho que ela sempre trazia consigo.

Abriu o estojo… era um violino. Guardou e foi até o rapaz que o servia todos os dias. Ela esqueceu. Leve e traga amanhã.

Não deixo comigo, porque não tenho onde guardar e de noite são outros funcionários… quem vai se responsabilizar. Você vem a semana toda, amanhã trás e lhe entrega. Caso ela venha perguntar se esqueceu aqui, digo que você vai trazer..

Você… é?

Eduardo Corrêa Alves…

Então está combinado… e se afastou para dar prosseguimento ao seu trabalho…

Duas manhãs, Eduardo chegou mais cedo que o de costume… desta vez comeu um pão na chapa e tomou 3 cafés… esperou até um pouco além do horário que ela costumava sair… olhava… olhava e não veio… quando chegava perguntava ao Heitorzinho um amigo que costumava cumprimentá-la pelo nome nas poucas vezes em que os três estiveram  por ali na mesma ocasião… não tenho visto…

Estás interessado? Porque não falastes… te apresentava. Eduardo desconversava e saía com o estojo.

Eduardo fazia aulas de violino com sua mãe que já há muito tempo formada dava aulas de música na igreja matriz e tinha alunos particulares em casa…

Soube, por intermédio de outro amigo de escola, chamar-se Ângela…

Nos dias em que sua mãe recebia os alunos, costumava tocar algumas músicas enquanto estavam todos eles sentados na sala, coisa que lhes distraiam enquanto sua mãe arrumava as partituras das aulas daquele dia na estante…

Tomou um susto quando a viu entrar na sala, por pouco não trasteja a nota que fazia.

Depois soube que se matriculara para aprender violino, que agradecer a muito a devolução do instrumento.

E deixou um agradecimento escrito que D. Célia, a empregada, o entregou dali a mais de mês. Nele ela dizia ter acompanhado na Igreja suas apresentações,  e na escola lhe ter descoberto duas salas depois da dela e no Ojuara, esse era o nome do bar ter levado o violino dentro do estojo, por fim dentro da sacola para atrair sua atenção, e combinado com o rapaz garçom ter o “esquecido”.

Resolvida fora se matricular com sua mãe e chegava cedo para lhe ouvir tocar, principalmente as Valsas Vienenses e de Vivaldi as quatro estações …

Pronto. Ponto final.

Eduardo morreu de apendicite daí a um mês voltando de férias com sua mamãe em Marajó, foi em uma sexta-feira de 1965.

Passamos indo para o sepultamento… Alípio foi… Heitorzinho foi… Tadeu foi… O garçom acompanhou da porta do bar Ojuara… ela eu não vi… mas assim que entramos no cemitério e circulamos o túmulo, um som de violino se espalhou juntando-se  as lágrimas dos amigos presentes, que caiam no chão ressecado…

Professora Katy, a mãe dele, emocionada se aproximou de mim, e sussurrou… Vivaldi. Ele adorava as quatro estações. É o que estão tocando.

Balancei a cabeça afirmativamente… depois caminhei sozinho para casa pensando que todos os fatos que presenciei ficariam muito longe.

Mas hoje quando passo defronte do cruzeiro em frente ao bar, ao longe, pareço escutar o violino agora tocado pelo tempo trastejar em dó sustenido menor. Vai ver que, em algum momento, ela para o seu espanto o reencontrou, e finalmente lhe deu um demorado abraço.

VASOVAZIO – Conto de Fernando Canto – @fernando__canto

Conto de Fernando Canto

Na virada do milênio (no meio da noite/ no meio do mundo) um dedo em riste aponta o homem que enche a cara no bar da praça: “um artista vazio”, diz o dono do dedo com sua voz de gralha poedeira. Mas um artista vazio sabe que a nódoa e a violência não fazem parte de sua camisa de força e que sua essência é o ar necessário à vida.

E o dedo em riste acusa: “amigo do rei é vazio, vazio”, e sai com o nariz empinado feito um carcará que saboreou sua presa, cheio de tudo, de empáfia e bactérias, enquanto o artista vaza a noite e ri, contemplando o cosmo estrelado com seus buracos negros que absorvem o tempo, a luz e o espaço, e nem sabem das misérias humanas.

O DESCENDENTE DO CAPITÃO-GENERAL – Conto de Fernando Canto – @fernando__canto

Conto de Fernando Canto

Era uma velha amizade e todos sabiam. Rondava o encantamento até. Eram inconfundivelmente perfeitas no que faziam. Davam a impressão de serem tão ternas que o excesso de abraços poderia derretê-las. Assim eram minha mulher Gianni e sua amiga Elna. As pessoas de nosso círculo de amizade se surpreendiam como se nunca tivessem tido amigos do mesmo sexo. É claro, diziam, é tudo muito bonito, adoro, ele adora, nós adoramos. Admiramos tão vasta e impetuosa amizade. Gozavam de mim, os pulhas. Perguntavam como eu me sentia vendo tudo aquilo. Aquilo o quê? Eu dissimulava. Perguntavam sempre sobre minha adesão ultra modernista às coisas da vida, já que eu, um homem maduro e bem-sucedido engenheiro, possuidor de incontáveis atributos, embora conservador, chegava agora a encarar os fatos como algo normal. As pessoas não cansavam de me atazanar a vida. E eu me fazia de ingênuo. Elas sabiam ou pensavam que sabiam da minha vida e sempre davam asas a minha fama de conquistador, pois as mulheres ainda suspiravam quando eu passava exalando um caro perfume francês. Eu ria por dentro porque sabia da zombaria dos homens por trás de mim e durante muito tempo recolhi o que eles diziam através de suas mulheres nas camas dos motéis. Sim, eu era mau. E daí? Era a única forma que tinha de me vingar deles. E melhor, em silêncio. Meu conceito era ruim, mas eles me toleravam, tinham mesmo que me engolir. Embora me reconhecessem como um dos melhores calculistas da cidade, eu sabia que me desprezavam devido a minha origem humilde. Eles se enclausuravam num mundo de nuvens de algodão como se fossem parte de uma corte principesca. Na realidade, era um clube de elite, fechado e hipócrita. Um bando de hedonistas, de pervertidos, isso sim o que eles eram.

***


Meu casamento com uma mulher da alta me trouxe alguma vantagem profissional, prestígio, grossos contratos de trabalho e sobretudo respeito, o que não me incomodava nem um pouco, porém havia conversas atravessadas de desconfiança e olhares carregados de hipocrisia, de inveja. Ah! A burguesia… Hoje convivendo com ela posso compreendê-la, mesmo não a digerindo bem.

A minha origem, o meu tão ignorado passado, era razão de certa intolerância de convívio. Mas eu dei um golpe neles, pois não bastava mostrar competência. Esse golpe surgiu por acaso, quando descobri num livro de História um tal governador da Província com um sobrenome semelhante ao meu. Fora um herói nas expulsões dos flibusteiros holandeses que andavam na região no início do século XVII. Sei lá se era meu parente, se não era ficou sendo, pois em troca de umas plantas e de alguns metros de pedra e areia, um pesquisador diletante escreveu um lindo artigo sobre o herói e seus feitos nas páginas do jornal de maior circulação da capital. Saiu num Domingo, dia em que os burgueses leem jornais no terraço. A matéria finalizava assim: “O conhecido engenheiro, Dr. F. é o único remanescente e descendente direto do Capitão-General S., fidalgo da Casa Real, Alcaide-mor e Comendador da Ordem de São Tiago, no Estado do P.”

O golpe atingiu o alvo. O joão-ninguém que eu era escondia o jogo, diziam, homem de ascendência nobre, imagine, de família fidalga, um verdadeiro continuador da nobreza no Estado.

A burguesia é de morte. Bastou uma notícia no jornal para que nos dias seguintes eu ser badalado nas colunas sociais e até ser assediado nas festas por dondocas solteironas. Só precisava naquele momento saber administrar o golpe. Então me enfurnei nos livros de História ajudado pelo falso historiador em troca de cimentos e tijolos. Juntos fizemos a árvore genealógica parecer verdadeira, e foi um alívio descobrirmos nos códices do Arquivo Público Estadual uma carta do governador Capitão-General a El-Rei, solicitando sua volta a Portugal por causa das fortes dores nos hipocôndrios em função da má qualidade da água e dos alimentos. Suplicava a compreensão de Sua Majestade, pois servi-la era a grande honra de sua família, da qual, como último herdeiro, precisava tomar seu lugar nas vinhas de Vale D’ Ouro e rogar ao bondoso Deus que assaz lhe desse proteção e vida longa pra conseguir seu intento.

Se ele viveu e teve filhos, nem eu nem o historiador conseguimos saber. Para todos os efeitos seus atos e os de seus descendentes continuavam valendo nos artigos do professor de História, que, nessa altura, pela sua cumplicidade e pela projeção do meu nome, já estava com a casa pronta, só faltavam os azulejos do banheiro.

Durante uns cinco meses o assunto nas rodas dos bares e festas era sobre a história dos antepassados. Chegavam comigo e falavam de seus ancestrais, de nobreza, de como deviam ser bons aqueles tempos na metrópole portuguesa, ou, no mínimo, na corte imperial brasileira. Eu tratava os tempos coloniais como os mais heroicos, de uma época em que se precisava ser macho pra viver, porque cada passo dado era uma luta a ser vencida, etc., etc. … Graças às leituras eu possuía segurança de conhecimento, boa conversa e uma fértil imaginação.

Os intelectuais burgueses, travestidos de socialistas, perguntavam por que eu não escrevia ou romanceava a saga da minha família. Achavam que eu poderia ganhar muito dinheiro se pudesse conseguir recursos para produzir um filme. “Fala com o pessoal da Embrafilme, contrata o Comparato para escrever o roteiro…” Fácil, fácil para eles. Misturavam assuntos históricos com religião, chegavam ao cúmulo de dizer que, de repente, eu poderia ser a reencarnação do Capitão-General ou que fulano já foi um faraó, que beltrana teria sido uma prostituta do bas-fond de Paris no período napoleônico, ou que o famoso cirurgião, Dr. W., era um médium competente e apregoava ter sido discípulo de um druida na Escócia em tempos imemoriais. Eu engoli mil bobagens e escutei milhões de asneiras, não obstante concordasse parcialmente com quase tudo. Aliás, só tinha de concordar com aquelas futilidades, pois queria mesmo levar meus interesses à frente.

***

No balcão de um bar conheci Gianni, que já me conhecia de nome e respeitava a minha famosa “nobreza”. Com ela aprendi que só um Bloody Mary bem dosado dá a arrancada para uma noite de prazer inesquecível. A pimenta-do-reino estimula o amor, ela dizia, desce pela garganta em fogo brando para arder a brasa que temos dentro de nós. Falava assim, a boêmia. Em tudo, dos gestos artificiais ao linguajar ultrapassado, não obstante sempre segura de seus conceitos, percebia-se nela uma angústia que aflorava, uma revolta contra os valores vazios de seu meio e uma dor de latejar os lábios quando falava. A insurreta Gianni não lamentava a vida, combatia o imobilismo da sociedade, o ócio, os preconceitos e as vicissitudes suspeitas dos que lhe cercavam. Combatia a tudo… Só com palavras, coitada. A ricaça fraquejava e desmoronava depois do discurso inflamado. Era uma gladiadora no seus sonhos efêmeros. Pediu ajuda a mim. Eu dei. Não sei bem o que houve, mas aprendi a amar aquele drink, tanto que convenci Gianni a ficar comigo. Não houve nenhum início de resistência e nossa relação foi se fortalecendo dia a dia, drink a drink. O que é que eu podia esperar de uma mulher descasada, mal-amada e com um passado cheio de mágoas e com uma rede de relações fragmentadas àquela altura?

***

Na pior das conjecturas, para mim, Elna seria aquele protótipo de amiga chata, pré-fabricada na adversidade, daquelas inconvenientes, mantenedoras de estímulos nada razoáveis a quaisquer problemas emocionais. E Gianni me falava tanto dela que, confesso, cheguei a ter ciúmes. “Outra balzaquiana desocupada” eu pensara, mas não falei. “Sem ter o que fazer procura ajudar a amiga e não ajuda porra nenhuma. Ainda bem que te conheci quando ela estava fazendo mestrado em Artes na Alemanha”. Cartas e postais de prédios antigos iluminavam o rosto de minha mulher. Elna achou o máximo termos casado. Uma vez ouvi o trecho: “Ah, querida, pegar um homem maduro é como fisgar um peixe arisco. Nossos machões estão cada vez mais decadentes. Eu te parabenizo, Gianni, a América do sul está prestes a cair sob nossos pés. Serão quinhentos anos que se romperão ao redor único das mãos da mulher. Em pouco tempo conhecerei teu marido, teu nobre tupiniquim colorido de penas de arara”. Esse dia chegou. Fui amargar minha primeira e real solidão tomando Campari com soda no bar da esquina. Perdi a mulher, achei.

Não. Em casa as duas estavam nuas na cama me esperando. Nenhuma palavra. Ray Conniff tocava na vitrola. Ray Conniff, ora essa, o som de fundo da suruba. Uma bacanal com a própria mulher e a amiga. Tudo bem, as doses não me afetaram no desempenho. Aceitei, claro que sim, era uma fantasia rara de se realizar e o prazer não mede a dimensão do sentimento nessas horas. O que mais valeu, no entanto, foi ter experimentado, pela primeira vez, toda a passividade que jamais pensei que um dia teria. Valeu pelos gozos múltiplos e infernais. Técnicas da milenar Germânia transculturadas pelo corpo e pelas mãos de uma pseudo-viking interessada em guerrear com os machões do Novo Mundo. Perdi a guerra. As Amazonas venceram e queimaram os despojos do vencido. Que seus deuses sejam louvados no quadrilátero da cama!

***

Ai, estas dores nas costas! A cama de ferro arqueada e no fundo a concavidade de dois corpos nus. Um de leite, outro de bronze, dormem, inertes, sem dar a mínima para a luz penetrando na janela. Tropeço em latas de cerveja, faço a barba com o mesmo aparelho que depilou as púbis devoradoras daquelas mulheres sanguinárias. Sigo para a obra com a consciência ardendo por ter derrubado um edifício de conceitos. Um erro de cálculo. Eu jamais havia errado na minha profissão, mas ali naquele cenário…

Errei dia após dia. Implodi fortificações coloniais construídas pelos meus nobres antepassados, sólidas igrejas e prédios de concreto e ferro. Nem calculava mais meus erros. Maculei minha profissão num ímpeto dilacerante. A integral esfacelou-se no meio do enunciado. Fiz besteira? Não. Elna, a do capacete bárbaro, e Gianni, a uiara devoradora, se movem em sôfregos rituais quando eu, o totem, o ídolo antropomorfo prostra-se no campo de batalha.

***

Ligar para esses pulhas do Society eu não ligo. Podem insinuar, tentar puxar conversa que de mim não arrancam nada. Temos, nós três, um segredo eivado de detalhes que só nós sabemos. Eu sei que é trivial, é prática constante uma transa dessas para eles. Só que ao meio da nossa, permeia uma contenda na qual as mulheres sempre vencem. Eu só perco porque não sei mais calcular. Não tenho e nem quero dados, só resultados. Isso me basta.