CONTO DE CARNAVAL – Por Fernando Canto

Por Fernando Canto

Naquela noite de orgia no carnaval de setembro, o garanhão Thor se encheu de coragem e comeu o assassino Fred Krugger atrás das cortinas do clube. Deu-lhe uma martelada na cabeça e acabou com a máscara do otário.

Eduardo Luís, o Mãos de Tesoura, que acabara de terminar seu relacionamento com o Homem de Ferro, olhava, deprimido, aquela cena enquanto a Mulher Maravilha dançava com o Homem de Areia a marchinha “A Jardineira” mais bêbeda que um trem descarrilando.

Três contos negros para um cara pálido – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Replantar árvores de noite. Na calada da noite, quando os cães principiam a adormecer imersos em sonhos repletos de ossos enterrados. Cães sonham. Neste mesmo instantes estão os gatos pelos telhados, barulhentos e sedentos de pecado.

A silhueta da lua jaz em uma lata de sardinha abandonada, aberta e atirada ao acaso no quintal, só a metade acimentado. Ele desce de chinelos surrados, arrastando o lado esquerdo do corpo semiparalisado. Enxerga pouco, próximo e só para adiante. Mas sonha também como os cães em replantar árvores e enterrar ossos.

Ninguém desconfia que é ele quem quebra o cimento do quintal pacientemente, noite após noite.

E que é ele que se masturba incompletamente na rua íntima dependurada de Alice.

Para depois lavar a mão no balde cheio de água aparada da bica, onde às vezes a lua também mija.

Ela abre a casa. Escancara a janela e enxota as formigas com uma vassoura tão velha quanto ela. Atira pedras nos sapos e arranca as trepadeiras que se agarram na janela traseira do barraco em que mora com o marido semiparalítico, ex-madeireiro que durante três décadas quase desmatou toda a região Sul do Pará.

Enquanto ela repete esse ritual de abrir escandalosamente portas e janelas, ele deixa-se ficar na cama ao lado de sua perna mecânica, presa entre duas cadeiras e a mesinha com o rádio de pilha, sua companhia mais íntima.

Ela é quem encontra a roupa suja e amarelada com vestígios de sangue.

É ela quem encontra o balde com a água suja e atribui aos gatos.

Uma noite ela se sentindo infeliz e solitária vai até a sua cama.

Ele não estava.

Havia colocado sua perna mecânica e saíra pela porta da cozinha.

Ficou em dúvida se fora ele que saíra ou fora Alice.

Que saindo, como de costume, nua, para estender seu vestido de chita colorida e deixá-lo secar ao sabor da brisa morna da madrugada, a esquecera aberta.

Ela sentou- se a mesa da cozinha, e nem lembrou de procurar Alice.

Ficou riscando com uma faca quase sem fio um desenho bizarro com as sobras de pão, figuras de galos, bois, pássaros, e meninos miúdos de curtas asas.

Sem notar que entravam formigas, percevejos, grilos e cupins.

E começavam a importuná-la.

Nem viu quando ele entrou.

Havia replantado almas de árvores, as mesmas que ele tinha cortado há trinta anos, sujado de sêmen o Vestido de Alice, e amarrado os cães aos gatos em cima do telhado no silêncio das brisas magras.

Entrara pulando. A perna mecânica ficara abandonada no córrego extasiada… olhando Alice que se banhava.

Ele entrou, nu, negro de fuligem em uma perna só.

Pouco tempo depois, Alice – chateada com a briga do casal em uma tarde, quase véspera de Natal – viajou para o Paraná, onde vendeu seus olhos de vidro e com o dinheiro alugou uma casa para cuidar de gatos, sapos e um casal de morcegos que vieram com ela dentro da sacola de transporte de dinheiro do Banco do Brasil.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (SP) – 2020

Macapá 262 anos: o velho trapiche Eliezer Levy – Por (@alcinea)

Foto: arquivo do jornalista Edgar Rodrigues

Por Alcinéa Cavalcante

O velho Trapiche Eliezer Levy, de muitas histórias, causos e lendas.

Nele atracavam embarcações de bandeiras de vários países e os gringos aproveitavam para tomar um sorvete, servido em taça de inox pelo famoso garçom Inácio, no Macapá Hotel.

Era desse trapiche que saíam os navios com destino a Belém. No final das férias iam lotados de universitários que voltavam para as faculdades (não havia ensino superior no Amapá).

Foto: blog da Alcinéa

Nas tardes de domingo o velho trapiche era a passarela da juventude. Depois da sessão da tarde nos cines João XXIII e Macapá os jovens iam como em procissão passear ali. Era um passeio obrigatório.

À noite era comum ver na ponta do trapiche um pescador solitário. Um pescador de peixes, ou de estrelas, ou de poesia ou de raios da lua.

A foto é do tempo em que ainda existia a tão cantada em verso e prosa “Pedra do Guindaste” de muitas lendas. Uns diziam que meia noite a pedra transformava-se num navio de ouro maciço enfeitado com diamantes e esmeraldas. Outros contavam que era uma princesa encantada. E tinha gente que jurava ter visto “com esses olhos que a terra há de comer” a pedra se transformar em princesa quando o relógio marcava meia-noite em ponto.

Foto: blog da Alcinéa

Um dia colocaram a imagem de São José, padroeiro de Macapá, em cima da pedra. Pouco tempo depois um navio chocou-se com ela destruindo-a. No lugar foi construído um pedestal de concreto para São José, colocado de costas para a cidade, mas abençoando todos que aqui chegam pelo majestoso rio Amazonas.

A imagem do santo padroeiro é uma obra de arte do escultor português Antônio Pereira da Costa. Ele também esculpiu os bustos de Tiradentes (na Polícia Militar) e Coaracy Nunes (no aeroporto) e os leões do Fórum de Macapá (atual sede da OAB).

Homens-peixe III (final) – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Quase não dá para ir jogar bola. A cidade está abandonada. O trânsito é muito difícil. Estão as ruas cheias de carros abandonados. O pior é que seus donos os largam com portas abertas, vidros baixos e por reflexo condicionado, acionaram os alarmes, de maneira que enquanto não descarregarem suas baterias ouve-se um ensurdecedor barulho de buzinas se repetindo até a exaustão.

As marginais estão entupidas de carros mal estacionados. Abandonados, no meio da pista expressa, com portas abertas, faróis acesos. Sobre as pontes na contra mão, em fila dupla. E mesmo que eu vá pela Lapa, aonde os faróis da rua piscam desordenadamente. Com quem mais eu irei formar um time?

Quase todos estão sumidos. Quando foi descoberto que aquelas criaturas vindas não sei de onde que se aglomeravam pelas praças de São Paulo com aquele ar inofensivo e aquele aspecto de um peixe humano, transmitiam um fungo desconhecido, que infectou primeiramente os garis que cuidavam da limpeza da região em que eles viviam. E que mais tarde foi se espalhando por toda a cidade. Nenhum de nós ficou muito apavorado.

Afinal os que moravam mais no centro trabalhavam nos bairros, outros como o Robertão trabalhava em Minas Gerais. Outros moravam em Osasco. Edson Sampaio morava no litoral. Pareciam a salvos.

Certo domingo Rodrigo chegou com a queixa de uma tumefação esquisita detrás da orelha. Eu mesmo olhei. Parecia a ponta de uma cartilagem.

Jogamos com ele até o meio dia e depois tomamos cerveja. Rodrigo nunca mais jogou. Adoeceu. E seus vizinhos de prédio só vieram mais duas vezes: Cristiano, Zé, Léo e Pedro Bola. O primeiro a sumir foi Alex. Dizem que foi para o mar.

Uma noite Catarino ligou para mim. Falava como se arfasse. Estava com febre e perdia pele. Ao lado do pescoço e por toda a região das costas nasciam cerdas cartilaginosas e já não conseguia respirar com facilidade. Achara uma saída fantástica. Enchera um saco de plástico de água. Primeiro com água da torneira, mas o cloro quase o matara. Disse-me. Então colocou água suja da vala em frente e mergulhara a cabeça. Desde então, falou com a voz bolhosa. Sentia-se muito bem.

Agora eu entendia o abandono dos carros. Seus donos os tinham largado para mergulhar nas águas do Tiete. Tamanduateí. Anhangabaú. Ipiranga.

Lugares aonde a água não possuía tratamento com cloro. Onde o cheiro de Amônia era um bálsamo para os afogados com ar.

Mais tarde soube que Robertão nunca mais viera de Minas. Chegara por lá o fungo? –Liguei varias vezes e um som de Glup… Glup… Glup… era o que eu ouvia embora o telefone sinalizasse conexão.

Eu que sou albino e possuo genes recessivos, continuo imune. Ando pelas ruas desligando carros barulhentos e olhando em cada vala para ver se encontro algum amigo. Nunca mais fui ao trabalho. Corro pela Nove de Julho, chutando uma bola de futebol de salão. Ando a pé. Não temos mais os telefones funcionando, as estações de TV saíram do ar e uma estação de rádio do Ceará de propriedade do filho de um acordeonista Albino famoso, é a única que está no ar. Toca música e me informa as horas.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial 2° Edição – 2018

Homens-peixe II – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Depois da grande enchente de 1996 do rio Tamanduateí que alagou as ruas próximas ao Mercado Municipal, trazendo grande alta no preço dos gêneros alimentícios que abastecem São Paulo, foi que os Homens-peixe começaram a aparecer pela cidade.

De início, sentados sob as pontes, nas calçadas das ruas sempre próximas ao Tiete, Anhangabaú, Tamanduateí e outros riachos, hoje transformados em grandes valas putrefatas, resultados das tentativas inúteis de reprogramar o curso antigo dos rios.

Não se passaram alguns meses, para que estes se agrupassem e começassem a se espalhar e se empilhar pelas praças, ao redor de monumentos e outros lugares públicos.

Pareciam mudos. Ninguém os ouvia falar. Ficavam tocando um no outro. Repartiam a comida que os motoristas atiravam pela janela dos carros. E o lixo se amontoava em qualquer lugar que estivessem. Com o lixo vieram os ratos, as baratas, as moscas, e o cheiro forte que não parecia incomodá-los.

As Campanhas de Saúde do Governo visavam apanhá-los e submetê-los a um banho químico, extração das escamas sujas, lixamento das presas enormes em alguns e outros exames biológicos, para a avaliação do DNA possivelmente humano.

Identificar a mutação.

Os jornais estampavam “Os Homens-peixe oriundos de Atlântida” empestam a cidade. São Paulo se tornara a capital mundial do Turismo Mutacional.

Diariamente chegavam vôos fretados com turistas vindos de todo o mundo. Espalhados pela cidade, fotografavam, distribuíam comida e atiravam guarda chuvas, bermudas, cobertores de plásticos, latas de cerveja, ração de tartaruga, comida de peixe e protetores solares.

O trânsito piorou múltiplas vezes e prosperaram as lojas de aluguel de carros. Por outro lado as placas de orientação das vias públicas ganharam a indicação em várias línguas, inclusive o Esperanto.

Guias turísticos saiam da Praça da Sé seguindo o curso da água represada de São Paulo e mostravam os grupos de Homens-peixe

sempre preguiçosamente fugindo do sol, reunidos sob arbustos provavelmente para se protegerem do calor que os ressecava e aumentava o cheiro característico de amônia que exalavam. Houve reurbanização destes locais e grandes vasos com palmeiras foram colocados pela prefeitura para criar sombra, o que era um balsamo para eles. Caminhões-pipa passavam periodicamente jogando jatos d’água sobre eles que alegres rolavam no chão e grunhiam.

Colocou-se um cordão de isolamento a certa distância dos grupos para protegê-los da fumaça tóxica dos carros, caminhões e outros veículos. Os caminhões, por poluírem muito, tinham sido responsabilizados pela morte exagerada dos que migraram da perimetral do Mercado Municipal para a Praça da República. Por fim foi proibida a venda de sorvetes, picolés, salgadinhos e outros alimentos embalados em plásticos que os Homens-peixe engoliam e morriam engasgados como baleias e golfinhos.

Os que faleciam eram levados para o IML onde eram submetidos a inúmeros procedimentos investigativos.

Incontáveis curiosidades sobre os Homens-peixe foram publicadas.

Palestrantes renomados. Entidades científicas. Personalidades do mundo Universitário. Definiam com variadas teorias suas origens.

Quiçá uma fenda do mundo aquático os trouxe. Talvez após um grande Tsunami. Quem sabe a longitude e a latitude de cidade semelhante à de Atlântida. E por que São Paulo?

Pelo alto teor de poluição. Pelo cheiro de enxofre de São Paulo à semelhança ao cheiro de enxofre das profundezas. Mesmo assim a poluição lhes era fatal. Eram muitos os que morriam. E não havia crianças entre eles.

Não havia exemplares do sexo feminino. Observou-se também que não brigavam. A tranquilidade entre os participantes dos grupos é devida a isto. Já nascem adultos do sexo masculino. Isso quem declarou foi um importante pesquisador na área de conflitos familiares que não quis se identificar.

Mas se multiplicavam. Como se reproduziam sem fêmeas? – perguntavam os cientistas nos programas de maior audiência nos canais de TV. Nas publicações científicas, nos jornais.

De repente algo estranho começou a acontecer. Os garis da Prefeitura que faziam a limpeza da área central da cidade e conviviam praticamente todo o dia com os Homens-peixe, começaram a engordar. Todos eles ganharam muito peso. E perderam seus pelos. Todos os pelos. Humanos sem cílios. Sem pelos nos braços e pernas. Carecas. Mais tarde seus filhos e esposas e mais tarde quem com eles morassem.

Descobriu-se por fim que ao limpar a área em que habitavam os Homens-peixe os garis juntavam aqueles punhados de massa branca idêntica às partes fragmentadas de uma colmeia que se criavam ao lado dos Homens-peixe. E as levavam para casa.

Esta massa branca era comida pela família e os engordavam a todos em demasia. Segundo alguns entrevistados pela mídia tinha o gosto de um hambúrguer.

Análise após análise foi descoberto que o produto recolhido era rico em hormônios femininos e masculinos e continha alto teor calórico. E abundava em proteínas. Eram ovas. Descoberto o segredo da reprodução deles. Os Homens-peixes não faziam sexo. Eram assexuados e punham ovos.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial 2° Edição – 2018

Gigantes – Conto firmeza de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu brincava com bolhas de sabão quando vieram os gigantes, cada um deles trazia outros pequenos gigantes, que pensei serem seus filhos, mas soube mais tarde que faziam parte de um circo, em que as pessoas nasciam sempre com mais de cinco metros.

Sinos da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, localizada no bairro do Trem, zona Sul de Macapá – Foto: Elton Tavares.

Eu vi quando um deles menorzinho, mas muito, muito grande, quebrou a torre da igreja e derrubou o sino que nos chamava para a missa nos dias de Domingo. O sino era verde por dentro, cheio de limo e espalhou este verde por muitos lugares.

Minha mãe assustou-se com a chegada dos grandes gigantes, não catou mais feijão,,não se demorou mais indo ao poço apanhar água, nem foi mais a casa de Dona Maricota, que era pertinho então eu pensei que estavam de mal. O cego Faustino que costumava sacudir a cuia com moedas cantarolando gemidos e quase uivos, agora pedia com um mexer de lábios. Tinha medo de com os seus lamentos, acordar os gigantes.

Eles ficavam na frente da televisão, riam e roíam as unhas e mexiam com as mãos entre os cabelos, depois atiravam no chão uns piolhões que possuíam o tamanho do carro de boi de Seu Jaime. Os piolhões corriam e começavam a cavar ate desaparecem entre a terra que ficava fofa e amontoada formando um morro, que depois subíamos. Era tal como escalar uma montanha.

Os gigantes apesar do fedor que exalavam, fomos nos acostumando com eles. Muitas vezes eu vi Seu Faustino entre os dedos dos seus pés, catando moedas. Ate mesmo os cavalos dos que apeavam a frente da venda de Quele, pastavam encostados aos pelos de suas pernas. Eu voltei a brincar com as bolhas de sabão e mamãe voltou a atravessar dois quintais para ir a prosa com Maricota, bastava entardecer.

Eu já tecia paneiros que vendia para os pescadores do Porto, quando os gigantes foram embora. Os menorzinho estavam pálidos e saíram arrastando os maiores e deixando enormes valados que acabaram por derrubar os montes abrir crateras e fazer com que aqueles piolhões pulassem de volta para o corpo deles.

O cego iniciou a cantar lamentos para pedir moedas e eu comecei a tecer enormes caixões de cipós e folhas de açaí, de maneira que para quem olhava de longe já não enxergava mais minha casa e nem mamãe conseguia sair para ir ao poço apanhar água e nem ouvia mais Dona Maricota gritar.

Ô vizinha!-Ô vizinha!

Dentro de casa era sempre escuro porque os enormes caixões impediam a entrada da luz do sol.E eu não conseguia parar de tece-los. Certa vez eu deitei dentro de um e morri.

Mamãe gritou tanto que estranhamente voltarão os gigantes e os piolhões. Agora tão pequenos, que para vê-los, ela precisou da lente dos seus óculos, uma sobre a outra. Ela se afeiçoou a eles. Passaram o resto de suas vidas, falando da minha vida aventureira e cristã.

E tecendo minúsculos paneiros e caixões. Construíram um sino de cipó, que todos os Domingos toca. Mas ninguém escuta.

*Luiz Jorge Ferreira é poeta e médico Macapaense criado no Laguinho, que atua em São Paulo. Ele também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de escritores Médicos (Sobrames).
**Do livro “Antena de Arame”.

Minha (Elton) reação diante de textos como esse: 

O Amolador – Conto porreta de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

“Fazia um silêncio de princípio de mundo”.
(Dalcídio Jurandir)

Contam que qualquer desgraça, a menor que fosse, já era esperada pelos trezentos e tantos moradores da Vila Vistosa de Manga Rosa. Há três meses não chovia e a terra rachava tal como os pés dos lavradores. Os moradores viviam acabrunhados pelos cantos e todos eles martelavam uma angústia terrível, embora houvesse quem espichasse um fio de esperança e levasse alguns fiéis a crerem mais no futuro.

Catarino, o amolador, deslizava suavemente o rio na sua ubá com o intuito de passar uns tempos em Manga Rosa, continuando sua peregrinação profissional entre as pequenas comunidades das ilhas, nas quais arregimentara grande prestígio e a consideração dos pescadores, dos comerciantes, dos lavradores e madeireiros. A bordo, sua mulher Renilda apalpava e penteava os cabelos lisos que de longos transpareciam auriluzentes contra o sol da tarde.

Fora um dia desmedido. Nunca se vira um arco tão claro e tão flamejante no céu daquelas paragens onde tanto chovia e tanto verde medrava antigamente sobre os barrancos aluviais. Os dois comentaram o tempo da última viagem à vila e a estreiteza do rio e suas margens lamacentas, pois mesmo com a maré elas permaneciam distantes, assim como se o rio se recusasse a dar seu conteúdo àquela gente pobre que dependia exclusivamente de sua passagem por ali.

À medida que remavam vinha a seu encontro um canto, que de murmúrio passava a ser um coro de lamentos. Era um antigo cantochão pronunciado em latim.

Aportaram com dificuldade no barro da beira do rio, puxando a pequena embarcação para a praia, como se tivessem certeza de que a maré subiria.

– É uma ladainha, disse Catarino. – O estranho é que não é tempo de festa do padroeiro, nem Semana Santa.

– Pode ser que alguém tenha morrido…

– É, tem muita cobra nesta ilha.

Subiram o cais do vilarejo banhados pelos últimos raios de luz. Na rua principal havia uma pensão onde conseguiram um quarto de chão batido, meio úmido. Armaram suas redes em escápulas ruidosas, e exaustos da viagem adormeceram sem se importarem com os carapanãs que vibravam as asas num barulho infernal.

Na casa de Maneco Barbosa, o cantador de ladainhas, alguém deu a notícia de que Catarino chegara ao povoado. Os presentes, que tomavam café após a reza, ensaiaram um sorriso. Não que aquilo fosse uma grande informação, mas de qualquer maneira representava um alívio para os produtores locais, pois na região não existia pedra que pudesse amolar terçado, enxada ou qualquer outro objeto cortante.

Amanhã a gente conversa com ele. O amolador de facas pode ser a redenção de nossa vila. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, disse Maneco, com as mãos para o alto.

Para sempre seja louvado, responderam os presentes, olhando para a cumeeira da casa infestada de aranhas.

O dia nasceu seco. E a aparência desértica realçava ainda mais a acidez das coisas vivas da cidadezinha. Um raro vento levou abruptamente as derradeiras folhas da gigantesca e quase secular mangueira que a frente do esquecido lugar tinha como símbolo. As folhas amarelas flutuavam como painas, confundindo-se no ar, fazendo evoluções fortuitas, desenhando letras imaginárias de uma escrita que talvez significasse um pedido de socorro. Tal como aquelas gentes, a árvore descascava, empretecia e enrugava sob a impiedosidade do sol, cujos raios caíam como bólidos de fogo, incessantemente e sem misericórdia. As gentes diziam não acreditar em castigo, mas acreditavam, embora antecipassem visões de desgraça em virtude da falta de material de trabalho e da ausência de chuvas.

O mais impressionante era a indisposição geral de procurar ajuda, mudar-se para outra vila ou se enfiar para rezar na velha capela construída pelos ancestrais. Todos os moradores eram de origem católica, batizados por padres italianos que raramente apareciam ali para rezar uma missa e batizar as crianças.

Contam que certa vez chegou um pastor de uma dessas inumeráveis seitas que grassam no interior e lá tentou se estabelecer. Convocou os moradores para um culto, mas apenas o doido Gonçalo apareceu. Os dois acabaram discutindo, indo às raias da violência, o que obrigou o presbítero a abandonar a vila às pressas.

As circunstâncias naturais e materiais promoviam pensamentos trágicos quanto ao futuro do lugar. Quase tudo o que se conseguia para comer estava no rio retraído pela estiagem. Porém o peixe estava rareando e os pescadores não se atreviam a ir além da curva do Furo do Ninguém. Atribuíam sua panemeira às últimas palavras do pastor expulso pelo doido, quando de certa maneira houve a conivência de todos: “Esta terra há de torrar e este rio será uma estrada de barro seco. Vocês vão viver agruras até a chegada do próximo milênio, tudo porque recusaram a palavra do Senhor”, dissera, ao embarcar em uma noite chuvosa, sob vaias, risos de deboche e chavões do tipo “praga de urubu não mata cristão”.

Porém, esse fato não abalou a maioria dos habitantes. Mesmo acabrunhados com a brusca transformação de seu meio de vida e apoquentados pela incerteza do tempo, consumiam com certa frequência o que ainda restava de cachaça na pensão do Naldo, conversando sobre suas próprias mazelas, tristes e sérios. Nunca riam. Mesmo sob o efeito do álcool.

Sonolento e ainda intrigado com o que vira na véspera, Catarino sentou na rede, balançou-se um pouco, chamou Renilda e resolveu ligar seu inseparável rádio de pilha para sintonizá-lo em uma emissora da capital.

Viu atônito sair primeiro uma, depois três, depois dezenas de cabas peçonhentas do interior do aparelho que estava repleto de uma massa seca e acinzentada. Com paciência e refeito do susto, o amolador o limpou cuidadosamente, mas desistiu de ouvir qualquer programa matinal. Lá fora os carrancudos moradores estavam à sua espera.

Temos o maior prazer de receber o nosso estimado amigo em nossa terra, cumprimentou-o o rezador Maneco, apertando-lhe a mão. – Como vê, estamos satisfeitos com a tua presença. Faz uns quatro anos que nós não apertamos as mãos.

Catarino tentou sorrir, mas desistiu da ideia. Formigas de fogo devoravam seus tornozelos. Ofereceram-lhe uma barraca para morar e instalar sua oficina, gesto que conseguiu agradecer embora agoniado com as ferroadas.

Dia seguinte, sob o comando do cantador de ladainhas, o povo organizou uma fila imensa, munido de suas ferramentas enferrujadas para apreciar o trabalho de Catarino, já devidamente instalado e pedalando o esmeril para afiá-las. Crianças curiosas metiam-se entre os adultos para ouvir o incessante barulho da máquina de amolar e observar com seus olhos brilhosos as faíscas da pedra. Quem tivesse dinheiro e quisesse pagar o trabalho, pagava. As senhoras, deslumbradas com o novo fio das facas, corriam para descascar velhos pedaços de macaxeira armazenados nas despensas. Um dos derradeiros bois do povoado foi sacrificado em nome da coletividade e repartido entre as famílias, com a anuência do proprietário, que o mantinha vivo com palmito moído no pilão. Lavradores recorreram aos depósitos para catar sementes e plantá-las nas roças abandonadas. Jovens e velhos rasparam as barbas e se perfumaram. As mulheres depilaram os sovacos e os pelos das pernas com navalhas afiadas, improvisaram salões de beleza para tirar cutículas e queimaram pulgas e piolhos, locatários dos seus longos cabelos. Alguns homens cortavam lenha e outros penetraram na mata estorricada procurando vestígios de frutas e raízes. Até caçavam para suprir a necessidade alimentar da comunidade.

Naldo, o dono da pensão, convidou a todos para uma festa que queria dar no centro comunitário em homenagem a Catarino e sua mulher, por terem conseguido a união dos moradores e a esperança comum de os mesmos sobreviverem com maior coragem através do trabalho. Até já sorriam. Faltava agora chegar o período chuvoso.

A festa começou com discursos e aplausos, mas infelizmente terminou logo, assim que um rapaz embriagado quis dançar com Creuza, uma das mais bonitas moças do lugar.

Recusado, o bêbado chutou o rádio de pilha que Catarino havia emprestado para o evento, e de dentro dele saíram novamente centenas de cabas coloridas dispostas a picar os convivas. No corre-corre alguém puxou de uma peixeira e acertou o infeliz causador da confusão, que rolou no chão estrebuchando. Dois de seus irmãos, revoltados e armados com canivetes, partiram para cima do agressor e o mataram, fugindo em seguida.

Quando o dia amanheceu, enterraram os mortos em caixões improvisados, sem o tradicional rito de encomendação das almas.

***

Catarino ficou surpreso ao receber aquelas pessoas deformadas, carrancudas e nervosas vindas do cemitério, trazendo objetos para amolar. Cada qual tinha o semblante carregado, agravado pelo inchaço das ferroadas.

Nos dias sequentes os homens nunca mais rasparam as barbas e nem as mulheres se depilaram. Foram ficando cada vez mais feios, sujos, embrutecidos. O amolador constatou que a maioria das ferramentas afiadas retornava a ele diariamente. Alguma coisa além do habitual estava acontecendo.

O vai-e-vem das ferramentas foi fundamental para que Catarino tomasse pé da situação: suas pedras de amolar estavam gastando em excesso, assim como os objetos dos moradores da vila. Facas, serrotes, tesouras, formões, enxadas e foices afinavam dia a dia, enquanto o estoque de esmeril diminuía. Ele e sua mulher notaram que outras coisas também modificavam.

Observaram, por exemplo, que as pessoas envelheciam e entanguiam precocemente, talvez por causa da quentura e da claridade da estiagem. Dava pena ver moças com tantos pés-de-galinha e rapazes de testa e pálpebras encarquilhadas. Velhos há pouco dispostos para o trabalho agora eram lassos, espectros impossibilitados de andar. As crianças pareciam albinos fugindo do sol, e os cães, feridentos, desabavam constantemente em alguma rara sombra, com um palmo de língua para fora.

Tomava conta da vila a desolação. Havia uma irritação permanente e recíproca entre todos, e até as lembranças recentes eram pequenas. Ninguém, nem Maneco Barbosa, conseguia recordar na íntegra a ladainha aprendida havia décadas com os padres italianos. Vegetais que outrora abundavam os arredores enterravam-se no solo poeirento, afundando até o caule. Seus galhos secos ficavam como dando adeus à vida, tal como mãos de afogado no pedido de socorro.

Os alimentos rareavam e o povo padecia de fome inevitável. Só o casal de amoladores tentava compreender a vala que sobrara do rio, lembrando o que lhes contaram sobre as proféticas palavras do pastor expulso do povoado. Na sua simplicidade pensavam eles que talvez tudo aquilo tivesse sua origem na Justiça Divina ou no mínimo fosse de origem política, pois acostumados a andar na região, nunca haviam visto tanta desassistência e tanta miséria. O amolador recordou que antes de ali chegar, em toda a região chovia. E muito, exceto em Manga Rosa que de vistosa nada mais tinha. Aliás, lembrou, nem cobra existia mais naquelas brenhas. Tudo virara alimento para a população faminta.

Decidiram mudar. Num momento de folga calafetaram a ubá que ainda jazia no barro seco da antiga praia e a empurraram para a vala, aquilo que restava do rio. Iriam pela manhã. Quase nada tinham para levar de volta e não havia necessidade de se despedirem.

À meia-noite um vento assobiou entre os galhos das árvores, correu penetrando as casas de pau-a-pique e se alojou no centro do rio. Outro vento desenvolveu o mesmo percurso. E outro. Mais outro…

Renilda foi a primeira a acordar. Chamou o marido no momento em que um clarão vindo do céu quase os cegou quando penetrou pela janela aberta. Três segundos foram o suficiente para toda a população sair à rua após o forte trovão que ensurdeceu a todos. Seguiu-se uma tempestade sem precedentes. Então gritos e orações se misturaram a choros incontroláveis. Choveu por cinco horas e ninguém mais dormiu.

A árvore símbolo e os outros vegetais secos da vila amanheceram com uma profusão imensurável de besouros. Eram tantos que pareciam formar uma espécie de teto sobre o lugarejo. Mesmo assim, os homens estavam mais alegres e muitos se cumprimentavam sem irritação ou desconfiança. E havia sinais de muita, muita chuva por desabar. Eles que se preparassem, pensou o amolador, a água que se aproximava era tanta que poderia matá-los afogados.

Catarino apanhou sua pequena bagagem e caminhou o rio junto a Renilda. Reconsertou a ubá, tirou a água do casco e substituiu o toldo de palha destruído pela chuva.

Ao fim do conserto, partiram devagar, contemplando a Vila Vistosa de Manga Rosa, lugar de coisas inomináveis, palco da miséria exacerbada e de homens endurecidos pelas circunstâncias. Um adeus era muito para quem partia a salvo com os corpos marcados, cansados e gastos como as pedras de esmeril que ainda sobraram.

 

*Este conto de Fernando Canto está publicado no e-book “Os tempos Insanos“.

 

O novato – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu notei que a bola que Edson Sampaio chutou sem querer nele deixou uma marca colorida no seu braço.

Quando terminou o jogo, fomos à quadra de bocha onde fica o bar do clube, como de costume, tomar umas cervejas e jogar conversa fora. Ele tomou banho e foi logo embora. Como era o primeiro domingo dele no meio do nosso grupo, Diniz, Catarino, Rodrigo e Robertão, atribuíram esta pressa à falta de entrosamento com o resto dos meninos.

Nos outros domingos foi mais ou menos igual. Jogava bem. Jogava bem no meio do campo, distribuía a bola, não reclamava de voltar para ajudar a defesa e quando o sol esquentava muito, cansado, mas não suado, pedia substituição. Entravam os que habitualmente chegavam atrasados. David, Thales, Cristiano, Junior, Jadson e Léo.

A única coisa estranha era quando ele interrompia o jogo para dar conselhos sobre o uso de brinco, pulseiras, piercing e outros apetrechos usados por nossos jogadores durante a partida. Queria evitar ferimentos. Pensei.

De outra feita, Pedro e José chutaram dois rebotes que pegaram nas suas costas. Ficou um pouco tonto. Sentado na quadra. Dododo correu para apanhar o spray analgésico. Suspendeu sua camiseta e foi quando eu vi de novo a repetição das marcas coloridas. Eram como se no local a pele houvesse sumido e um estranho tampão luminoso ocupasse o seu lugar. Parecia o centro de um olho de peixe, colorido e furta-cor. Podia parecer como uma tatuagem, mas aos meus olhos acostumados a feridas, cicatrizes, abrasões, queimaduras e outras mil formas de perda de pele. Não era.

Era como se ele carregasse sob a pele muitas lampadazinhas fosforescentes de cores diferentes em um mesmo local. Observei que o jato spray do analgésico como que evaporou quando caiu sobre a região brilhante. Carneirinho e Gardenal o carregaram para fora da quadra. O jogo continuou.

Naquele mesmo dia, assim que ele deixou o banheiro, eu entrei. Mesmo sem acender a luz eu notei um brilho próximo ao ralo. Parecia que tinham jogado mercúrio, algo líquido que escorreu deixando um rastro luminoso. Derramei bastante água. Até mesmo urinei sobre a mancha. Fui para a mesa com o resto da turma e esqueci. Soube, então, que meu filho havia apanhado as chaves do meu carro e fora levá-lo de carona. Aguardei que meu filho retornasse e fomos embora. Perguntei se ele, o novato, estava bem. Junior disse-me que quando o levou ele estava arfante e pouco falou.

Atribuí ao sol muito forte, sob o qual jogamos, sem substituição nenhuma.

Ele quis ficar próximo ao Mercado Municipal, onde o Tamanduateí cruza o Tietê, sobre aquela ponte. Olhei para o Junior, intrigado. Por certo morava por ali.

Desse domingo em diante, nunca mais veio jogar. Ficamos preocupados, mas agora, já seis meses transcorridos, o fato foi esquecido. Nunca descobri quem o convidou para jogar conosco. Vai ver que apareceu por lá à toa e o convidaram para completar o time.

Atirei fora o frasco de analgésico spray.

Desde aquele domingo, tenho lavado o carro muitas vezes, mas permanece forte um cheiro de amônia.

*Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial – Segunda Edição – 2018 – São Paulo.

Amuleto – Conto de Luiz Jorge Ferreira

 


Conto de Luiz Jorge Ferreira

O elefante entrou na canoa quando começou a chover… Comigo!

Em uma medalha aprisionada em um cordão de ouro dependurado no meu pescoço, recebido de minha Vó em 1906.

Na sacola Grená que eu carregava no ombro, estava minha mão direita dentro de um pote de vidro âmbar que eu usava para colocar as espoletas da velha garrucha, agora um pouco enferrujada, porém com uma mira certeira, destas de fazer inveja aos modernos rifles americanos, com laser.

Com ela eu seria capaz de acertar o olho de um beija flor em pleno o voo, mas nunca o fizera.

Todavia apesar de todos a bordo estarem sonolentos, sentiram a diferença quando embarquei, pela pressão que a pequena canoa fez na superfície d’água, aspergindo líquido em todas as direções, como se um peso enorme houvesse espremido a canoa fortemente contra a superfície das águas do rio Curiaú em direção ao fundo.

Curiaú – Foto: Elton Tavares

Sem dúvida sentiram, mas não podiam calcular que uns trezentos quilos representados pelo elefante que carrego na medalha em ouro dependurada no pescoço fosse a responsável… o canoeiro que assobiava um Carimbó muito famoso na região, o Tipiti, aproveitou a marola para sirocotear mais agilmente…

Com a mão direita alucinada para sair de dentro do frasco onde repousava, retirei o cotoco do braço escondido dentro da manga comprida da camisa e o enfiei na sacola, procurando apaziguar a mão até a noite anoitecer completamente.

Para acalmar o elefante acostumado a grandes viagens, porém estranhando o cheiro quente e úmido da Mata Amazônica, comecei a mastigar uns amendoins comprados em Breves, abri a gola da camisa até o meio do peito, principiei a cuspir para dentro dela fragmentos semi mastigados, para a captação pela tromba ágil e ligeira que agora vigiava meu mastigar.

O canoeiro ligou o motor e saímos da beirada do rio, rumo ao meio da estrada d’água… espremida pela canoa.

Meia noite e pouco ultrapassamos o limite com o mar…

Inquieto com o barulho das baleias a bombordo, o elefante bramiu, ninguém se deu conta, confundindo os dois barulhos com um só, oriundo das baleias.

Eu soltei a mão para que se concentrasse fazendo truques de Mágica com cartas…

Depois das três e meia da manhã, descemos em Val-de-Cães, eu bêbado.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (SP) – 2020

Contículos Alados (rápidos lampejos geniais de Fernando Canto)

TRAVESSIA 2

Para Herbert Emanuel e Joãozinho Gomes

Eu via o mundo invertido quando passava na rua do poeta. Ele acenava do fundo da terra me pedindo um dracma de ouro.

vm-sonho-de-consumo

INSÔNIA

Para Carla Nobre

Sem dormir à noite toda fui cedo à padaria comprar um sonho.

zebra_aotw

TRAVESSIA

Para Elton Tavares

Ao atravessar a faixa de pedestre só levantou a mão na hora do impacto.

392329_315526171877389_410196588_n1-500x500

RUA DO POETA

Para Paulo Tarso

Cruzava a rua do poeta plantando bananeira para não pisar nem na lembrança.

choque

O CHOQUE

Para Jorge e Edelwais

Quando as pedras finalmente se encontraram viraram pó.

tumblr_ntx4n0RDLs1skqw0co1_1280

PARTO

Para Luli Rojanski e Manoel Bispo

A torneira do jardim pariu seis gatos pingados. Acabara de chover.

15_MHG_sp_monomotor

OVERLOOPING

Para Osvaldo Simões e Isnard Lima

O “encosto”, reclinado, frustrou a acrobacia de Mayra no monomotor. O voo foi tiro e queda.

dvd-o-imperio-dos-sentidos-18681-MLB20159017135_092014-F

IMPÉRIO DOS SENTIDOS

Quando assisti “O Império dos Sentidos” a teu lado no Cine Orange, acreditei em definitivo que o ovo cozido é um alimento saudável. Que saudade de tua panela quente!

images (1)

ANSIEDADE

O cara é um paciente apressado.

Macapá-Lua-GêPaula_n
Foto: Gê Paula

BAIXA TESÃO

A lua iluminava tanto o céu de Macapá que os enamorados da Beira-Rio torciam por um eclipse.

Areia quente – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O Josi El Marani Roberto amputou as mãos. Dia 17 de Abril de 2000 AC.

O fato é que foram os camelos que derrubaram a tenda e as cordas que a amarravam nas ferragens fincadas ao chão, foram juntas. E Josi ELMarani Roberto foi tentar segurar esta trouxa enorme e pesada que o vento cheio de areia arrastava, foi neste instante que ficou sem as mãos.

Os camelos têm medo de borboletas. Era quase ao pôr do sol, quando isto aconteceu. Os outros membros da caravana estavam trabalhando nos seus afazeres tentando deixar tudo pronto para de madrugadinha reiniciarem a viagem.

Dizem que foi a grande fogueira acesa no meio do acampamento que atraiu as borboletas. Acreditam outros que foi o perfume de jasmim emanado do cartão postal que Saulo mostra, em todas a s paradas, aos companheiros. Recordações de sua viagem a Karutapera.

Ou podem ter sido as estórias de castelos e fadas que o velho Pires de Oliveira de pé, enchendo a jugular de sangue. Conta. E grita! Imitando o seu personagem principal o Mapinguary. Mas ele nem chegou a terminar seu grito desta vez. Por que o grito de Josi EL Marani Roberto foi enorme. Minhas mãos! Minhas mãos!

Os outros membros da caravana correram em sua direção e com um tição da fogueira queimaram o coto amputado. O sangue espalhado no chão foi rapidamente apanhado pelas formigas, que por sua vez foram comidas pelas andorinhas, que mais logo foram caçadas pelos morcegos, que um pouco depois foram comidos pelos falcões.

A tenda foi encontrada na manhã do terceiro dia engatada em uma palmeira. Gabriel guiado por seu cão a recolheu, enrolou as cordas, mas não achou as duas mãos. A caravana seguiu seu caminho, foi seguindo seu rumo para Penha de França.

Josi El Marani Roberto aprendeu a realizar suas tarefas, erguer o acampamento, descascar nozes e tâmaras, encilhar camelos, cavalos, ordenhar cabras, com os cotos do punho, tudo isso com a ajuda dos dentes.

Continuou como membro da caravana, até que eu o encontrei, mais velho, afastado das rotas do deserto. Sentado em um tambor vazio de óleo a beira do cais, de olho nas gaivotas, borboletas, e navios que chegavam de deserto carregados de areia. Era quando descia e ia vê-los descarregar, ficava esperançoso de encontrar suas mãos no meio da montanha de areia trazida do deserto para a construção das pirâmides.

Fora isso era um bom papo, entre a chegada de um navio e outro, contava estórias, fumava e bebia muita cerveja, numa rapidez enorme parecia um camelo com sede, prestes a sair em viagem.

Havia adquirido uma agilidade muito grande com os tocos do punho e com a ajuda dos dentes enormes que usava com uma garra, quase nem sentia falta das mãos. Amolava os dentes correndo com a boca aberta encostada na beira do tambor para dar tempera de aço a eles e afinar seu corte.

Havia se tornado sábio ágil musculoso e violento. Por qualquer pequeno motivo brigava. Enfrentava soldados, marinheiros, cães pitibull e certa vez até mesmo um tigre que escapara da jaula ao ser desembarcado no cais do porto, não foi capaz de escapar de sua fúria. Era um gladiador.

Só temia borboletas. Estas o faziam, como eu vi, esconder-se no tambor até que fossem embora, quando vinham as primeiras chuvas. E demoravam dias circulando em redor do tambor em que se escondia como a procurá-lo.

Foram elas que trouxeram suas mãos, anos depois, que ele limpou e dependurou como um amuleto, agora secas, no cós da calça, e são elas, que quando ele se aproxima caminhando provocam um barulho vindo dos anéis encaixados nos dedos mumificados que imita um som de sino, que denuncia sua chegada a metros de distância.

No dia em que ele morreu, os marinheiros colocaram-no dentro do barril e o jogaram ao mar. As mãos, eles as levaram ao faraó, que admirador daquele aventureiro, contador de estórias, valente e lutador, as mandou colocar em uma estátua de mármore feita em sua memória.

E ela é a única das centenas de estátuas do palácio que com as primeiras chuvas fica cercada de borboletas.

Hoje. Eclipse lunar, meia noite e quinze. Elas começam a cavar.

*Do livro de Contos “Antena de Arame” – 2° Edição 2016 – Rumo Editorial. São Paulo. Brasil.

CORNUCÓPIA DE DESEJOS – Conto muito porreta de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Por querer expressar meu pensamento sobre as coisas em meu idioma, às vezes arrebato o próprio coração em sofridas angustiosidades e dissentimentos infaláveis. Por isso monologo no granito e lavo em água este contraste, esta antagonia de imprescindível falação que ponho em tua trompa de eustáquio para te martelar suavemente a dentro.

É o caso do amor ensolarado que sinto agora, neste mirífico momento. Um assunto ressoante, uma prosa-cornucópia (onde a abundância reina) a refratar-se sem a culpa do inexpressável parlar.

Não vejo como não ensopar-me de enluação neste conto de candura quase irrevelável, posto que o meu amor possa entender-me ou espumar-se para sempre para o inevitável espanto que a declaração enseja. Paresque um salto com vara numa olimpíada de abismos.

Assim eu declaro: a cobra norato, o boitatá e as luzes do fogo-fátuo se expiram na noite cadente. Oh, teus olhos não! Teus olhos ternuram a medida do dia, solfejam histórias e cantam paisagens inescrutáveis para os sonostortos dos mortais. Eu sou o arauto deste cenário-testamento a castigar retumbantemente o couro dos tambores; eu anuncio a sublime compreensão do “amooor” que ecoa em gargalhadas sobre as ondas do Amazonas, aqui na Beira-rio, sob um céu azul intensificado de lilás quando anoitece. Eu declaro ainda: a pedra em sua bruta forma tem dentro de si os elementos primordiais que suprem tua sede de amar. Ora, Balance a pedra e sinta o gutigúti da sua oferenda. Lapide-a, pois ela provém da terra, e então perceberá o calor do fogo da paixão libertadora e o ar morno que movimentará o sangue pelas entranhas.

Num átimo, um áugure qualquer (que são muitos e banais) lerá tua sorte: dirá augúrios, claro. Um áuspice (que estão cada vez mais raros) dirá tua sina no raro voo dos louva-deuses. E te auspiciará de boas-novas e de valores inequívocos.

Ora, dizendo isso afirmo que sou aquele que nem sabe discursar suas dores, inda que saiba do futuro, pois habito o limiar do tempo. Eu sou a timidez em prosa e verso, aluno de poesia, mas prenhe de pecados, porque ingiro virtudes nos bares da noite e não sei segredar projetos inexequíveis. Não sei, juro pueril e ludicamente (mas com toda a sinceridade de uma parlenda) pela fé da mucura, torno a jurar pela fé do guará, torno a repetir pela fé do jabuti, que não sei mentir ao sabor do vento dos ventiladores que me sopram fumaça de charutos cubanos.

Descobri que sei de ti mais do sabes da pedra em teu caminho. Sou teu (adi)vinho incontestável, ad-mirador de tua trajetória. Por isso do alto da minha velada arrogância sei que tu também me amas.

Mas é de ti que quero o conteúdo dessa bilha onde Ianejar – aquele heroi dos índios waiãpi – e seus pareceiros se abrigaram do fogo ardente e do dilúvio. É por ti que generalizo a farsa da criação sem pesadelos cosmogônicos. Eu me agonizo em mistérios. Eu eternizo o meu olhar nessa paixão. E me enleio como as borboletas que viajam ao paraíso pelo buraco sem-fundo do fim da terra.

Por isso eu sei que te amo.

Por isso vago ainda em fluidos imemoriais sempre presentes, antes do esquecimento das vitórias que juntos comemoramos.

Por isso a ternura há de ser o mais farto elemento da imensa cornucópia de desejos que realizamos juntos.

O Sanitarista (Conto porreta de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

Depois de trinta anos ausente, o médico E. E. Spíndola avistou da aeronave o novo aeroporto da sua cidade natal e a placa de aço com os dizeres “Aeroporto Internacional das Ilhas Redondas Alberto Alcolumbre”. O dia estava amanhecendo em Macapá. Ele apanhou um táxi e mostrou o cartão do hotel ao motorista. Falante que só ele, o taxista lhe disse que pegaria a Rua Comandante Barcellos e seguiria pela Avenida General Ivanhoé, onde existira uma velha igreja em homenagem a São José, passaria por trás do Estádio Monumental dos Góes até o Marco Zero “Presidente Sarney”. Informou-lhe que passaria na rotatória da linha do Equador “Janary Nunes”, que atravessaria a Praça dos Capiberibe pela orla da Praia do Camarão no Bafo, e iria para a Cidade Evangélica para poder contornar novamente a orla em direção ao hotel, pois a Rodovia Praiana estava interditada em diversos pontos.

Ouvira no monitor do carro que havia uma greve de professores estaduais a reivindicar 501% de aumento de salários e a aquisição de instrumentos pedagógicos mais modernos para seus alunos. Também fora informado pelas redes sociais que no centro da cidade estudantes universitários e populares preparavam desde o dia anterior uma manifestação “pacífica” contra a falta de emprego e a corrupção. O médico fez uma cara de espanto, mas concordou com o taxista e seguiram. Ao chegarem ao destino, viu que o hotel tinha quase o mesmo nome de antes: “Macapá Hotel Vale do Tumucumaque”, mas que era agora um prédio de dezoito andares.

Era cedo, então tomou o seu café no restaurante e esperou a hora do evento que participaria. Perto das 09h00 adentrou o suntuoso salão de convenções “Ernestina Libório” e, para a surpresa sua, encontrou velhos amigos empaletosados em busca dos mesmos interesses profissionais.

Eram todos médicos sanitaristas preocupados com um surto de varíola que grassara inexplicavelmente na região, uma doença que parecia extinta há mais de cem anos. Realmente era preocupante. Na foz do rio Amazonas uma peste medieval dessas poderia ser muito perigosa para todas as populações que cresceram ao longo do rio e nas ilhas oceânicas, incluindo a do Marajó, agora um estado federativo importante da região.

E.E. Spíndola tomou seu lugar à mesa e foi apresentado pelo mestre de cerimônia aos presentes como grande referência nacional sobre o assunto daquele importante colóquio científico. Na sua conferência lembrou os dias difíceis como estudante vindo do interior do estado e de sua luta para conseguir se formar e crescer como médico e pesquisador. Muitos amapaenses se emocionaram ao ouvir a triste narrativa.

Abordou o assunto com competência, inclusive referindo-se à história local,citando o caso de um surto de varíola ocorrido na década de 1750, quando da fundação da vila que originaria a atual capital do estado. Propôs soluções socioambientais e imunológicas que mais tarde seriam consideradas incoerentes e megalomaníacas pelos mesmos colegas que o ovacionaram de pé quando terminou de falar. Lançou seu novo livro digital sobre o assunto em cerimônia previamente preparada pela editora com quem possuía exclusividade nas vendas e foi cumprimentado pelas autoridades presentes.

Almoçou com o senador Zéfiro Libório, pai do atual governador e seu herdeiro político, após lutas e lutas inglórias contra as oligarquias dos Capiberibe e Góes que se alternavam no poder havia gerações. À noite pegou um superbarco e foi jantar na Ilha dos Caititus, do outro lado do Amazonas. Comeu um prato estranho, mas muito delicioso e, sobretudo muito caro: filhorada ao molho de cupuaçu, uma mistura genética dos peixes filhote e dourada, criada em cativeiro. O prato era preparado com ervas aromáticas, marinado ao vinho e servido com a raríssima polpa de cupuaçu.

E. E. Spíndola foi apresentado a magistrados e juristas da terra que eram clientes contumazes e chiques do restaurante. Estavam acompanhados de lindas e exuberantes mulheres, porém de vez em quando se levantavam para rubricar em I Pad’s processos digitais que os subalternos oficiais de justiça levavam a eles de helicópteros. Pastores, deputados e padres gordos se refestelavam nos pratos principais e nas sobremesas. As elites riam a cada gole de um escocês e entre as baforadas de cubanos. Spíndola chegou a ver uma tentativa de protesto de dezenas de canoeiros ribeirinhos doentes remando e gritando, empunhando lampiões e faixas na escuridão, ato imediatamente dissolvido à bala pelos seguranças locais. A arrogância e o deboche das autoridades presentes causou repugnância no médico. Naquele momento ele percebeu o clima hostil das autoridades e se despediu. Entrou no superbarco, já cancelando pelo celular a visita que faria no dia seguinte às vilas ribeirinhas afetadas pela doença. Decidiu viajar o mais rápido possível para a Europa.

No trajeto veloz observou as luzes de Macapá crescendo ao longe, imaginando o quanto seria bom se as comunidades amazônicas tivessem lugares como aquele restaurante luxuoso que parecia uma redoma protegida do contágio da peste ribeirinha. Pensou em soluções definitivas para a epidemia e devaneou por uns dois minutos.

Próximo ao porto da cidade foi surpreendido por um vergalhão da pororoca que emergiu de repente no meio do rio. Ela veio sutilmente se formando por baixo do canal como uma cobra traiçoeira. Havia migrado nos últimos anos da foz do Araguari devido às alterações geográficas e ecológicas causadas pela instalação de quatro usinas hidrelétricas ao longo do outrora rio do vale dos papagaios.

A onda de arrebentação rompeu como um ser criado pelos deuses, dançarina louca bailando à música do vento, carregando lama e espuma e sedimentos no seu percurso de destruição, sem esquecer de levar em sua primeira vaga o superbarco de passageiros. O médico sanitarista ainda teve calma de espírito ao ver, pela primeira e última vez, antes de se afogar, os jovens surfistas luminosos, de lâmpadas de LED coladas aos corpos, saltarem do nada com suas pranchas de raios coloridos sobre o dorso da grande onda da noite.

Eram anjos montados no macaréu, indo ao encontro das ruínas do forte, um antigo símbolo da cidade.

*Republicado por conta de 2 de janeiro ser o Dia do Médico Sanitarista. 

Frases, contos e histórias do Cleomar (Parte VII)

Tenho dito aqui, desde fevereiro de 2018, que meu amigo Cleomar Almeida é cômico no Facebook (e na vida). Ele, que é um competente engenheiro, é também a pavulagem, gentebonisse, presepada e boçalidade em pessoa, como poucos que conheço. Um maluco divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade, além de inventor do “PRI” (Plano de Recuperação da Imagem), quando você tá queimado. Quem conhece, sabe.

Na mesma linha da PRIMEIRA, SEGUNDA, TERCEIRA, QUARTA, QUINTA e SEXTA edições sobre seus papos no Facebook, mais uma vez selecionei alguns de seus relatos hilários na referida rede social. Saquem o sétimo capítulo dos disparos virtuais do nosso pávulo e hilário amigo. Boa leitura (e risos):

Festas de fim de ano e a gula

Só sei dizer que desde ontem, já comi umas doze vezes, e ainda tem o Réveillon… Valei-me, Nossa Senhora! Agora a gente explode!

Flamengo perde a final do Mundial de Clubes

Pra acabar com toda essa discussão sobre futebol, eu tô feliz demais com o meu time, tu estás feliz com o teu?

Política, cultura e beleza

O Bolsonaro chamando o Paulo Freire de energúmeno é tipo eu, chamando o Brad Pitt de feio. Deu pra entender!?

Inferno

Rezar pra no inferno ter uma subdivisão entre os que pra lá foram só pelo tanto de cagada que fizeram – nesse caso, me incluo – e os FDP que foram parar lá porque são ruins de verdade. Não vou para o céu por critérios técnicos, mas sou gente boa.

Palestra motivacional

Aí tu vais numa palestra motivacional e de cara o palestrante chega te parabenizando, afinal, entre milhões de espermatozoides você foi o mais eficiente. Na hora começo a querer ter um ataque de riso. A colega ao lado pergunta o motivo e ainda sob o efeito das risadas respondo – Se eu, que já sou meio doido fui o vencedor, faço uma ideia o nível dos meus concorrentes.

Moda e custo

Fugindo das lojas que tem “Maison” no nome, só vou nas que tem “Confecções” ou “Modas”.

Governo Bozo

No Governo Bolsonaro, se o cara não for doidão, tá fora!

Aposentadoria

Segundo a nova expectativa de vida do brasileiro, de 75 anos, eu me aposento num dia e morro no outro.

Porradal

O UFC tá perdendo dinheiro; podia conveniar com esses concursos de Miss/Musa de Macapá. O porradal é garantido no final.