Exilado no Asilo – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira 

Exilado no Asilo

Estou na sala jogando cartas…

As crianças se espalham nos outros cômodos.

Henrique empalha Pintassilgos, cujo os corpos foram encontrados, já por ocasião da Pandemia, na casa de paredes cinzas, ao lado da Escola, também agora abandonada.

E seus cantos em terças e oitavas, permanecem pousados na sombras das telhas.

Luiz prepara um Bolo de Avelãs para o festejo do octogésimo aniversário de falecimento do Duende Bebeçudo, imortalizado em uma estátua moldada com quase uma centena de Latas de Leite em Pó, vazias, amassadas e soldadas uma a uma, a lhe darem o contorno do corpo e da face.

Não conheço o paradeiro do Dododo, o Luiz Afonso, sei que coleciona cristais, deve tê-los levado ao piso da lavanderia, que fica ao ar livre, bem perto do Canil, e do quadrado de madeira onde vivem os dois porcos siameses trazidos de Xiparacoara, povoado Amazônico, lá para depois de Mazagão Velho.

Minha única filha, não a vejo, deve ter levado os dois jabutis para realizarem sua caminhada em torno da luz azulada de Vênus, que hoje nos brindou com sua presença desde as 16.45.

Estou na sala jogando cartas, jogo as cartas em direção ao rio, que no quadro dependurado sobre a estante, borbulha e respinga suas águas agitadas de tal jeito que chegam até meus pés e os molham, encharcando minhas meias de lã.

As moças que aqui trabalham, e mudam a toda hora as coisas de lugar aqui dentro, são as mesmas que me obrigam a tomar venenos em forma de comprimidos, e dão o meu jantar, tenha eu fome ou não, a noite tão cedo, que a noite ainda não chegou.

Dizem que o molhado dos meus pés é que eu me urino.

Como mentem.

Nem imaginam como eu me divirto jogando cartas com o rio. E chutando os pingos d’água que ele derrama na direção dos meus pés.

*Osasco (SP) – Brasil – 30 de agosto de 2020.

Procura-se um pen drive – Conto de Alcinéa Cavalcante – @alcinea

Conto de Alcinéa Cavalcante

– Hedynus vai lançar um CD, mas ainda é segredo. Confidenciou José a Dona Maria.

No dia seguinte, Dona Maria já tinha espalhado na aldeia toda que Hedynus ameaçava lançar um CD.

Uns ficaram torcendo para que o “evento cultural” não tardasse a acontecer naquela aldeia carente de programações culturais. E sonhavam com um grande show em praça pública, sorteio de CDs e apresentação do cantor Mascarado – que anos atrás animou um comício político e fez todo mundo rir com suas palhaçadas no palco.

Um fã de carteirinha até lembrou das palavras de Hedynus na abertura do show: “Eu canto porque o momento existe e só depende de você ser alegre ou triste”. Uau!

Outros ficaram preocupados diante da ameaça de ouvir dia e noite nas emissoras de rádio aquele tipo de música. Fora isso, o CD tocaria a todo volume nas domingueiras dos clubes e rodaria a aldeia de madrugada nos carros dos pleiboizinhos.

Um crítico musical, numa rodada de cerveja no bar do turco, perguntou:

– Não se oferece nada que preste aos jovens dessa aldeia?

Foi aplaudido por uns e contestado por outros.

As opiniões na aldeia se dividiam. “Aquilo não é arte“, diziam uns. “Deixa o cara cantar, tem gosto pra tudo”,diziam outros. E tinha aqueles que falavam “é ruim pra ouvir, mas é bom pra dançar.” E não faltava quem dissesse que era uma boa sugestão de presente para o inimigo.

Pois bem, durante algum tempo na pequena aldeia a ameaça ou anúncio de um novo CD de Hedynus era assunto em todas as rodas.

Depois outros assuntos entraram na pauta e o CD caiu no esquecimento.

Mas eis que de repente o assunto volta à baila.

Foi numa manhã chuvosa. Quem ligou o rádio de manhã cedinho, ouviu o cantor chorando copiosamente informando que um pen drive com suas músicas inéditas (as tais músicas do próximo CD) tinha sumido da sua casa.

E todo mundo começou a especular.

– Isso é jogada de marketing
– Ele tem uns amigos larápios, vai ver que foi um desses amigos que roubou
– É isso que dá andar mal acompanhado
– Graças a Deus estamos livre da ameaça
– Dizem que a polícia confundiu com droga e apreendeu.

Foi tanta coisa que falaram. Chegaram até a suspeitar de uma autoridade. Lá mesmo, no bar do turco, um maledicente disse que o sonho da tal autoridade era ser cantor de sucesso, aparecer no Fantástico e no Faustão, por isso inventou uma tal de operação que invadiu a casa do astro com a desculpa de investigar uma denúncia, mas na verdade era para afanar o pen drive de músicas inéditas para se apropriar delas e quando se aposentar sair por aí, por esse Brasilsão fazendo shows nos melhores teatros e quiçá na Europa.
Todos se calaram quando adentrou o bar do turco um fã de Hedynus com o rosto molhado de lágrimas.


O moço contou que as paredes do seu quarto são cobertas com posters do cantor. “Mais jovem, porém com a mesma boniteza”, ressaltou. E propôs, ali mesmo no bar, que fosse feita a campanha “Devolve o pen drive”. Pregariam cartazes com essa frase em todos os postes, árvores, muros, escolas, mercearias e bares da aldeia.

Ninguém contestou. Não porque apoiasse a campanha, mas porque o amor do fã pelo seu ídolo deixou todos emocionados. Um vereador, para animar o fã, disse: “Se fosse comigo eu diria: me tirem o mandato, a honra, a vida, se preciso, mas devolvam meu pen drive.”

E enquanto o fã, munido de pincel atômico e cartolina, preparava os cartazes, o ídolo se embalava tristemente numa rede folheando um surrado exemplar de “Quem mexeu no meu queijo”, obra que por muito tempo foi seu livro de cabeceira.

O Milagre – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

O pastor chegou no velório acompanhado de inúmeros fiéis da igreja, todos vestidos de preto. Pediu para que todos os presentes rezassem junto com ele, pois iria ressuscitar o morto. O alvoroço foi grande. Alguns protestaram, outros ficaram meio que atordoados, e o cochicho só terminou quando o pastor gritou: “Ó homens de pouca fé!” Então se fez silêncio.

O pastor começou uma oração fervorosa, segurando uma Bíblia. Os seus acompanhantes rezavam com ele, mas os outros presentes estavam mudos, estupefatos com o que estava ocorrendo. Em sua prece citava os milagres de Jesus, especialmente o referente a Lázaro, e lembrava que Jesus ressuscitara no terceiro dia. Depois ele começou a falar em outras línguas.

De repente, alguém disse que vira o morto se mexer. Foi quando luz se apagou. Algumas mulheres desmaiaram, outras correram, de modo que a confusão se estabeleceu. Quando a energia voltou, o corpo não estava mais no caixão, nem o pastor estava mais no velório.

A polícia foi chamada, mas não conseguiu descobrir como o corpo sumira, até porque os testemunhos eram na maioria muito estranhos, havendo gente que dissera que vira o finado sair caminhando pela porta, e outros que o viram subir numa carruagem de fogo ao céu.

No outro dia o templo do pastor estava lotado, com cinco vezes mais pessoas do que o habitual. O pastor curou um cego de nascença, fez um mudo falar e tirou o demônio de uma pessoa. Nunca o templo arrecadou tanto em um só dia de pregação.

Breve história do gato que falava esperanto – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Do nada, o gato começou a falar esperanto. Desde suas primeiras palavras, ainda no berço, se recusava à língua natural dos gatos, falada pelo resto da ninhada de maneira espontânea. Para mamar, gritava em esperanto. Fazia cocô e chamava a mãe para limpar, em esperanto. Como ela entendia, não se sabe. Talvez apenas porque fosse mãe. De modo que o gato que falava esperanto passou uma infância solitária. Era um esquisito na sociedade. Sua vida social tornou-se menos difícil quando aprendeu a usar a esquisitice em seu próprio favor. Intermediava conflitos entre cães e gatos, além de dar aconselhamento amoroso para casais de siamês com egípcio, siberiano com birmanês, persa com azul russo…

Os gatos uniam-se em matrimônio ignorando absolutamente o que um dizia ao outro. Com o tempo, passada a semana da paixão tresloucada no telhado, percebia-se a barreira da língua. Era então que o gato que falava esperanto entrava. E tudo resolvia. Pelo simples fato de compreender a raiz de cada língua.

Fez-se respeitado. De cima do muro fazia discursos paroxítonos e nos modos indicativo, imperativo e subjuntivo. Katoj! Gritava, levantando a pata dianteira em clamor, e a gataria se empinava de orgulho diante daquela referência em substantivo plural. Quando se tratava de julgamentos peremptórios, aproveitava-se da ignorância da plateia para usar a morfologia, e abusava do acusativo e do nominativo, incutindo soluções ilusórias. A arquitetura sintética de sua morfossintaxe também era utilizada para receber comida de graça, lugares quentes para dormir e conquistar as mais belas namoradas. Ensinava esperanto às novas ninhadas e proclamava o sonho de que todos os bichos falassem uma segunda língua universal. No fundo, era um bom gato, apesar da malandragem que trazia na espécie. Andava com o Koncisa Etimologia Vortaro, um dicionário etimológico de esperanto debaixo do braço, e de lá, tirava palavras que satisfaziam à curiosidade de gatos que queriam saber como se diziam certos palavrões em esperanto, fingia arrancar poemas que na verdade improvisava – em esperanto, claro – deixando felinas lânguidas e boquiabertas. Quando se candidatou a presidente nacional dos gatos, foi apoiado pelos anarquistas, pelo Centro de Mídia Independente e pela escola Bona Espero*, mas não esperava encontrar um opositor no gato poliglota que falava inglês, chinês, espanhol e hindu, que era compreendido por milhões de pessoas e que recebia apoio em dólares. Foi sua derrota. E ele, que podia ter estudado medicina, foi engolido pelo imperialismo cultural que privilegia gatos que falam inglês. Implacavelmente perseguido, teve sua família dizimada por um gato german longhair, da Alemanha, e passou a viver nas sombras, onde podia ensinar esperanto a gatos marginalizados, engajados e revolucionários.

De certo modo, nunca fora tão feliz quanto agora. E nunca compreendeu porque nascera falando esperanto. Só o que sabia de si era o próprio nome: Zamenhof. O gato que falava esperanto ainda fala esperanto.

*A Escola Bona Espero, em Goiânia, abriga crianças carentes e lhes ensina esperanto. Conto publicado no livro Gatos Pingados – Escrituras Editora – 2018.

 

O Último Dia da Tua Vida – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

Ouvi passos na escada. A porta rangeu. Escutei um lobo a uivar. Meu quarto só era iluminado pela luz de um abajur. Um vento frio entrou pela janela aberta, balançando a cortina. E alguém continuava subindo as escadas, mas nunca chegava ao meu quarto.

E o lobo uivava, e o vento frio, de tempos em tempos, entrava pela janela. A porta rangeu novamente. Parecia um filme de terror. Eu iria ser morto, talvez. Mas não por um ladrão ou um assassino qualquer. Eu iria ser morto pelo Chuck, o Freddy Krueger, Jason, Drácula, ou uma outra assombração maligna.

Eu estava com medo, estava paralisado. Meus olhos arregalados fitaram o ambiente soturno. Eu esperava apenas. Olhava para a porta e para a janela, esperando o que ia entrar. De repente, ouvi uma voz apavorante: “Carlos!”…”Carlos!”…Meu nome não era Carlos. Foi o que gritei: “Meu nome não é Carlos!”

Imediatamente o vento da janela cessou, os passos na escada pararam, a porta deixou de ranger, o lobo não mais uivou. Tudo o que era fantasmagórico se foi. Eu respirei aliviado…Meia hora depois ouvi um grito assustador vindo da casa ao lado…

Preâmbulo da Horas – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Havia um moço triste que passeava todas as noites na sala de um apartamento do edifício em frente ao meu. Era angustiante a sua solidão no oitavo andar. Eu havia me habituado a trazer para casa o trabalho do escritório e ficava até altas horas ruminando documentos, trocando ideias com xícaras de café e um maço de cigarros, na companhia das badaladas do velho relógio de parede. Pensava que minha solidão era a maior de todas, até a noite em que o vi pela primeira vez, a passear incansável pela sala à meia luz. Observei que também fumava um cigarro atrás do outro.

Todas as noites ele chegava às 23 horas, tirava, ainda na porta, a camiseta, e a jogava num canto qualquer, depois apagava as lâmpadas no interruptor próximo à porta de entrada, deixando acesa apenas uma luminária de luz opaca, que lhe permitia mover-se sem tropeços. Então começava a andar de um lado para o outro, sem descanso. Às vezes debruçava-se à janela. Outras, desaparecia por outros cômodos. Depois voltava a fumar pela sala, impaciente. À uma hora da madrugada, indefectivelmente, atendia ao telefone, e só então tinha descanso.

De meu apartamento, eu não podia ouvir o toque de seu telefone, mas todas as madrugadas, quando meu relógio de parede soava uma nostálgica badalada, o moço atendia ao telefone. Falava por alguns instantes e tornava a sair, vestindo a mesma camiseta que deixara abandonada num canto qualquer. Algumas vezes deixava o aposento às escuras e só era possível localizá-lo pela brasa pequenina do cigarro, que se acendia como um vagalume na janela.

Nunca o vi durante o dia e creio que ele nunca chegou a me ver, nem de dia nem à noite. À tarde havia um velho cachorro sonolento, um dálmata, que dormia na sacada do quarto de um apartamento ao lado do seu. Por diversas vezes, tive a absurda impressão de que o cachorro morava sozinho, pois jamais presenciei ali qualquer outro sinal de vida. Algum tempo depois, percebi que durante a noite também o dálmata dormia na sacada.

Durante meses nossas noites foram iguais: eu trabalhava até a madrugada, observando o rapaz solitário, suas lâmpadas obsoletas e sua triste pontualidade, o cachorro dormia um sonho de sonhos cansados, e o rapaz andava sem medidas na penumbra da sala, na expectativa inquietante de sua hora marcada. Por muitas vezes, no transcurso dos meses em que o observei, tive o impulso de lhe telefonar. Não sei o que lhe diria. Talvez uma frase piegas sobre o amor e o desamor, ou talvez lhe contasse uma história engraçada, e ele, por um instante, abandonaria o cigarro para gargalhar, para olhar pela janela e ver quanta noite havia no céu cravejado de estrelas. Depois desisti do incômodo desejo de salvar alguém que talvez nem precisasse ser salvo. Continuei a assisti-lo, em sua cronologia obsessiva.

Nas raras vezes em que me deitei mais cedo, continuei a vê-lo, pois quando dormia, ele, iluminado pela brasinha do cigarro, passeava pra lá e pra cá na penumbra dos meus sonhos. Acabei por me irritar com aquela criatura que passara a se intrometer em minha solidão, e por algum tempo deixei de observá-la.

Uma noite, entretanto, vencida pela culpa por ter abandonado o moço à sua própria sorte – como se em algum momento eu tivesse participado dela – tornei à janela. Ele esperava pela ligação. O dálmata dormia. Caía uma chuva de pingos enviesados na noite em que seu telefone não chamou. Ele acendeu todas as lâmpadas da sala, tornou a andar de um lado para o outro, pegou o telefone, conferindo se havia algum defeito, e colocou-o de volta à mesa, devagar, como se não soubesse o que fazer depois disso. Ficou parado diante da mesa, olhando para o telefone. Sob a luz intensa, ele era belo. Tristemente belo.

Acho que odiei a criatura que deixou de lhe telefonar naquela noite chuvosa. Mergulhei em meu trabalho, com a promessa de não me ocupar mais de vidas que não eram minhas, mas quando tornei a olhar para fora, ele estava sentado no parapeito, com as pernas dependuradas no vazio. Nem ao menos fumava. A súbita certeza de que ele ia pular me estremeceu o corpo num calafrio. Ainda hoje, quando recordo, tenho a sensação de vê-lo mergulhando num voo sem volta, libertando-se de sua infinita espera. Acenei-lhe com uma insistência patética, e ele não me viu. Gritei, atribuindo-lhe nomes diversos, talvez nenhum fosse o seu, e ele não ouviu porque havia entre nós o ruído da chuva. Senti um amargo arrependimento por nunca ter procurado o número de seu telefone. Eu beirava o pânico, estava com o telefone na mão para chamar a Defesa Civil e impedir que ele pulasse, quando ele desceu da janela e fechou-a.

Respirei, profundamente aliviada, e fui dormir com a decisão irrevogável de nunca mais me preocupar com o desconhecido. Mas ele estava em meus sonhos, flutuando no ar sob um chuvisco renitente. Quando saí para o trabalho, pela manhã, havia na calçada de seu edifício um ajuntamento de pessoas, homens, mulheres, até crianças, unidos por uma curiosidade mórbida, falando alto, apontando apartamentos. Naquele instante, porém, o mundo para mim ficou mudo. Eu só ouvia meu coração saltando no peito, e talvez ele até me dissesse da culpa que eu teria que carregar por toda a vida por ter dormido indiferente à dor alheia. Abri caminho aos empurrões para ver o que os curiosos viam. No centro do círculo humano, estendido sobre o próprio sangue, e morto, estava o velho dálmata solitário.

*Conto premiado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo – SP. Publicado na IX Antologia de Contos Alberto Renart – 1996.

Catita, mamãe! – Conto de Heluana Quintas

Conto de Heluana Quintas

Minha mãe sempre foi implacável com as catitas. Todas as madrugadas em que uma catita se apresentou num intervalo de sono da minha mãe, a agilidade miúda da bichinha perdeu para a perseverança robusta do matriarcado Quintas. Sem negociação, a gente de toda a casa levantava, empunhava rodo e vassoura num limbo de sonolência e gritaria.

Apresentavam-se, a contragosto, os deselegantes cavaleiros da remela por volta das duas da manhã, madrugando por tempo indeterminado à espreita da espreita do minúsculo ratinho. Alvo eliminado, às vezes a batalha se prolongava no sonho do sono curto, por que a noite mal dormida é o afago da angústia, a gêmea siamesa do pesadelo. Nessas ocasiões, a praga reaparecia ainda que a matasse mil vezes. E assim, o rato roía as horas do rádio-relógio.

Em mais uma noite, lá estávamos eu de um lado do fogão e mamãe do outro. Eu de rodo, ela de vassoura, ele franzino e de pelo cinza claro, escondido silenciosamente debaixo do Electrolux branco de seis bocas. Minha perna já formigava quando o animal fez uma breve e destemida corrida na minha direção, parou e me fitou profundamente. Me vi gigante nos olhos do ratinho. Paralisada com terror de mim mesma, o ratinho de repente crescia na minha frente.

O rodo já não servia para acuá-lo senão para me proteger. Esqueci o formigamento e permanecemos sustentados pela mira um do outro. O rato e eu moramos na iminência do ataque e da clemência, dois pontos pulsantes de luz vermelha no rádio-relógio da cozinha. Naquela madrugada nada avançava. Até que eu desisti. Abandonei a insistência em compreender se o rato pretendia ou não me atacar e aceitei que ele me vencesse pelo blefe. Soltei o rodo no chão e a trava do relógio. O rato correu pelo canto da parede e alcançou a porta rumo a liberdade. A derrota fez um sono tranquilo.

MEU FILHO VERSICULORUM – Conto de Fernando Canto – @fernando__canto

Conto de Fernando Canto

Antes de casarmos minha mulher Jeanerena era uma lutadora das causas sociais mais diferentes possíveis. Ela se metia em qualquer protesto e eu a acompanhava nessa luta.

Um dia ela soube que iriam cortar uma secular mangueira da praça principal da cidade, e já me convidou para impedirmos esse crime ecológico premeditado pela prefeitura.

Na noite anterior ao ato da derrubada da árvore fomos dormir nela. Subimos sorrateiramente pelos seus galhos com a ajuda de uma escada e nos acomodamos em uma forquilha para esperar o dia raiar. De início, formigas e mosquitos ficavam incomodando, mas depois fumamos um baseado entre os reclamos dos periquitos que ali também se acomodavam em seus ninhos. Transamos de um jeito muito doido que cansamos e adormecemos.

Acordamos com os bombeiros, a polícia militar, a Guarda Civil e técnicos da prefeitura que já estavam lá embaixo ainda de madrugada, com ordens para nos tirar de lá na marra antes da imprensa chegar.

Eles nos prenderam e derrubaram a mangueira, alegando que ela poderia tombar a qualquer momento com as fortes chuvas do inverno já em curso. Mesmo carregada de frutas ela deveria ser sacrificada, pois poderia deixar um enorme prejuízo à população daquele bairro.

Quase sete meses depois nasceu nosso filho primogênito, o Altino Versiculorum. Era verdinho e prematuro. Tinha a cabeça esquisita, pequena e uma cartilagem adunca sobre a boca. Parecia uma cabeça de periquito asa branca, da família dos psitacídeos.

Altino não sobreviveu, mas em respeito à sua alma-passarinho, e apesar dos senões da família, vou visitá-lo todas as terças-feiras no Museu de História Natural onde ele está soberbamente empalhado.

* Este conto está no meu livro “O Centauro e as Amazonas”, que sairá brevemente pela Editora e Distribuidora Brasil Cultural.

Conto sertanejo – Por de Rebecca Braga (@rebeccabraga)

 

Conto de Rebecca Braga

“Vai Azulão
Azulão companheiro vai
Vai ver minha ingrata
Diz que sem ela
O sertão não é mais sertão
Ah, voa, Azulão
Azulão, companheiro vai…”

Os pássaros voltam pra casa. Estiveram migrando durante os últimos meses, viajando em bando. São os últimos dias de seca e as chuvas precisam ser anunciadas. O sabiá não cantou por noves meses e a passarada toda, todas as plantas secas, todos os animais sabiam que chegava a hora de cantar.

Resistindo ao sol, desabrochando em um jardim de cactos, numa paisagem estéril, a delicada florescência, a singela flor se faz diferente de toda a paisagem. Entre o verde possível pela capacidade de tirar água onde água não há, formam-se pétalas de uma cor clara, o cálice comprido é um esperançoso copo para guardar a água da chuva.

Talvez a flor não chame atenção pelas cores, ou pelo cheiro, mas pela capacidade de resistir, de sobreviver, de existir. Isolada entre os espinhos, nascida daquela terra rachada, de pedras e de árvores mortas, é a própria vida, a força da natureza.

No início de tarde o sabiá canta monótono, repetindo a mesma melodia, uma flauta tocada em seu próprio dialeto. O céu fecha. Longe, uma cerca ao lado de uma casa de taipa guarda cabras magras que correm de um lado pro outro balançando sinos desformes feitos de metal amassado. As crianças espichadas olham as nuvens pesadas.

-Corre, moleque, que o sabiá cantou! – grita uma mulher velha encostada na porta apontando pra bacias e uma cisterna fechada.

Era a primeira chuva depois de meses de sol rachando o solo e derretendo a paisagem como em uma pintura surrealista. O céu choveu por dias até que os primeiros raios de sol saíram por frestas nas nuvens brancas de bordas amareladas. Os pássaros se põem a sair sacudindo as penas e asas, inundam de som e cores aquele pedaço de mundo.

Azul-claro brilhante, de bico forte, ele surge entre as árvores cantando dez notas, repetidas em variados tons. O Azulão pousa num pedra ainda úmida e mexe a cabeça rápida e curiosamente. Nos olhos pequenos o reflexo das pétalas claras da flor de cactos entre os espinhos. Pousa perto, mas não tão perto. Observa de longe. Os espinhos dos cactos fazem aquela flor perigosa, e por isso, perigosamente desejável. Ele observa. Curioso e atento. Num repente se lança num voo e não volta mais.

Os dias caminham vagarosos no sertão. Até que o pássaro volta e pousa na mesma pedra, que com a chuva foi ficando macia, coberta de musgo. Ao pé do cacto, próximo da pedra ele passa a cantar logo depois do alvorecer enquanto a flor clara toma banho em dias de chuva, ou se bronzeia em dias de sol.

Conhecido por ter um dos cantos mais bonitos do sertão, o Azulão há tempos não entoa em surdina, o canto guardado dentro do peito do passarinho que se hipnotizara por uma flor, ainda que já fossem dias esses de achar uma parceira de voo para os meses que se aproximavam. Mas ele, não. Ele permanecia ali, cantando todos os dias pra ela, para a flor nascida da aridez da caatinga, imóvel, presa, solitária entre espinhos.

Não tardou até que o calor se fizesse por mais dias, semanas, meses seguidos novamente e a chuva fosse só uma lembrança. Estava na sua natureza de passarinho partir. Mas como deixar a flor? Inquieto voava por sobre o cacto como quem quisesse pousar com os pés delicados nos espinhos.

A flor se abria inteira pra receber um beijo do bico e um frescor do vento das asas dele que batiam desesperadamente. Um cheiro suave e fresco se dissipava das pétalas frágeis da flor que resistia aos verões mais cálidos e às chuvas mais sólidas.

Já iam embora os últimos pássaros rumo ao sul e o Azulão sombrio entoa uma alvorada, o seu canto mais bonito. Por dois minutos repete milagrosamente seis notas variando de tal forma o volume do seu canto que, ora parece estar voando longe, ora parece estar aos pés da flor. A flor, resignada, sabedora da natureza dele, se fecha lenta e não desabrocha exceto em noites de lua cheia.

Ele parte, mas jamais parte de verdade. Ouve-se o canto mata-virgem do Azulão todas as noites em que ela desabrocha pra se banhar de luz. E quando cantam os sabiás no sertão, anunciando as chuvas, ele volta e ela floresce. Entre espinhos ela permite as visitas de vento das asas e o som de um coração pequenino batendo tão rápido e tão forte que ela sente a própria seiva de si correndo dentro dele.

São o alimento um do outro. Ela se alimenta do canto do pássaro. Ele se alimenta do cheiro da flor de cactos do sertão. Uma simbiose improvável, e por isso de uma beleza sem par, rara como os amores raros.

*Escrito em 31 de março de 2016.

Frases, contos e histórias do Cleomar (IV Edição Especial Coronavírus)

Tenho dito aqui – desde fevereiro de 2018 – que meu amigo Cleomar Almeida é cômico no Facebook (e na vida). Ele, que é um competente engenheiro, é também a pavulagem, gentebonisse, presepada e boçalidade em pessoa, como poucos que conheço. Um maluco divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade, além de inventor do “PRI” (Plano de Recuperação da Imagem), quando você tá queimado. Quem conhece, sabe.

Assim como a primeira, de março passado, a segunda de maio, a terceira em junho, segue a IV Edição Especial Coronavírus, cheia de disparos virtuais do nosso pávulo e hilário amigo sobre situações vividas em tempos de Covid-19 no mês de abril. Boa leitura (e risos):

Polpa

O cara que armazena a polpa de goiaba, junto com a de acerola no supermercado, deveria pegar uma surra.

Fim de mês

Aí, no fim do mês, o cara volta pra casa com seis notas no bolso. Rezar pra não perder nenhuma no caminho.

Em caso de premonição

Não gosto nem de pensar no que aconteceria, se no Carnaval eu soubesse que passaria os próximos cinco meses dentro de casa. Credo!

Bares na pandemia

Meu comportamento é inadequado para frequentar buteco em tempos de pandemia, quero logo abraçar todo mundo; cada um que chega é aquela sequência de dezoito toques com a mão. Na despedida, não saio sem falar com geral, até com quem não conheço. Definitivamente, não estou preparado.

Abuso

Quando envelhecer, quero ser um velho bacana, daqueles que dá gosto sentar ao lado e ouvir as histórias; tipo aqueles coroas maneiros que a gente admira. Recuso-me a ser um velho filho da puta, como o senhor desembargador.

Medo vence a sede

Descobri, depois da liberação do funcionamento dos bares, que tenho mais medo, do que sede.

Devassidão

Acordado em plena manhã de domingo, absorto em meus pensamentos, a única coisa que me vem, é a preocupação com o tamanho da devassidão que vai ser, se até o Carnaval, já estivermos livres disso tudo. Eu mesmo, já penso em ir nu logo.

Carapanãs

As vezes tenho a impressão que os carapanãs aqui de casa, também saíam pra trabalhar antes da pandemia, tipo, trabalhavam fora e retornavam no fim do expediente, na hora da “refrega”. Agora, obedecendo ao decreto, não saem nem pra cuspir. Tá lotado.

Certidão de nascimento – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Perdi minha certidão de nascimento. Muito confuso. Tentei retira-la em Osasco onde eu moro. Procurei os cartórios, mas em vão. Única saída é ir até Belém do Para e localiza-la no cartório em que fui registrado ainda recém nascido.

Conseguido o telefone liguei e para minha surpresa, negaram-me o documento. A única maneira para consegui-lo informaram é que eu vá até lá.

Que eu vá até lá para ter uma conversa com o Cartorista que lavrou meu documento e converse com ele e leve a esperança que ele me reconheça.

Daquele dia para hoje, passaram-se, mais de cinquenta anos. Bela memória. Deve ter a alma deste homem.

Sem dinheiro procurei o Braz para solicitar algum emprestado.

Haja visto que a vizinhança cochicha que ele foi premiado com uma grande quantia num sorteio da Mega Sena. Encontro com ele no Jardim dos Anjos em uma manhã fria de julho. Mas em vão, estava calado não me reconheceu e um pouco depois foi sepultado em uma gaveta extremamente decorada com azulejos portugueses. Ficou o dito por não dito!

Mesmo assim vou a Belém. Vou caminhando pela margem da rodovia Belém Brasília. Espero chegar ainda a tempo, se não corro o risco de ser detido no meio da rua por uma ronda policial.

– Documento Cidadão! E mesmo que eu entregue CPF, IPVA, IPTU, RG, FGTS, Carteira Profissional, Números de Telefones, Impressões Digitais, E-mail, Senha da Uol, Signo, Sinais, Cacoetes, Vício, Hábitos, Roncos? E a Certidão de Nascimento? Pergunta a autoridade.

E eu ali revistado por e sem a Certidão de Nascimento e balbuciando com voz tremula o lugar aonde nasci. Estou frito penso comigo mesmo. – Que ano nasceu Cidadão. Parto Normal? Induzido? Fórceps? Cesariana? – Comeu Mecônio?

Sem Certidão de Nascimento. – Hein?

Prende ele. Diz um Cabo. – Solte-o! Ordena um Capitão. Se nem nasceu não existe. E se existe pode ser “de menor” se é “de menor” não pode ser preso.

Mas não deve estar na rua há esta hora, sozinho. Procurem a sua mãe.

Enquanto discutem a legalidade da ordem. Saio de fininho com minha bengala na mão, procurando não fazer muito ruído.

Sem certidão de nascimento não sou nada, e sem ela na mão, não me deixam entrar mais de volta no asilo.

Este pensamento é que aumenta o frio.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem”. Rumo Editorial São Paulo Brasil – 2020.

AS MULHERES-PEIXE (Conto porreta de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

Os cachaceiros do bar da Loura Rainha podiam apostar com certeza que era mais uma mentira do Edmer. Falou pra quem estava ali que tinha comido uma mulher-peixe, só pra se gabar e se aproveitar de uma história que corria na área e era a razão do medo dos nossos novos vizinhos, que eram feios pra caralho e tinham chegado há pouco tempo sabe lá de onde. – Porra, falei. Eu também namorei, quer dizer, cheguei a morar com uma delas lá nas brenhas do Igarapé do Salamagonha, no tempo que ainda tinha ouro aqui no garimpo do Lourenço.

Pra quê… O Edmer, que era um tremendo filho de uma puta avançou em cima de mim com uma faca de sapateiro, mas ele estava porre e não me furou porque pulei de lado e lhe acertei uma garrafada no meio da testa. O homem caiu no assoalho com a garapa descendo por todo o corpo. Foi pá, merda. O Edmer era uma bosta e morreu porque achava que eu tinha comido a mulher-peixe dele.

Flamenguista safado, eu dizia muito puto sobre o gordão assassinado. Ainda bem que as testemunhas foram na delegacia e confirmaram ao policial de plantão que meu reflexo salvou minha vida e que agi em legítima defesa. Passei a noite inteira esperando o bacharel.

Quando o delegado chegou pra pegar o meu depoimento foi logo perguntando quem eram essas mulheres-peixe que tanto davam medo nos novos moradores do assentamento, uns colonos feios pra caralho, e sobre a causa da briga com o gordo Edmer. Disse o que se passou no bar e que eu não sabia nada das mulheres, que apenas tinha mentido pra acabar com a gabolice do cara. Fui solto, mas ele pediu que eu não saísse da área porque o caso era da Polícia Federal, já que o merda do Edmer era funcionário do Incra. Ele não se conformou e me seguiu até o meu sítio. Depois eu soube que ele acampou por lá por perto com uns tiras atrás de ouro.

A verdade é que eu tinha achado um veio numa gruta e havia escondido de todo mundo que ainda tinha ouro por lá. Na gruta havia um lago de água verde, verde, verdinha. Não fazia muito tempo que eu tinha descoberto essa gruta e o lago e visto as mulheres-peixe se banhando. Tinham a cor dourada e eram largas. Suas barbatanas eram vermelhas, umas gracinhas. Nem de longe pareciam com as sereias que eu já tinha visto em revistas. Brincavam com as águas e sorriram quando me viram. Me chamaram pra bem perto delas e aí eu pude conhecer o verdadeiro valor do prazer sexual com aquelas mulheres, ainda que não fossem humanas. Eu me acostumei com elas e elas comigo.

O Edmer estava fiscalizando o assentamento dos colonos. Ele também descobriu a gruta depois que a caminhonete dele pregou perto do torrão do Tracajatuba, na estrada que levava ao meu terreno. E parece que ele chegou a dar umazinha por lá porque elas me falaram por alto dele. E foi justamente no bar da Loura Rainha, onde eu tinha chegado pra tomar uma caninha que ele achou de contar vantagem. Eu confesso que não queria que ninguém soubesse ainda mais depois que elas me indicaram onde estava o ouro.

O delegado me flagrou com as mulheres-peixe quando a gente estava bacana, tomando um Campari no meio do lago. Ele já sabia do ouro e me deu voz de prisão. Ao verem os tiras as mulheres douradas foram tomadas de um pavor que eu jamais vira. Pareciam loucas, cantando e dançando e mergulhando. Assoviavam uma melodia tão forte que se eu não tivesse corrido pra fora da gruta meus tímpanos estourariam, assim como aconteceu com os policiais, que desmaiaram e morreram afogados. Elas salvaram minha vida, pois a ambição do delegado e seus subordinados não tinha limite. Onde havia ouro eles iam lá confiscar.

Não sei como alguns agricultores ouviram os gritos de tão longe. Chegaram ao local armados de facões, mas se tremiam de medo. Certamente viram os vultos das mulheres-peixe no fundo da gruta. O boato das suas existências já rolava pela vila do Lourenço, imagina agora com a morte dos tiras e o testemunho dos colonos feios.

Quando os policiais federais chegaram pra me prender eu já estava muito longe com o meu ouro. Larguei tudo: o sítio, os animais, os empregados, a mulher e os filhos. Comprei um carro usado e sumi no trecho pra capital. Agora que acabou a porra do ouro e do dinheiro bate uma saudade daquelas mulheres lindas que nunca mais vou voltar a ver. Elas devem ter morrido com a presença de tanto garimpeiro feio no lugar que com certeza poluíram a gruta e seu lago verdinho.

Temporada de caça – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Assim que Hamingway partiu com seus cães farejadores para a temporada de caça, os gatos invadiram a casa, rasgaram as cortinas, urinaram nos tapetes, abriram fendas nos sofás, de onde brotaram esponjas encardidas, derrubaram do aparador o cristal, rasgaram livros raros, espojaram-se nas camas por dias inteiros, e por noites inteiras lançaram do telhado as telhas, de modo que choveu muito dentro da casa.

Deixaram as janelas abertas para que entrassem os ventos da estação, e num rompante de inspiração, atearam fogo aos colchões, no quintal. Foi a sua homenagem aos felinos que chegariam caçados.

*Do livro Gatos Pingados.

EDESSA MEDITABUNDO – Conto porreta de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Solidão.

Há semanas trabalhava intensa e duramente na pesquisa. Tese de doutorado. Haveria de entregá-la no prazo.

A mulher lhe escrevera, mandara encomendas pelo correio nem sabia quando. Não abria e-mail, nem ligava para as redes sociais. Talvez algumas cartas estivessem na portaria. Não. O porteiro lhe teria entregue.

Abriu a lata de atum e o esquentou na frigideira suja, usada mil vezes. O frigir despertou-lhe para alguma coisa. Correu aos livros, consultou-os e escreveu algo num papel sobre a mesa desarrumada que só ele podia entender. Comeu parte da massa compacta com xarope de guaraná diluído em água e, logo após, como se comemorasse, deu um arroto de arrebentar suas próprias entranhas e foi deitar-se nas almofadas espalhadas pelo pequeno apartamento. Ali, há tempos, guardava imemoriais fragmentos de experimentos trazidos do laboratório de sua universidade de origem. Já obtivera bons resultados, estabelecera uma metodologia um tanto quanto complicada para o cruzamento de variáveis. Só ele entendia.

Por ser um voraz usuário do computador vinha comprovando velhas hipóteses até então refutadas pelos seus colegas pesquisadores de todo o país. Uma vitória ali outra acolá, um insigth acordado, uma sacação num sonho. Tudo lhe fascinava. Era um apaixonado pela ciência. Quase nunca dormia porque se ocupava fazendo anotações, lendo e escrevendo como um louco no teclado do seu micro. Mas vencia o tempo a caminho da glória. Ou no mínimo de um salário melhor. Quem sabe obteria mais prestígio dentro da comunidade científica. Era brilhante. Seus colegas haveriam de admirá-lo e de respeitá-lo mais e mais. Com certeza sua tese seria aprovada com louvor pelos sisudos e exigentes doutores da banca examinadora.

Não fumava mais. Pudera. O corpo franzino não aguentaria nem mais um trago. Estava proibido de fumar, beber álcool ou ingerir qualquer droga, mesmo calmantes, analgésicos e vitaminas sem consentimento médico. Seu médico lhe fora enfático: – Ou larga ou não acaba a tese este ano. Deixou o cigarro, mas abusava de tudo. Não se alimentava bem, só comia enlatados, pão dormido, macarrão, quando lhe dava vontade ou quando se lembrava que seres humanos também comem. Adorava porcaria. Daí a dor que sempre sentia no estômago, um sofrimento a mais que o deixava louco de se enrolar pelo chão atrás de algum remédio porventura perdido na bagunça daquele minúsculo apartamento, mas tão cheio de bagulho.

Nessas horas de dor, a lembrança da infância. Brotava a insegurança. Cadê mamãe? Um misto de ternura e desespero. Cadê minha mulher? A solidão doía, a lembrança doía. Ele se recorda, tentando lenificar a dor. Seria entomologista. Ah, seria. Da sua paixão por insetos nasceria um cientista respeitável. Dos seus estudos resultariam proveitos econômicos tão grandes que a História não lhe olvidaria. A Nação lhe seria eternamente grata. Da função dos insetos na natureza tiraria o que de melhor fosse para o desenvolvimento da ciência e, claro, para beneficiar todos os seres humanos. Um idealista. Modesto. Virtuoso. Não precisaria ficar rico com suas descobertas e patentes. Bastaria que lhe financiassem ousados projetos de pesquisas, se possível dentro do país. Por isso estudou Biologia, curso inexpressível numa universidade pública de pequena importância. Por isso, pensava, com seu nome a tiraria do marasmo científico.

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Atrás de tanta vontade. Porém, um trauma. Ainda estudante – monitor concursado de entomologia – coletava insetos na floresta quando inofensivos percevejos saltaram de um arbusto para sua roupa. Eram insetos coloridos, de uma espécie jamais vista por ele. E pelo que lembrava, nunca a vira catalogada nas enciclopédias de seus professores. – Uma espécie não identificada ainda, pensou, eufórico. E no embaraço da emoção explodindo tentou capturá-los. Eles saltavam para outros arbustos deixando no ar um cheiro tão peculiar que o candidato a cientista hesitou na empreitada da captura. Mas prosseguiu. E ao agitar desastrosamente a folhagem, o odor dos percevejos se espalhou pelo ambiente de tal forma que o ar parecia se solidificar como um enorme bloco de concreto sobre seu corpo, a lhe prender e a lhe impedir de se mover. Na luta desesperada viu escorrer pelas mãos o que seria sua primeira conquista profissional. – Já pensou? Um inseto com o meu nome?

Encontraram-no em uma posição ridícula, estático com uma estátua equestre, no meio do mato. Os olhos arregalados, um fóssil conservado em bloco de gelo. Do jeito que estava, duro, foi levado ao primeiro posto médico pela equipe de alunos que monitorava.

Do acontecimento inopinado adveio-lhe alcunhas abomináveis e um recolhimento de muitos dias. Quase perdia o semestre. Quando conseguiu superar o fato, superou-se a si mesmo. Antigas veleidades viraram obsessão: haveria de ser entomólogo, ainda que lhe chamassem de Múmia de Barata em alusão à Metamorfose de Kafka, e de Edessa Meditabundo, uma espécie de percevejos fedorentos. E que rissem ao cruzarem com ele nos corredores do campus.

Débora, uma caloura, foi a única que o compreendeu. Jamais tocava na história inacreditável. Acabou casando com ele logo após terminar a graduação. Mas ficava lá, em sua cidade, cuidando do filho, morando na casa do sogro. Fez um mestrado medíocre na mesma universidade e nela tornou-se professor depois de um concurso muito disputado.

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Doía a solidão. Doía, doía.

Ás favas a solidão, as lembranças, a dor. Rompe, de repente, com o pensamento. A decisão é tomada. Vai descer ou acaba pirando. Antes, porém, olha para o PC e o notebook sobre mesinhas, olha as paredes do cubículo… Desenhos, mapas, quadros, tabelas, referências, classificações. Tudo ali, pregado com durex.

Pediculos humanus humanus / Ischioleneho wollastoni / Coleoptera. / Pyridae, Lampyridae / Periplaneta americana / Coleopteros / Homoptera / Cicadidae / Paraponera clavata / Tineola bisselliélla / Fulgora spp. Schistocerca americana / Apis mellisfera / Soolenopsis beminata / deptera. Culicidae / megalopsy lanata / Sinoeca cianea…

E, atrás da porta de entrada, em letras garrafais:

EDESSA MEDITABUNDO

(Percevejo-filho-duma-vagabunda-
Não-é-o-mesmo-que-vejo)
Vou a fundo
Vou a fundo
Para te encontrar
Viro o mundo
Ou não me chamo

EDMUNDO

Ele come, por fim, o resto do atum, bebe mais guaraná, relê seu poema com orgulho, apaga a luz e sai.

No hall do edifício tudo é silêncio. O porteiro dorme sem roncar.

O doutorando agora hesita em abrir a porta que dá para a rua porque lá fora também é só silêncio. E sua solidão novamente toma conta do corpo, fragmenta a alma e corta recônditas memórias, intuindo um assalto do futuro. Há pouca luz no ambiente. O porteiro dorme, a cidade dorme. A cidade está morta. Raios de luz projetam as sombras de um pé de ficus belga do jardim no teto e nas paredes dos edifícios vizinhos. O pé de ficus belga parece fazer um movimento humano nas colunas que sustentam o prédio. Mas é só impressão. Fruto do cansaço, ele pensa. Anda em voltas pelo jardim e então resolve subir. É madrugada, o dia está para nascer. Não vale a pena sair pelas ruas de seu bairro a essa hora.

Na passagem encosta no pé de ficus belga. Ele não percebe, mas sua camisa está cheia de bichinhos coloridos. Entra no elevador, aperta o número 19 e solta devagar, deixando um cheiro podre pairando por todo o condomínio.


Edessa meditabundo abre a janela. Respira com dificuldade porque o ar lhe solidifica o corpo aos poucos. Filigranas de luz empurram cumulusnimbus espessas e amedrontadoras no dia que já nasce apertado.

Lá embaixo o gás carbônico flutua sobre o asfalto.

Desta vez o percevejo não hesita: – Que doa a solidão!

Com esforço estende as asas membranosas. Dá um arroto de despertar a cidade e salta em busca de alimento.