A menina raptada pela luz – Conto de Júlio Miragaia – @juliomiragaia

Conto de Júlio Miragaia

Depois que Maria Lourdes Ramos foi levada pela luz, Raimundo teimou em deixar, todas as noites, meia dúzia de velas brancas fincadas em parafina ao redor da cama da criança e outra meia dúzia de velas ao redor da bananeira do quintal.

Apesar das chuvas quase diárias no mês de maio, as poças de lama já não transbordavam de baratas d’água como em janeiro e era possível ouvir da cozinha, depois do ritual, as botas molhadas do velho adentrando o piso de tábuas frouxas da casa.

Um vento forte e agudo, como o coral de visagens, assoprava sobre a porta da área de serviço, empurrada a passos lentos para dentro.

Tendo passado a terceira geração de moradores, já não havia naquele lar o frescor do cheiro de casa nova dos tempos dos avós de Raimundo. A umidade acumulada nos invernos amazônicos escureceu quase todas as paredes de madeira.

A ventania da noite também empurrava com força no varal as poucas roupas da família ir à igreja.

O vestido xadrez preto e branco de Maria Lourdes Ramos, a camisa social branca de Raimundo e a saia vermelha de Raquel eram iluminados, à distância, somente pelas tristes velas no quintal em homenagem à menina raptada pela luz.

Super-homem – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu vi o Super-Homem. Estive mesmo com ele em Macapá, quando por ocasião da fundação da Cooperativa dos Catadores de Material Reciclável. Cooperativa esta que incluía catadores de jornal, papelão, garrafas de vidro, garrafas de plástico, kryptonitas, latinhas de refrigerantes, cervejas e afins.

Estava muito calor na sede da cooperativa – CMRCA – quando ele chegou. Confesso que refrescou o local. Não que o Super-Homem fosse gay. Isto, nem pensar! Até por que alguns meses depois dos cinco dias que ele permaneceu em Macapá, nasceram na cidade muitas crianças, e entre elas muitas que costumam amarrar capas vermelhas no pescoço e sair correndo pelas ruas e quintais, querendo voar. Parece instinto, DNA, coisa que o valha.

D.Faustina mesmo, diz ter visto seu neto menorzinho flutuar na laje em direção a uma pipa com sucesso. E sua filha, por acaso, era arrumadeira de hotel.

Mas voltando à entrada do Super-Homem no recinto da CMRCA: -Sou testemunha de que refrescou o local, e não foi só isto, ele perfumou. Depois soube que viera sobrevoando os Alpes, e trouxera no corpo a fragrância de uma rara flor que só nasce e cresce por lá, a mais de 2.600 metros, segundo explicação dada pelo Alípio Banhos, responsável pela agência de venda de passagens da única empresa aérea na cidade, e que entendia de vôos.

A chegada do Super-Homem pousando, até melhor dizendo… brecando, pois eu mesmo vi quando ele entrou, com um ruído semelhante ao frear súbito de carros em grande velocidade, cantando os pneus, quero dizer… sapatos, que eu mesmo vi, tinham os bicos congelados e a região do calcanhar em brasa. E como mais tarde explicou o Alípio Banhos…artificialmente ele invertera a direção das correntes de ar quente e frio para provocar a desaceleração, como um Ciclone, o que provocou o esfriamento do local.

O que conta é que o Super-Homem cortou a fita inaugural. Cortou não é bem o termo… arrebentou-a. E não fez discurso. Saiu logo depois, com o braço no ombro do governador que foi com ele até o hotel, andando, pois a autoridade recusara-se terminantemente a voar com o ilustre convidado.

O homem de aço pareceu-me bem disposto. Confesso que, como médico do hospital local, torci um pouco para que adoecesse, resfriasse, coisa leve, para que eu pudesse examina-lo, ausculta-lo, realizar um eletrocardiograma, nunca pensando em Raio-X. Receitar-lhe coisas caseiras como um chá de alho e trezentas mg de aspirina.

Jamais pensaria em mandar aplicar-lhe uma Benzetacyl. Que agulha, meu Deus, que agulha furaria seus músculos de aço?

De forma que soube mais tarde que nem banheiro ele havia usado. Comera um líquido feito com mel e jabuticabas. Deitara de uniforme mesmo. No parapeito da janela do apartamento do décimo quinto andar do hotel em que estava e recebeu muitas descargas.

Era uma das noites em que coincidentemente desabou uma destas rápidas tempestades tropicais.

E nem seu Souza. Hoje (09 de outubro de 2004), eu soube que ele morreu. Será que resfriou mesmo como eu temia, ao mudar tão rapidamente de uma temperatura de um dia frio de inverno, na cidade de Nova York, para o calor escaldante de Macapá?

Não me perdoo por não ter ido até o hotel com a minha maleta de primeiros socorros, tomado o elevador e, ignorando toda a minha timidez, chegar até a frente do apartamento em que ele estava hospedado, ter batido palmas suavemente e chamado: Senhor Super-Homem… Senhor Super-Homem… com certeza ele, ouvindo muito vem, viria até a porta aonde calmamente eu aguardava que ele abrisse, mas por certo já teria me visto com seu olhar de Raio-X. Ao abri-la eu me apresentaria um pouco gago pela emoção e atordoado pelo embaraço:

“Boa noite, Mister Senhor Super-Homem… Sou seu fã e sou o médico da cidade. Vim saber como o senhor está passando. O senhor está bem? O senhor precisa de meus cuidados? Está febril. Está resfriado. Posso medir-lhe a pressão? Posso contar-lhe o pulso? Está pálido. Está tonto. Está Zorro… Oh, oh… Desculpe. Embaralhei os heróis.

*Livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial (II Edição) – 2016

A Seringa contaminada de Bambo, o Zagueiro do Futlama (Conto porreta de Fernando Canto sobre o “Bambolê”, que aterrorizou Macapá nos anos 90)

São três da tarde, o sol está quente que dói. E o cara na zaga deixa a bola passar: gol contra o nosso time. De novo ele faz isso. Tamanho cara, eu penso, parece que faz tudo pra gente perder. Culpa do Juninho que não veio hoje porque arranjou o primeiro emprego e indicou o negão aí que é só tamanho e nem sabe pra onde a bola vai. Dou-lhe uma esculhambação, mas ele não liga. Nem tem como substituí-lo, hoje é segunda-feira, tem uns quatro do nosso time trabalhando no comércio. Eu não estou nem aí… Sou funcionário público mesmo…

A maré vem enchendo e a gente vai ter que abandonar o campo na praia. Nosso time era quase imbatível, mas esse cara… Putz! 5 X 0 e saímos ridicularizados pelo adversário. Agora todo mundo vai saber. Vão nos gozar o ano todo. Isso nunca tinha acontecido, éramos os reis do futebol de praia, do futlama, digo, como chamamos aqui em nossa cidade, porque o campo que utilizamos é o leito do rio, que tem uma sedimentação mais sólida depois que a ábardupedrogua seca. Jogamos entre as marés, até o rio encher. E o nosso time, o “Mergulhão”, era o melhor. Era. Antes desse vexame.

*******

É Sexta-feira. Estou no bar da Preta, lá perto do trapiche, tomando uma loura, esperando a namorada e a lua cheia que vem linda, brotando do meio do rio, quando vejo a confusão: gente correndo, polícia chegando com suas sirenes e luzes e um negão descontrolado:

Vou contaminar todo mundo, eu. Ninguém encosta que eu faço o que digo.

Caramba! É o cara ruim de bola da defesa do nosso time. Está com uma seringa na mão e aparenta estar drogado. Os garçons dizem que é um tal de “Bambo”, um menor delinquente, destemido e inconsequente. Fugiu novamente do Centro que abriga menores infratores e quer assaltar todo mundo. Esconde-se atrás de uma coluna e salta como um gato sobre um casal. Ameaça enfiar a seringa na moça, mas ela desmaia e o rapaz foge covardemente sem prestar auxílio à namorada. Mesmo na mira dos policiais “Bambo” consegue segurar uma garçonete do bar contíguo ao que eu estou escondido junto ao balcão. Ela tenta se desvencilhar dos braços enormes do agressor, mas ele a aperta cada vez com mais força. O garçom que se esconde ao meu lado me diz que o cara já contaminou duas pessoas com o sangue dele, que tem AIDS.

Falo baixinho, cético, quase sussurrando: – Mas como esse cara é aidético… Desse tamanho? Acho que ele está blefando. A polícia se aproxima e o cara está irredutível no seu propósito.

– Joga a seringa no chão. Ordena o soldado, segurando o revólver com as duas mãos. – Larga a moça e joga isso logo.

Os olhos do bandido volteiam quase saindo das órbitas, de um jeito que procuram algo no céu. São grandes e negros. Lá fora o rio enche e as ondas do Amazonas se embrabecem com o vento invernal. A lua sai por entre nuvens escuras e uma chuva contumaz desaba na Beira-rio. Ele me vê e parece me reconhecer. Caraca! Ele me viu e diz ao policial que quer trocar a moça por mim. Só assim poderá negociar sua vida.

Um tenente chega comigo e pergunta se eu o conheço. Titubeio na afirmação positiva. Surpreendentemente, e como que hipnotizado por aqueles olhos, caminho em sua direção desobedecendo às ordens do oficial. Peço que não atirem e me posiciono na frente dele. Ele larga a garçonete e me segura pelo pescoço. Dá pra ver a seringa com uns 200 ml de sangue dentro dela. Um sangue claro, semelhante a suco de groselha. Falo para ele:

– Te entrega ou eles vão te matar.

– Não vão, não. A imprensa já tá chegando.

– O que tu queres comigo?

– Quero jogar no teu time de futlama, no “Mergulhão”.

Fiquei mais lívido que quando fui trocado pela garçonete. Puta merda, além de bandido o cara é ruim demais. – Mas por que, cara? Pergunto.

– É que gostei do nome do time e sou amigo do Juninho.

Fiquei pensando, pensando. – Está bem. Quando tu saíres do Centro que tu estavas passa lá com a gente que vais ter lugar garantido, eu te juro.

Legal, disse ele. Eu sou gente boa, eu. Arrematou naquela linguagem própria de adolescentes pobres, membros de gangues suburbanas. Seus olhos eram grandes, mas tristes. Estavam marejados.

Ainda sob a mira dos revólveres dos policiais e sob o foco das câmeras de televisão e celulares de curiosos, ele largou meu pescoço e a seringa supostamente contaminada. Os policiais lhe deram voz de prisão e tentaram lhe algemar com truculência. Mas antes de entrar na viatura, “Bambo” conseguiu puxar do bolso traseiro da bermuda estampada de camuflagem militar, outra seringa. Ao mesmo tempo em que tentava se desvencilhar das pancadas, aplicou a agulha no rosto de um soldado. Levou imediatamente quatro balaços no peito e caiu no asfalto. Os policiais afastaram os repórteres e curiosos e saíram em velocidade com o corpo do menor e o militar que berrava de dor. Foi tudo muito rápido.

*******

Só me restava agora tomar mais uma gelada para aliviar a tensão, já que não fui intimado para depor na delegacia. A namorada chegou preocupada. Já sabia do acontecimento pelas redes sociais. E bebeu comigo para me consolar.

Ainda era cedo. A nuvem escura havia se dissipado e o rio bebia o brilho da lua fêmea. Estendi meu olhar sobre o Amazonas se enchendo de luar e vi um mergulhão solitário emergindo d’água, desenhando a silhueta acima da Pedra do Guindaste, voando na direção ao norte. Parecia uma alma escura a buscar desesperadamente seu ninhal.

Comentei com a namorada o quanto tudo aquilo havia me deixado intrigado. Até cheguei a filosofar sobre a imagem do mergulhão retardatário. Ficamos um tempão olhando o rio e bebendo cerveja. E não demorou muito para o céu se fechar novamente com raios e trovões e nuvens escuras bailando ao vento, a cobrir o magnífico luar.

Não são simplesmente nuvens de chuva, me disse o velho garçom, sorrindo com a gorjeta que lhe dei ao pagar a conta e justificar minha ida por causa da chuva que logo desabaria. – Quando matam um bandido por aqui acontece isso, me disse ele com calma.

– Olhe de novo.

Perscrutei o céu como quem busca desvendar uma ilusão de ótica desenhada. As nuvens eram bandos de mergulhões reunidos, voando em círculos, prontos para pescar nas águas profundas do rio naquela noite trágica.

Caixa Amarela – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Joca guardava alguma coisa atrás da porta, dentro de uma caixa amarela, do tamanho de um punho fechado.

Guardava quando vinha a tarde, e soava o sino da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, que fica lá no fim da rua próxima a Praça.

Muitas vezes o som do sino era abafado pelo barulho das andorinhas, que em bandos passavam rasantes por cima da vala.

Foto: Elton Tavares

Joca sentia o cheiro do som do sino. Ia até o quintal e cavava a esmo, e encontrava a caixa, e com ela debaixo do braço esquerdo ia com rapidez pô-la atrás da porta. Atrás da porta do quarto de Alípio. Seria para protegê-las do luar das luas de Marte?

Esta porta ficava proibida de ser aberta até que quase amanhecesse o dia seguinte, quando Joca pegava a caixa amarela, e ia enterrar no quintal. Alípio entrava e saia no quarto pelo vão, entre a porta e a parede.

O dia em que Joca foi pescar era um dia frio de Julho, o dia dezenove de Julho, o dia em que o sol sai em Câncer, e avança até a oitava casa astral, em Leão. Neste dia, ficamos sozinho, eu e o cão. Um vira-lata muito esperto de apelido Pulg Dog, um ônibus de pulgas. Um cão peludo, alegre, vivaz, perseguidor de gafanhotos, baratas e ratos, pela beira da vala, em frente a casa.

A vala, que sempre enchia com as grandes águas, agora estava cheia.

O cão perseguindo uma barata entrou atrás da porta do quarto de Alípio.

Eu sentado na sala estudando, ouvi o barulho do som do sino, e um arco-íris se estendeu no corredor até sumir no ralo.

Mais à noite o cão passou várias vezes uivando e voando pela frente da casa dentro do arco-íris, sempre quando o sino tocava.

Os patos selvagens vindos do Alasca sobrevoavam a casa amando-se em grande algazarra. As cegonhas oriundas da Patagônia pousavam na mangueira ao lado, com suas pernas longas e depiladas. Doce era aroma dos arengues desovando na vala. Talvez alguns deles lembrassem de Daniel Boone, Davy Crockett.

Foto: Elton Tavares

Às vezes, o arco-íris parecia muito gelado, outras vezes apenas um espectro projetado nas retinas.

Eu sentado na sala observava tudo. Doutro lado da folhinha do Calendário ficava o futuro, que eu só alcançaria, se caminhasse descalço com os pés encharcados de chá.

E caminhar, é um sonho, que guardo quando acordo. Por isso coloquei um espelho, para o lado de fora da janela, para que os reflexos das estrelas do hemisfério Sul, iluminassem a vala.

E sinalizassem a casa. Para o Joca, e para o cão.

Joca chegou da pesca com os olhos vermelhos, a boca seca e dorso cortado a chicote. Maltratos do feitor de escravos, que centenas de anos ele guardava. Via-se que havia chorado.

Ninguém lhe contou nada, nem do cão, nem da caixa.

Dormiu tremendo de febre. De manhã foi ao quintal e se enterrou.

A tarde, o sino ficou calado. O cão mora comigo em um retrato desbotado, atrás do Calendário que não tem mais dias para contar.

*Do Livro “Defronte a boca da noite ficam os dias de Ontem”.

Meu Tataravô – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Meu tataravô namorou e casou com uma moça bem mais nova, honesta e trabalhadora que ele conheceu um dia em uma Tertúlia usando um vestido de tule azul, bonita e doce, viveu com ele até que a vida de ambos se fosse , juntos tiveram muitos filhos. Ele tinha uma tara enorme por tomarem banhos juntos, mas nunca tomaram.

O filho dele, meu bisavô, que em toda a sua vida nunca desmamou, criou dois cachorros … Baleia e Rex. Andava este casal de cães sempre juntos, caçando, correndo ou estragando a horta, latiam à noite para a lua cheia, e nunca tentaram fazer sexo entre si, por falta de paixão,diferença de tamanho, ou qualquer outra pulga.

Meu bisavô casou um dia depois do feriado de finados, alinhavou seu terno com fio de linha de outra cor, juntou os trocados que guardara em um cofre de barro. e com eles comprou duas garrafas de vinho, bebeu todo o vinho e com as garrafas vazias, matou os cães.

Minha avó nasceu dia três de três de mil novecentos e três, as três e três, de um parto difícil em que as parteiras, apenas três, se revezaram em crise de empurrões e empurramentos para faze-la nascer, depois recolheram a placenta fosforescente e brilhante e com ela fizeram um luminosos barbante que até hoje esta esticado entre a cozinha e o banheiro no fundo do quintal, e a noite serve de guia para este trajeto entre a casa e os sanitários.

Casou virgem com um rapaz do Leste comprador de garrafas, no meio das quais ambos foram encontrados pelo seu pai, copulando em paz.

Das tias que eu tive a mais querida foi Caetana, que morreu ainda muito moça, vitima da mistura de cremes e poções com as quais pretendia manter-se eternamente jovem.

Já tia Benedita deu a maior sorte, sua morte foi devida a grande onda de frio que varreu o Pará em 1934, dois anos antes de ela nascer, mesmo assim comprou ações da Panair, e foi Diretora do colégio onde Jânio, iniciou a plagiar o dicionário de Buarque de Holanda.

Mamãe foi batizada e ainda de fraldas semidescartáveis foi lecionar em Sapé. Lá tio Edir e seu irmão Elzimar foram presos em Cabo Branco por ensinarem os tubarões e os saltimbancos, a pescar Arenque.

Não tiveram muita sorte, engolidos por uma Baleia foram encontrados pelos esquimós no Pólo Norte, e hoje são totens.

Eu os reconheci, por que os vi, em uma foto na mão de uma turista Argentina, moradora no bairro do Jurunas em Belém do Pará. De nome Mirassol Catalina. Era o ano de mil novecentos e sessenta e seis. Dai batizarem o anfíbio avião da FAB, de Catalina em sua homenagem, depois do passional crime,cometido contra ela, por um sargento que a amava. Que fugiu a nado para Cotijuba não chegou a ser preso e isso ficou por isso.

Muita gente nasceu na minha família e nem foram tantos, eu nasci um pouco adiante, quando Maluf asfaltou a Galiléia. Muita gente nasceu e não foram tantos, e não tão poucos e não tão importantes. Como o Homem Elefante e Elisabeth Taylor. Ainda, primos distantes, recordo…Herodes e o Alferes Tiradentes. E da descendência das filhas do meu tataravô, e dos primos do avô, e dos sobrinhos de minhas tias, Pele e Garrincha.

De coisas famosas  realizadas pelos meus, guardo a letra de um hino composto por meu padrinho, para uma cidade descoberta por Cabral, duas ostras magrinhas que imitam castanholas, uma pizza que quando se corta a borda, toca musica andaluz, e seis secas azeitonas pretas. E eu, que sobrei para fazer este relatório.

Que leio agora para a reunião centenária da família Ferreira.

Relatório para parcos ouvintes, entretidos, cada um em passar geleia em seu meio naco de pão, e tomar seu meio cálice de Rum. Cada um , com uma metade na mão e a outra metade na boca.Sentados como em uma grande Ceia. Sisudos cenhos fechados de gorros e casacos de lã. Todos em silencio, ouvindo-me sapatear sobre a mesa, descalço, fimosado e nu.

* Do livro Antologia Paulista, de 2015, publicado pela Rumo Editorial.

O DIA DO MEU ANIVERSÁRIO – Continho apocalíptico de Fernando Canto

Continho apocalíptico de Fernando Canto

Quando eu tinha 106 anos, a idade do meu avô morto no sítio dele num incêndio de setembro, eu queria viver um tempo em que no planeta não existissem mais pessoas se matando por deus e por Dinheiro (– Ô utopia velha besta!). Queria viver num tempo em que o carnaval matasse o tempo e abrigasse só alegria. Viver num tempo de expressões puras em que nenhuma fagulha de bomba, uma cinza de lava vulcânica, um novo vírus fugido de laboratório caísse sobre mim. Queria mesmo que uma pequena paina de samaúma flanasse no céu girando como uma borboleta sem rumo e pousasse sobre mim como pousa a luz do sol, assim quando eu ousava abrir minhas janelas, descerrando as grades para enfrentar sem medo os perigos rondantes. E foram tantos os perigos que nem mais os lembro, nem saberia contá-los. Venci a todos.

Carrego em minhas costas uma longa idade, eu sei. Mas ainda ando cheio de esperança e sonhos, apesar da cadeira de rodas. Ardo na expectativa de assistir ao futebol na TV nas tardes de domingo, acompanhado de um gole de aguardente para matar a saudade do meu tempo velho, e acelerá-lo. Hoje minhas memórias pertencem aos outros. Trago em mim apenas minha própria vida, imperturbável até a morte, respaldado que estou por um contrato assinado em cartório.

Lá fora a política e a ganância dos humanos não morreu de dor. Elas não doem para quem vive dela. Doem para os dependentes, para os bajuladores que há séculos rodeiam os poderosos. Doem para os religiosos, que em nome do que acreditam, de tudo fazem, ao contrário do que querem acreditar. Quem dói em mim é a própria dor, quando chega lancinante, emergindo dos ossos e dos tendões. Nem digo das dores do coração, do rim e do fígado transplantados, pois tenho remédios eficazes. Mesmo assim sou otimista e tenho sonhos e esperanças.

Se fui rico como poucos, já não tenho mais amigos, nem parentes nem herdeiros. Se fui detentor de poder político e econômico, a troco do suor dos pobres, agora tenho uma ótima renda que me permite usufruir dos avanços da tecnologia, principalmente das descobertas da química e da medicina deste mundo capitalista, mesmo que na solidão – meu destino de viver uma vida longa vida – fique à mercê das ordens de cuidadores num degredo social necessário – e não voluntário. Num tempo de esperança – e não de espera – da morte.

Hoje alguém me disse que completo 116 anos, que pareço jovem. É que estou sem rugas e com uma grande cabeleira preta, mas não rio mais. Nada em mim é meu, nem a memória nem meus esquecimentos de lampejo, como já disse antes. KKKKK! Nem meus dentes os tenho mais para sorrir. São de titânio. Trago sob a pele – só eu sei – as verdadeiras rugas – ruas da face – que não aparecem no meu rosto verdadeiro. Ninguém me cumprimenta. Não há bolo de chocolate, não cantam parabéns a você nesta data querida. Não existe o primeiro pedaço vai para quem? Talvez porque não haveria lugar para tantas velas e o pulmão não aguentaria soprá-los de uma só vez. Ainda assim persisto no meu otimismo. Lá fora está tudo queimando como no dia em que meu avô morreu.

Acho que este mundo vai mudar devido a tempestade de fogo dos meteoritos insólitos e seus bólidos resplandecentes. Vai mudar, sim, pela ablução ardente dos degenerados, dos sobreviventes. Ora se vai. Já disse a vocês, que me cercam e rasgam minhas vestes, que a dor é a origem da espécie e os humanos chovem antes da morte vaticinada. Ah, eu não paro de sonhar e de ter esperança em ver este mundo destruído.

O NOIVADO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Tenho duas preocupações na minha cabeça. Hoje, 17 de abril de 1968. Delas, a primeira são as janelas da repartição pública em que trabalhei trinta anos. A segunda é sua certeza de que devemos viver o resto de nossas vidas juntos.

A primeira tenho quase certeza de que com um pouco de boa massa de vidraceiro contornarei o problema. Estou aposentado, mas não perdi o raciocínio. É certo que me encho de sono quando vejo o mar se arrebentar a cada minuto contra os arrecifes. Ele é como eu. Tudo o que fiz, repeti tantas vezes que decorei.

Decorei o caminho para Olinda. A burocracia do serviço público. Meus conhecimentos sobre insetos. A conversa semanal com meus amigos reunidos neste apartamento falando sobre quadros geométricos, e nuances de cores do nanquim.

Tenho a impressão que são duas e quarenta e cinco da manhã. Com você não sei como resolverei sem o som da marcha nupcial: tamtamtam…tamtamtam…tamtamtam…

Volto ao banheiro para dar descarga no vaso sanitário. Um cheiro de rato podre me aborrece desde a semana passada.
Rato podre no décimo terceiro andar?

Há duas semanas tenho lhe magoado com o meu “não” ao nosso casamento. Penteio o que resta dos meus cabelos com um pente largo sem cabo. Pareço o meu pai no espelho.
E você minha mãe.

E você, quando desce para ir a praia comigo ou para irmos ao Supermercado, ainda me segura pelas mãos, e puxa meus sessenta e quatro quilos, nestes um e setenta e cinco de altura, como se eu fosse a sacola que trazemos sempre abarrotada de latas e vidros. Não gosta de me deixar ir a rua sozinho, pois diz que eu atraio formigas.

Sempre esquece meu aparelho descartável com que aparo os pelos brancos de uma barba mal resolvida, arruma minhas meias em pares trocados, e entope o ralo do banheiro com o sabonete amassado. Para que formigas não entrem pelo ralo e procurem minhas roupas , que eu espalho pelo cantos do apartamento.

Olho meu terno de Gabardine, vejo uns pontos puídos aqui, e ali. Vejo formigas. Estou na repatição.

Não vou retira-lo do corpo. E ficar de camisa social. Deve ter algumas formigas, pela roupa, desconfio pelos buraquinhos feitos no tecido, aqui e ali…

Mas como poderei deslocar a enorme flanela que protege minha escrivaninha para subir e retirar o vidro da janela mais alta.

As mangas apertadas do paletó me impedem amplos movimentos. E se o vidro cair? Já não se fazem mais vidros deste padrão, desenhado, uma Deusa e um Fauno.

Hoje daqui da janela, do decimo terceiro andar. Estou me demorando mais do que o costume, olhando longe a espuma do mar. Venta muito.

Você insiste há vinte anos em casar, ter filhos e esperar netos que entrem correndo pelo corredor com os sapatos sujos de areia. Vejo-a balançando lentamente, na parede sua sombra projetada pela luz mortiça da sala, parece o movimento das aranhas, mas são suas pernas sincronizadas com as sombras que elas projetam.

Quer ter filhos, mas temo que você não resista a uma cesariana. Afinal tem duas pontes de safena, e uma perturbação espiritual que se manifesta quando diz enxergar Nossa Senhora de Lourdes lá no canto esquerdo da sala.

E se eu lhe levar embora desta redoma de vidro em que lhe tranquei há dois meses sem comer e beber, só para tomar jeito?

Quem colocará massa de vidraceiro nos meus ouvidos quando as formigas invadirem Recife.

*Do livro “Antena de Arame” – Editora Rumo Editorial – 2009

Temporada de caça – Conto de Lulih Rojanski – Republicado por conta do Dia Mundial do Gato

Conto de Lulih Rojanski

Assim que Hamingway partiu com seus cães farejadores para a temporada de caça, os gatos invadiram a casa, rasgaram as cortinas, urinaram nos tapetes, abriram fendas nos sofás, de onde brotaram esponjas encardidas, derrubaram do aparador o cristal, rasgaram livros raros, espojaram-se nas camas por dias inteiros, e por noites inteiras lançaram do telhado as telhas, de modo que choveu muito dentro da casa.

Deixaram as janelas abertas para que entrassem os ventos da estação, e num rompante de inspiração, atearam fogo aos colchões, no quintal. Foi a sua homenagem aos felinos que chegariam caçados.

*Do livro Gatos Pingados.
**Republicado por conta do Dia Mundial do Gato.

Era uma vez um bando de jornalistas – Distopia tragicômica de Fernando Canto

Temos um grupo de WhatsApp, popular aplicativo de conversas pela internet, chamado “Fuleiragem com Cerveja”. Lá a gente brinca, fala coisas sérias e bobagens. A maioria dos componentes são jornalistas. Ontem (30), após uma enxurrada de “figurinhas”, o escritor Fernando Canto postou:

“Ninguém escreve neste grupo de jornalista”. Aí passamos uns cinco minutos tirando sarro do amigo. Eu mesmo coloquei: “já escrevo o dia todo, rapá”. E uma amiga: “não escrevo, estou aqui pela cerveja”. Logo em seguida, o genial e hilário escritor publicou esse continho, cheio de ironia fina e tragicomédia distópica:

Era uma vez um bando de jornalistas – Distopia tragicômica de Fernando Canto

Era uma vez um bando de jornalistas cansados e coronovirados que perderam os dedos e o paladar.

Toda noite quando chegavam do trabalho iam beber umas brejas sem saber se era mesmo cerveja o que bebiam. O dono do pub ria e ria . Kkkkk. Os “otaros” tomavam mijo gelado e nem percebiam.

Um dia, um gordo assessor de comunicação, experiente que só, percebeu a filhadaputisse do master da beer house e quebrou o estabelecimento como um ninja panda todo de preto.

A polícia foi chamada. Eles explicaram que suas línguas só serviam pra falar e não tinham mais dedos para fazer sexo.

Os policiais se compadeceram deles e os executaram chorando, naquela noite fatídica que comoveu todo mundo na avenida Francisco Xavier de Mendonça Furtado.

Uma assessora jurídica do Tribunal de Justiça olhou os gorpos gordões em decúbito dorsal na paisagem da avenida, naquela noite em que a temperatura baixava e disse:

– É melhor tacar fogo nesses energúmenos anti-heróis antes que caia uma tempestade de neve tropical.

Todo mundo foi embora e o dia amanheceu branco como a espuma da cerveja de urina.

O legista viu os cadáveres e vomitou nauseabundo, pois jamais tinha visto tamanha crueldade com jornalistas que nunca mais haviam escrito nem porra.

*É por essas e outras que amo ser amigo dessas figuras (risos). 

Anjos – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Madalena

Sempre que é dezembro, Maria descobre em seu jardim estranhas penas brancas misturadas às pétalas multicoloridas que caem das flores. Enquanto colhe lírios para enfeitar a casa, às vezes pega uma pena e fica pensativa, rodando-a entre os dedos. Maria nunca viu um pássaro branco sobrevoando o jardim. Recolhe as penas e guarda na mesma caixa em que as tem guardado há anos. Maria sonha com o dezembro em que verá os anjos do Senhor brincando em seu jardim.

João

Madalena diz que as que se chamam Maria recebem a visita de anjos no mês de dezembro. Maria diz que nunca viu nenhum, mas guarda debaixo da cama uma caixa repleta de penas brancas que recolhe do jardim a cada dezembro. Algumas têm sinais de sangue nas raízes. José, por sua vez, guarda o segredo de que já viu um anjo de asas feridas, chorando ao pé da oliveira do jardim de Maria, no meio da noite… Então viu suas mãos enrugadas, seu crânio pelado, e foi impossível não confrontar a imagem daquela criatura triste com suas ilusões infantis. Ajudou o anjo a levantar-se, até que alçasse um voo trôpego na escuridão. Contou a mim, mas quando quis contar para Maria, esqueceu-se como se dizia a palavra “anjo”, como se dizia “jardim”, “madrugada”, “oliveira”…

Maria

Quando acordei, ainda estava escuro. Abri a porta dos fundos, olhei para o relógio do céu e não consegui ver as horas. Choveu a noite inteira. Os cães ladraram. Preparei meu café, preto e forte, e fui tomá-lo sob a oliveira. Entre as folhas caídas havia grandes penas brancas com sinais de sangue na raiz. Juntei uma delas, olhei novamente para o céu, mas não consegui ver mais que os nimbos cinzentos que impediam a passagem do sol. Todo dezembro é assim: anjos são enviados para observar, em segredo, a evolução das virtudes das famílias onde há uma Maria. Talvez a bíblia possa explicar, não sei, nunca a li. Os nimbos são o esconderijo perfeito para os combates sangrentos entre os que conservam um fio de esperança nos seres humanos e os que não suportam mais vigiar nossas vidas miseráveis.

José

Há anos Maria foi embora, mas eles não deixaram de vir. Não reconhecem a casa como minha e não compreendo o que continuam a esperar de mim, sem Maria. Meus dezembros são de insônia e desespero desde o dia em que surpreendi um deles me espiando pelas frinchas da veneziana na hora mais neutra da madrugada. Perguntei quem era, e ele me disse que até gostaria de ser alguém. Perguntei o que queria, e ele respondeu que o que queria mesmo era que Deus morresse. E me contou a verdade sobre as legiões. Foi naquele momento que vi o imenso vazio de seus olhos e o cansaço de seus ombros ósseos. Tinha ferimentos nas duas asas. Ontem foi véspera de Natal. Arcanjos, dominações e potestades promoveram a ceia infernal que sempre culmina com uma sangrenta batalha entre os que odeiam e os que amam a Deus. Sei que hoje, quando eu abrir a porta dos fundos, como em todas as manhãs de Natal desde que Maria foi embora, haverá, sob a oliveira, um querubim ou serafim que precisarei enterrar.

A MOEDA – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Os cães se espantaram com o barulho da pá de encontro à terra seca e dura. Ele arrumou as moedas que tilintavam dentro do bolso de modo que não ruidassem. E continuou a cavar. Cavava ali desde Janeiro.

O condutor da carroça de leite foi quem primeiro viu aquele vulto sob a lua cavando a esmo ao lado da Igreja.

Dona Doroteia e Dona Faustina que vinham rezando de cabeça baixa, um pouco depois das cinco horas da manhã, enxergaram o vulto como se fosse um fantasma debaixo da chuva fina.

Erguendo-se, e curvando-se.

– Voltamos Comadre Dorotea? – Calor que não Faustina, pode ser uma alma penada com a sina de cavar. Nós vamos para a Igreja. Para a Igreja iremos.

O padre no começo não se incomodou muito. Mas aquele era o terceiro mês. Que aquele homem cavava. O monte de terra que de início de avolumava próxima a Igreja, agora já impedia a visão dos fiéis que desciam a rua vindos lá do Porto do sal.

O padre já fora ter com ele. Até mesmo lhe levará uma caneca de água e um naco de pão. Objetos, que o homem apenas pusera sobre uma folha de papel que mais parecia um mapa de todo rabiscado. O homem cavava, chovesse, fizesse sol, de noite, ou de dia, como se não ficasse cansado nunca.

O próprio chão da Igreja já registrava rachaduras, pelas pancadas interruptas do homem com a sua enxada dentro do buraco, que agora ultrapassava alguns palmos acima da sua cabeça.

Um dia veio o Governador, o Prefeito, o Bispo da Capital e o Chefe de Polícia.

Vieram acompanhados de uma comitiva de tradutores, poliglotas, digitadores de Morse e entendidos no alfabeto dos surdos mudos. Veio o carro dos bombeiros que teve dificuldade em estacionar devida a largura da rua reduzida a um pequeno espaço entre dois montes enormes de terra. De longe ainda se avistava as duas torres da Igreja com seus relógios agora quase ao nível do monte de terra retirada do grande buraco.

O alvoroço foi quando alguém notou que a frente do Porto, este cavar desesperado provocará um afundamento desta margem da Baia, que via suas águas se encaminhando para o buraco, embora ainda estivessem dele separadas por uns dezoito metros de terro firme. E que muitos barcos navegando próximos ao canal, lutavam com suas velas e motores, para escapar do fluxo da correnteza, escavando a margem da baixa em direção ao buraco. E o homem cavava.

As autoridades gritaram por um megafone. Tenha cuidado vamos descer. Desceram tradutores. Telegrafistas. Especialistas na linguagem dos surdos mudos, em línguas mortas. Todos retornavam exaustos e desorientados. O homem falava um misto de Neozelandês arcaico.

Repetia Abazulu, Utulazu,e Oitibabo. Os jornais apregoavam que deviam prendê-lo. Uns militares propagavam sua explosão ali mesmo dentro do buraco, que agora já era uma grande cratera.

Depois D’maior…O Guarda Noturno da terceira rua após a Igreja o viu sentado na beira do buraco extenuado e sujo, já madrugada adentro, com alguma coisa na mão que parecia uma moeda.

E por outras noites seguidas notou que o cume do monte de terra perdia altura. O homem que cavará estava entupindo o buraco com a terra amontoada numa velocidade muito grande.

De maneira que a Romaria de Julho foi realizada na Igreja sem o incômodo das pancadas fortes do lado de fora, do cheiro de podre de pântano vindo do buraco, e da lama grudando nos sapatos dos fiéis.

Na eleição de Novembro o Governador se reelegeu.

Com o Slogan Abazulu Utuzalu Oitibabo.

 

*Osasco (SP) – BRASIL 2020.

O FANTASMA – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

É meia-noite, mas fantasma não existe. O meu carro deu prego em frente ao cemitério, mas fantasma não existe. O motor morreu o que pelas circunstâncias daria um trocadilho. Vejo o portão do cemitério se abrir e um homem, não um fantasma, caminhar na minha direção. O homem vem capengando – todo coveiro é coxo. É um homem baixo, magro, que veste um gibão e usa uma bengala.

Ele pergunta seu eu quero ajuda, eu lhe pergunto se é mecânico. Ele responde que não, que é coveiro, mas diz que todo mundo entende um pouco de carro. Eu lhe digo que não entendo nada. Ele dá uma olhada no motor e diz que a bateria morreu. Não gostei nada do “morreu” dele. Parece que foi dito de propósito. Ele volta ao cemitério: foi buscar uma bateria lá dentro para dar uma carga.

Depois de quinze minutos, nada. Fui atrás dele porque fantasma não existe. Vejo um homem vindo em minha direção. Este não manca. Eu lhe digo que vim atrás do coveiro, que ficou de trazer uma bateria para dar carga na do meu carro, mas não voltou. O homem responde que nem poderia voltar porque o único coveiro ali era ele. Eu lhe digo que não pode ser e lhe dou as características do coveiro: um homem baixo, magro, vestindo um gibão, que mancava e usava uma bengala. Ele me diz esse era o coveiro antigo, mas que já morrera há dez anos.

O coveiro vai embora, e eu fico só. A lua cheia toma o céu, enfeitando a noite, mas a escuridão parece piorar. Uma sombra passa sobre mim, desaparecendo no ar. É meia-noite ainda no meu relógio, que deve ter parado. De repente, ouço um uivo. Vejo alguém passar correndo em direção a outra rua, uma mulher de branco, muito pálida, vinda não sei de onde, entra no cemitério, um homem alto, roupa rasgada, coberta de areia, vai caminhando por ali.

Peço um Uber e vou para casa. Amanhã de manhã levarei um mecânico para ajeitar o meu carro. Entro em minha residência e tranco bem a porta. Ouço um cachorro – e não um lobo- uivar, porque fantasma não existe. Começa a chover e trovejar, há um tropel de cavalos, uma porta range, gritos vêm da rua, ouço um assobio, a luzes apagam, há alguma coisa estranha no banheiro e ela pula sobre mim. A nossa luta é encarniçada, e saímos rolando pelo chão…

As luzes voltam. Eu me vejo sozinho no assoalho com a camisa toda rasgada. Chamo a polícia, que chega rapidamente. Eles entram na casa e procuram por todos os cômodos, mas não encontram ninguém. Avisam outras viaturas sobre o fato criminoso. Pedem que amanhã eu vá na delegacia fazer o boletim de ocorrência. Quando eles saem, tranco novamente bem a porta, porque fantasma não existe.

A REVOLUÇÃO – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

Eu sabia que aqui seria ruim, mas não sabia que seria tanto. Cheguei aqui há um ano, mas parece que estou aqui há um século. Algumas regras eu entendo, mas outras não tem sentido. Fogo e tridente todo dia tudo bem. Uma vez por semana o caldeirão fervente, nada contra. Mas essa história de proibir festa, bebida e mulher, não tem nenhum sentido.

Questionei o gerente da minha ala, que era a ala justamente dos que gostavam de festa, bebida e mulher, por que lá não havia nada disso. Ele me respondeu que cumpria ordens superiores. Então eu lhe pedi para falar com o seu superior, e ele me disse que o seu superior não atendia ninguém.

Eu me retirei, mas não havia desistido de mudar aquela situação. Nos meses seguintes comecei a planejar uma revolução. Muitos, como eu, não estavam gostando nada da atual gestão. Eles tinham medo do governante do local, mas eu lhe prometia que no meu governo, festa, bebida e mulher estariam liberados.

Fiquei sabendo das justificativas da proibição. O governante não liberava as festas e as bebidas, porque não queria ver ninguém alegre ali. Mulheres existiam, mas estavam na ala feminina. Segundo me disseram, ele não deixava homem e mulher misturados, porque quem juntara Adão e Eva fora Deus, não ele.

O interessante é que enquanto havia aquela proibição, uma vez por mês o governante promovia alguém para o céu, uma regra totalmente absurda, e que me dava medo. Durante toda a minha vida, nunca gostei de padre, igreja ou reza. O meu negócio era bar, bebida e mulher. Eu nunca quis ir para o céu, aquele lugar sem graça.

O nome do escolhido saia pelos autofalantes. Toda vez eu respirava fundo, quando ouvia um nome que não era o meu. Eu estava no lugar certo, onde eu queria estar. Eu só tinha que mudar algumas coisas, e tudo ficaria às mil maravilhas, e estava me preparando para isso.

Depois de um ano de planejamento, explodiu a revolução. Não era só a minha a minha ala que estava insatisfeita, todas as alas estavam. Eu prometi que faria as mudanças necessárias para que todos tivessem o que quisessem, caso chegasse ao poder.

O poder central tinham muitos ajudantes, mas nós éramos era quantidade bem maior. Alguns ajudantes do governo, quando viram que a luta estava perdida, renderam-se. Outros foram convencidos a se unir à nós, sob a promessa de serem anistiados.

Foram dez dias de luta, até que vencemos a peleja. O governante havia fugido, não se sabe para onde. Tomei posse no governo sem muitas formalidades, mas não cumpri algumas promessas feitas. Agora que era governante, tinha que governar com responsabilidade.

Mulher, bebida e festa, só uma vez por mês. Para os outros, porque para mim todo dia. Afinal, eu era o governante. Aboli a regra de promoção para o céu, que não estava entre as reivindicações, porque ali quem mandava era eu. Tive que prender alguns dos meus aliados mais fiéis, porque viviam dando pitaco na minha administração, e assim por diante.

Depois de seis meses da minha administração, comandada com mão de ferro, como era certo se fazer naquele lugar, o clima começou a ficar quente de novo entre os residentes. A insatisfação era gera.

Por isso explodiu uma nova revolução, comandada pelo antigo gestor, que, finalmente, resolvera dar as caras. Ele prometera o dobro do que eu havia prometido, razão pela qual foi deposto facilmente, até porque de tanto prender os meus aliados, acabara ficando sozinho.

Foi a primeira vez que o vi. Ele estava sentado na cadeira executiva para me julgar. Só que eu não estava muito preocupado, pois eu já tinha sido condenado ao fogo eterno. O que poderia ser pior? Ele se levantou, caminhou até onde estava e me olhou fixamente. Depois me promoveu para o céu.

O AMOR EM TEMPOS DE PANDEMIA – Conto de Osmar Júnior

Conto de Osmar Júnior

Aquele sítio abandonado era como que mal assombrado. Entrávamos por uma porta de ferro amarrado com arame. O vírus deixara tudo deserto, sem pessoas. Ali já fora local de festejos, pois havia restos de lixo como se tivessem desmontado um grande palco com cenário e luzes, pedaços de coisas sem sentido, um cemitério de objetos onde as coisas não se encaixavam.

Era tão abandonado que achamos na casa um quarto com uma boa cama, espelho, guarda-roupas com tudo que precisávamos, lençóis, colchas…enfim, a energia funcionava e achamos também um gerador. Isso era importante, pois a energia faltava por dias. Deixamos o resto da propriedade do jeito que encontramos, como se ninguém ali habitasse.

Então passamos a fugir pra lá. Passávamos o tempo fazendo amor e assistindo velhos filmes em uma TV com um DVD que ficou no espólio daquela família, cujos membros tinham morrido todos, todos mesmo. Às vezes dormíamos, outras vezes voltávamos para nossas casas com os fantasmas de nossos entes. Era uma volta triste, mas por algum motivo nós fazíamos aquilo numa espécie de tradição, de culto à morte e trégua para o nosso sexo exagerado sentir saudade.

Era comum o desapego material e não tinha desemprego. Na verdade desapareceu a ambição e o egoísmo, mesmo assim ficamos um pouco arredios naquela cidade quase fantasma. Homens e mulheres pararam de ter filhos, eram estéreis, silenciosos e tristes. Um departamento público funcionava com uma só pessoa. Um voo por semana, às vezes nenhum, com poucos passageiros em avião pequeno. O abastecimento de mercadorias era feito por embarcações piratas. Aquela ilha era tão triste e vazia quanto Chernobyl, não tinha festas, ninguém cantava.

Ela me perguntou sobre o meu dia. Eu apenas disse que o cara da funerária tinha me falado que não existia mais outras doenças, a morte tinha chegado a um estágio de banalidade, mas a maioria morria da peste ou de depressão, muitos eram os suicídios, alguns à beira de suas próprias covas.

Foto: Estadão

Era algo que fazia desaparecer sentimentos e lágrimas. Eram sacos plásticos para sepultar pessoas, não rezávamos, perdemos Deus de vista, apenas levantávamos a mão como sinal de adeus, enquanto o carro fúnebre passava.

Inventamos uma espécie de arqueologia, eu e minha namorada, entrávamos nas casas fechadas de famílias que morreram ou abandonaram e foram para cidades mais populosas. Olhávamos as histórias descobríamos as verdades e ligações familiares, como romances secretos e outras curiosidades. Era uma romântica invasão de privacidade.

Nós perdemos tanta gente naquela ilha… ficávamos lembrando dos conhecidos e dizendo: “Lembra do fulano?” “Sim, quando ele morreu?” “Não lembro”… Nós continuávamos vivos e a cada dia mais jovens. Éramos dois fantasmas e não sabíamos.