Rock doido de bom – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Estive mais uma vez reunido com a galera do rock. Roqueiros de várias gerações vieram falar comigo. Uns lembraram o som do rock que ouviram em discos de vinil e outros me falaram de novidades tecnológicas, as mil possibilidades de se fazer som em novas plataformas (é assim que se diz, né?).

Ao contrário do que muita gente preconceituosa acha, show de rock é um momento de paz e papo com os amigos. Um grande encontro que, muitas vezes, pelo menos pra mim, o que menos importa é o show que rola no palco. O meu show, o nosso show, fazemos nós.

Confraternização é o nome certo desse encontro, com acordes gritantes das guitarras. É certo que, na roda punk, o caboco pode muito bem levar uma porrada valendo, mas ele desconta em outro, o outro desconta em outro e assim vai até o fim, sem que ninguém seja derrotado ou que a brincadeira acabe num porradal.

Celebração de memórias afetivas, contação de histórias do tempo de a gente largado, sem compromisso, sem ter que acordar cedo, enchendo a cara de vinho barato pelas madrugadas insones, entre conversas piradas.

No Dia Mundial do Rock, que, curiosamente, só acontece no Brasil, fui ao encontro desse universo, acompanhado de meus filhos, Pedro, Artur e o Capitão Açaí, que a todo momento era lembrado por alguém. E, claro, uma multidão de amigos que me fizeram parecer o grande astro, o superstar da minha noite.

Vida longa aos roqueiros que empunham a bandeira do rock, o escudo da amizade e são capazes de a tudo vencer, até pandemias e guerras e fome e governos criminosos e desastrosos.

E tome brejas, cigarros e outras cositas que fazem florescer a mente e alegrar o coração, já sambado de tantas revoluções.

Rock sim! Rock sempre! Rock na veia do mundo!

Poesia de agora: Coleção de vinil – Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Coleção de vinil

podem me chamar
de arcaico antiquado
ultrapassado inatual

podem achar que faço média
ou que vivo na idade média

podem me chamar de avô
do homem de neanderthal

que sou o cara mais mala
que já se viu

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

podem me tachar de antigo
digam que estou no passado

que sou o cara mais quadrado
deste mundo

mas nessa onda eu vou fundo
e grito pra quem ainda não ouviu

eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

também tenho coleção de cd
podem crer

eu tô ligado plugado conectado
sei lá mais o quê

mas me deixem ouvir abafado
chiado riscado o meu lp

eu prefiro mudar de planeta
fugir do Brasil

mas eu não me desfaço
da minha coleção de vinil

Poema de Ronaldo Rodrigues ilustrado por Ronaldo Rony

Verônica, a submersa (conto firmeza de Ronaldo Rodrigues, ilustrado por Ronaldo Rony)

Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.

Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.

Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.

O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.

Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.

Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.

Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.

Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.

E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.

E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.

Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.

Ronaldo Rodrigues

O menino que roubava livros – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Que roubava, não! O menino que rouba livros! E esse menino sou eu! Tá, tudo bem, já estou mais pra velhinho do que menino, mas fiz analogia com o título do filme “A menina que roubava livros” para nomear esta crônica. E por falar em crônica, vamos a ela.

Sou um contumaz ladrão de livros e não me considero criminoso. Pelo contrário, sou um benfeitor da humanidade. Não coloco na condição de crime essa modalidade de roubo. E também não se trata de vício e, sim, de uma virtude. Passemos ao meu ponto de vista sobre o assunto e ao discurso de defesa, caso seja flagrado em algum momento perpetrando o meu “crime”.

Um livro não manuseado perde totalmente sua função. Por isso, não hesito em levar pra casa os que encontro largados, em total abandono e esquecimento. Não me sinto bem ao ver um livro na estante de alguém que o mantém ali apenas para ostentar uma possível erudição ou, pior ainda, para dar ao livro a simples função de ornamento, um objeto de decoração. Aí eu liberto o livro daquela situação vexatória, contrária à sua natureza, que é abrir horizontes, ser o portal de viagens interplanetárias, cruzar oceanos, desbravar novas terras. Ou simplesmente vasculhar o universo que há dentro de cada pessoa.

Na verdade, o Código Penal pode classificar como roubo, mas eu chamo de adoção. Pego o livro que estava destinado a alimentar traças e acumular poeira e o levo pra casa, onde receberá a devida atenção. Eu limpo o livro com todo o carinho e faço uma restauração básica, tipo colar páginas soltas e reforçar a lombada, caso seja necessário. E, depois de lê-lo, guardo-o em um lugar especial, todo pensado para abrigar livros, onde será respeitado e colocado à disposição de quem queira se aventurar por essa viagem fantástica que é a leitura de um livro.

Portanto, meus caros amigos, cuidem bem dos seus livros ou, caso eu tenha uma oportunidade, vou incorporá-los ao meu humilde patrimônio bibliotecário. Mas não tenham medo de me emprestar algum livro, porque faço questão de devolvê-los. E minha pequena biblioteca não é feita somente de livros roubados. Também os compro nas livrarias e sebos e faço girar o mercado editorial. É, pessoal! Esse negócio de roubar livros tem seus critérios muito bem definidos.

“Tropeçavas nos astros desastrada / Quase não tínhamos livros em casa / E a cidade não tinha livraria / Mas os livros que em nossa vida entraram / São como a radiação de um corpo negro / Apontando pra expansão do universo / Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso / E, sem dúvida, sobretudo o verso / É o que pode lançar mundos no mundo” (trecho de Livros, música de Caetano Veloso)

Pela janela azul do manicômio – Crônica paid’égua de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Um mundo ainda não corrompido se estende pelas ramificações da cidade, em alamedas de flores, que atravessam o grande oceano. É o mundo não corrompido que vejo pela janela azul do manicômio.

Um mundo desprovido de césares e eunucos, de tédio e de policiais. Onde foram abolidas todas as penas, de morte e de vida. Em cujas praças, esquinas e avenidas olhares se atrevem, se atravessam e se comunicam com os segredos da vida, sem colisão de pensamentos. Esse mundo quer existir para todas as pessoas através de mim. Esse mundo me quer como mensageiro de sua paz cotidiana, de respeito mútuo, de fraternidade.

Eu necessito urgentemente de uma caneta para descrever esse mundo, anotar sua fórmula. Corro em direção à escrivaninha em busca de caneta. Quero deixar registrado esse mundo fabuloso, que me acena na noite, pela janela azul do manicômio. Quero dizer que esse mundo existe e pode ser por nós alcançado.

Abro as gavetas, uma por uma. Reviro os papéis na escrivaninha e não encontro caneta, lápis, qualquer coisa com que se possa escrever. Não acredito! Não pode ser! Nunca fiquei sem caneta em toda a minha vida e justo agora que mais preciso…

Começo então uma busca frenética. Remexo pastas. Violo armários. Coloco pelo avesso os bolsos de todas as roupas. Atropelo objetos. Mas tudo é inútil! Não encontro uma caneta sequer e o mundo ainda não corrompido aguarda lá fora, navegando na noite.

Lembro que na esquina da rua do manicômio azul há um boteco onde poderei comprar uma caneta ou quantas eu quiser ou puder ou precisar. Abro a porta do quarto, desço as escadas, pulo a janela do andar térreo e saio correndo pela rua em direção ao boteco. Os enfermeiros de plantão logo são avisados e partem em meu encalço. Não há tempo para explicar a eles que não se trata de uma fuga. Eles não entenderiam a urgência de se comprar uma caneta em plena madrugada.

Continuo correndo em direção ao boteco, o último, o único aberto na noite, em todo o planeta. Acelero a marcha porque o sonolento dono do boteco, sem desconfiar da importância daquele ato, fecha va-ga-ro-sa-men-te a porta antes que eu consiga alcançá-la. Inutilmente, fico batendo desesperado na porta do boteco que abriga vários e vários pacotes de caneta.

Os enfermeiros chegam, trazendo uma camisa de força. Eu me rendo e sou conduzido de volta ao quarto. Me aplicam um tranquilizante e eu fico inerte na cama, observando pela janela azul do manicômio um mundo ainda não corrompido se dissipando na noite.

Viver e respirar – Crônica porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Foi o que pensou Neurinha, adentrando os 19 anos e achando que, naquela idade, seria bom começar a pensar nessas coisas. Seria bom pensar em alguma coisa. Qualquer coisa.

Mas o pensamento mais louco mesmo ela teve depois:

– Será que consigo morrer SEM parar de respirar?

Seu cachorro respondeu que não, ao que o ursinho de pelúcia disse que sim:

– Viver e respirar são coisas completamente díspares, conflitantes. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Tenho dito!

O cachorro de Neurinha ponderou que aquela maneira de falar do ursinho de pelúcia deixaria Neurinha ainda mais sem entender nada.

Neurinha, por sua vez, continuou sem nada entender. Paciência. Era sua natureza. Não entender qualquer coisa era a única coisa ao alcance de qualquer coisa que Neurinha pudesse entender. Entendeu? Nem eu!

Neurinha procurou os sábios conselhos de seu antílope de estimação, Clodoaldo, que entendia muito bem dessas questões, quando não estava ocupado em beber, fumar e levar mulheres para o apartamento.

Clodoaldo passou a contar a história de um tatu que fez greve de respiração em protesto contra a proliferação de armas nucleares e morreu em poucos minutos, ainda a tempo de ordenar a seus seguidores que invadissem a Casa Branca e incendiassem a provisão de amendoim.

Claro que Neurinha não entendeu e parou de se questionar. Resolveu passar à ação e cometer o ato de parar de respirar.

Segundo o método dos ninjas, Neurinha girou o nariz como se fosse uma torneira e parou de respirar.

Você, caríssimo leitor, já sacou que Neurinha era bem tontinha. Pois é. Até hoje ela não sabe se morreu.

Um universo para Rita Lee Jones – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Na verdade, há que se mudar este título, pois Rita Lee Jones jamais caberia em um só universo. Mas vou mantê-lo, imaginando que a Rainha opinaria desta forma: – Ôrra, meu! Deixa o bichinho aí! Muda não! Tá fofo!

Não há muito mais o que falar de Rita Lee Jones, sua vida sempre esteve às claras, na luminosidade de sua figura no palco, sem se furtar a mostrar o fundo do poço. Encarou com as armas da verdade os desafios do mundo dos machos escrotos do rock, meteu o peito (mesmo que se achasse sem peito), quebrou barreiras e sobrevoou serena sobre a caretice reinante no planeta na cintilante cauda de um disco voador.

Ecologista de primeira hora e de verdade, defensora dos animais, crítica contumaz da farra do boi, rodeios e demais barbaridades que muitos chamam de esporte e diversão, Rita Lee Jones sempre esteve na vanguarda, desacatando autoridades quando estas não tinham a menor autoridade para coisa alguma. Não livrou a cara dos milicos, saudou a Democracia Corinthiana chamando para o palco Sócrates, Wladimir e Casagrande, defendeu seus fãs de baculejos violentos num show em Sergipe em 2012, episódio em que foi levada à delegacia para prestar esclarecimentos, já na era da nossa frágil democracia. Num caso de prisão anterior, em 1976, bem mais barra pesada, Rita Lee Jones recebeu a solidariedade e a visita de outra estrela maior, Elis Regina.

Beatlemaníaca, se sentiu traída quando os garotos de Liverpool se casaram com outras mulheres e rompeu com eles, só se reconciliando quando o beatle John teve seu trágico fim. Perguntada, num programa de televisão sobre qual beatle era o seu preferido, não hesitou: – Ah, os quatro! Dei pros quatro! Quem veio ao mundo com a marca da iconoclastia não deixava de cultuar seus ídolos. E do maior deles, James Dean, Rita chegou a fazer parte de um fã-clube de viúvas do rebelde astro hollywoodiano.

Da Vila Mariana para o mundo, a mais completa tradução de São Paulo (segundo Caetano Veloso e quem conhece a cidade), a Joana Dark do Lexotan lançou seu perfume inebriante e, de braço dado com esse tal de Roque Enrow, arrombou a festa da Música Popular Brasileira e deixou sua marca da zorra nos nossos corações.

A mim, só me resta admitir: a nossa ovelha negra é mesmo do balacobaco! Santa Rita de Sampa, milagrosa seja vossa festa!

Cicuta-beer – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordo bêbado.

Ato ao pescoço minha corda-gravata rosa de bolinhas azuis e vou encarar meu sórdido e rentável emprego: espantalho das plantações de eletrodomésticos de Madame Nero.

Nas horas vagas, vou alimentar a coleção particular de Madame Nero, seus bichinhos de estimação: quinhentos e vinte e oito rinocerontes prateados que se alimentam exclusivamente de algodão doce.

Volto para casa cansado, mas cantarolando.

Vejo muitas pessoas na Praça Transcendental.

Entre mendigos e bêbados, encontro Morfeu dormindo num banco de mármore, abraçando uma garrafa quase vazia de cicuta-beer. Está coberto por vários jornais futuros que deixam ler, em manchetes imensas, a abolição dos ponteiros e dos relógios, dos arquivos e dos escritórios e anunciam A Grande Libertação do Dia.

Respiro aliviado a fumaça do rush e ciscos voadores invadem meus olhos. Mas nada mais tem importância. A vitória da Fraternidade Cósmica está garantida e seremos todos felizes.

Jogo meus tênis e tédio e temores na lata de lixo, me misturo aos bêbados e mendigos e passo a esperar o grande show dos Incendiários das Nuvens.

Ronaldo Rodrigues

Segundo de abril (lá vem o Gino de novo) – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Hoje, segundo de abril, eu tenho algo a mostrar. Seria (seria, não. É!) aniversário do Ginoflex. A gente sempre festejava (aliás, continua festejando. Mais tarde, vou tomar umas por ele).

Depois que passou dos 50, o Gino não sabia exatamente qual a idade que inaugurava a cada 2 de abril. E eu dizia que ele não tinha nascido no dia primeiro de abril porque ninguém acreditaria. O Gino, qual o Tim Maia, era um personagem que extrapolava a vida real, transgredia qualquer padrão de normalidade. Nem os mais criativos ficcionistas conseguiriam imaginar suas verídicas aventuras.

Então, este texto vai em homenagem ao Ginoflex, que estaria completando 59 anos. Ou 57. Ou 58. Impossível saber. Ele mesmo não sabia, já que documentos de identidade já tinham se desgarrado dele há milênios. Eu brincava dizendo que ele era tão velho que, para saber com exatidão os números de sua existência, teríamos que submetê-lo ao teste do carbono 14, aquele elemento químico que detecta a idade dos fósseis. Não à toa ele era também chamado de Ginossauro.

Imagino o Gino (des)organizando sua festa de aniversário lá onde esteja neste momento. Som chiadinho de discos de vinil, muita cerveja e aquele cigarrinho que o deixava irritado. Quando faltava.

Parabéns, Gino! Continuaremos por aqui, festejando, fazendo um brinde a cada respiração, enquanto não somos convidados a nos retirar desta festa nem sempre divertida chamada vida.

Verdade seja dita – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sim, eu não sou o dono da verdade, pois a pessoa que me vendeu a verdade, em suaves prestações, mentiu pra mim. A verdade, na verdade, pertence a todo mundo que quiser ostentar o título de dono da verdade. A verdade tá pouco se lixando pra quem ainda a leva a sério, pra quem ainda dá importância a esse conceito volátil e volúvel.

No fim da negociação, antes que a pessoa que me vendeu a verdade partisse para suas férias num paraíso fiscal qualquer (deve ter vendido a mesma verdade pra muita gente e enriqueceu), compreendi que as prestações, que eu achava tão suaves, de suaves nada tinham. Eram massacrantes. Fui eu, euzinho, que fiquei inebriado pela ideia de ser o detentor da verdade, e agora tenho que pagar por isso infinitamente. Fui eu que me iludi achando o preço razoável. Eu me machuquei de verdade com aquela miragem que se dizia verdade. Depois, apareceu outro sujeito querendo me vender uma verdade de segunda mão, arranhada, meia-boca, mas ainda ostentando fumaças de grandeza, restos de um esplendor do fim do século XIX, quando ainda tinha algum valor no mercado, nem precisava de tantos documentos para que fosse comprovada. Aí eu disse não! Eu não precisava de ninguém para ter a verdade, eu mesmo invento a minha verdade, que, para existir, basta apenas que eu acredite.

O conceito atual da verdade foi caindo tanto que agora cada um tem a sua, é dono da sua verdade, como se fosse um pet, e dane-se se essa verdade tem a ver com qualquer resquício de coerência. Pode ser contrária a qualquer lógica, mas, se o sujeito quer acreditar mesmo, é capaz de criar todo um contexto em que sua verdade se encaixe e ganhe ares oficiais.

Outro dia vi um leilão online em que várias verdades estavam expostas. Nestes tempos em que a eleições se aproximam, como um círculo de tubarões cercando o náufrago à deriva no oceano, milhares de verdades estão à venda. Pode-se até alugar uma verdade pra usar em alguns momentos. Uma verdade – quase – absoluta é ótima para algumas situações.

Encontrei uma verdade perdida na rua e levei pra casa. Estou alimentando essa verdade com muitas mentiras e adestrando na base do ódio. Quando estiver bem grande e robusta, vou soltar a minha verdade em cima de qualquer um que venha com uma verdade que se pretenda mais verdadeira que a minha. Quando estiver cansado e insatisfeito, vou passar a verdade adiante ou sacrificá-la. Já estou de olho em outra verdade, uma bem tecnológica, o lançamento mais recente do mercado. Vou comprar pela internet direto da China. Os fabricantes me garantiram que nessa verdade eu posso acreditar, mas é bom ter um estoque de verdades de menor calibre para usar no dia a dia.

Vejo autoridades corruptas reivindicando sua verdade. Vejo pastores vendendo sua verdade. Vejo grupos armados defendendo sua verdade. Vejo marqueteiros maquiando sua verdade. Vejo candidatos espalhando sua verdade. Até sou capaz de ver a verdade, sim, a própria, a legítima, a única. Ela está deitada, dormindo tranquila, ao lado da minha cama.

Sexo, mentiras e videotapes – Crônica porreta e cinematográfica de Ronaldo Rodrigues

Crônica cinematográfica de Ronaldo Rodrigues

Diretamente de Paris, Texas, o repórter Borat relata uma trama macabra: O mágico de Oz matou a excêntrica família de Antonia e foi ao cinema. Tudo por um punhado de dólares, que teve o sol por testemunha.

Pegou o taxi driver que conduzia Miss Daisy, atravessou as vinhas da ira, além da linha vermelha. Entrou no cinema Paradiso e viu os Piratas do Caribe invadindo a Fortaleza. Convidou o exterminador do futuro pra tomar um drink no inferno. Sentindo-se um náufrago, saiu em direção ao aeroporto, de volta para o futuro, sonhando com a ilha do tesouro.

Entrou no Bagdá Café e comeu tomates verdes fritos, que estavam como água para chocolate. Do nada, surgiu King Kong deixando todo mundo em pânico. Ouviu alguém gritar: Corra, Lola, corra para os embalos de sábado à noite. Nisso, passou correndo uma multidão. Seriam as invasões bárbaras? Ou o grande motim?

Eram todos os homens do presidente e o povo contra Larry Flint. Cansado de tantos filmes, voltou à casa do lago, onde Harry Potter tinha instalado sua fantástica fábrica de chocolate. À beira do abismo e à queima-roupa, fez ao poderoso chefão a pergunta que não quer calar: Quem vai ficar com Mary?

Atenção, passageiro desta segunda-feira! – Por Ronaldo Rodrigues

Por Ronaldo Rodrigues

Atenção, passageiro desta segunda-feira!

Estamos voando em velocidade de cruzeiro.

O tempo é bom, se consideras, como eu, que chuva é tempo bom.

A visibilidade é boa. Acabei de pingar um colírio de novo horizonte.

Estamos sobrevoando Macapá, que promete se comportar bem este dia.

Estamos sujeitos a turbulências, mas, caso haja alguma emergência, daquelas bem foda mesmo, serás inundado por sentimentos de amizade e esperança.

Este avião – a segunda-feira – promete – e cumpre! – que atravessará o tempo e o espaço e pousará no aeroporto do paraíso. Mas aí tu terás que embarcar no próximo avião – a terça-feira – , onde a viagem já será outra.

Bom voo para nós.

Marieta (texto experimental & tal de Ronaldo Rodrigues)

Texto experimental & tal de Ronaldo Rodrigues


Marieta subiu na carreta nem se importando com as caretas das ninfetas que ficavam à tarde no maior alarde com suas lambretas pretas estacionadas na sarjeta.

Avistou o monge lá longe, sozinho no caminho de espinhos.

Notou seu cansaço e seu passo lasso em descompasso.

Ele atravessava o deserto com seu andar incerto, espantando os insetos.

Marieta ofereceu uma carona e o monge aceitou na hora sem demora.

Ele que não era ingrato, de bom grado, dizendo obrigado, embarcou naquele caminhão grandão que transportava gente carente pelo sertão.

Marieta seguiu então em direção ao rio, cruzou a ponte e o mirante, descortinando um novo horizonte e embarcou mais três pessoas que andavam à toa, ao léu, tendo por testemunha só chão e céu.

Marieta desde menina franzina cumpria aquela sina de peregrina transportando gente de todo lugar sem nunca cansar nem pensar em parar.

Um dia haveria de parar e como o povo iria se virar?

O caminhão percorria o chão do sertão e estava quase para deixá-la na mão.

Quando o caminhão então de supetão parasse de vez, Marieta continuaria a pé, ela e sua fé, que nunca deu marcha-ré, carregando gente pela mão.

E se seu corpo cansasse e cessasse sua respiração não faltaria inspiração.

Continuaria na outra vida ajudando a multidão a encontrar a direção.

Seria uma santa dirigindo uma jamanta giganta carregada de boa intenção.

Saudade de Macapá – Crônica saudosa de Ronaldo Rodrigues #Macapa265Anos

Crônica saudosa de Ronaldo Rodrigues

Eu não passei a infância e a adolescência em Macapá. Foi lá em Curuçá/PA (infância) e Belém do Pará (resto da infância, adolescência e parte da vida adulta). Talvez essas duas cidades tenham me preparado para reconhecer em Macapá também a minha cidade. A cidade que, com as duas citadas acima, dá forma triangular ao meu coração e completa minha geografia humana. A cidade que não vivi na infância e adolescência, mas da qual eu estaria, certamente, morrendo/vivendo de saudade hoje.

Saudade do maior rio do mundo rodeando a Fortaleza de Macapá. Saudade das festas populares que aconteciam no local onde hoje é o Teatro das Bacabeiras. Saudade do Igarapé das Mulheres, de viajar na nave que o poeta Osmar Júnior faz lembrar naquela música que é uma obra-prima.

Saudade de ir à Fazendinha curtir uma domingueira com familiares e amigos. Saudade de passear pelo velho trapiche. Saudade da praia do Araxá e dos bares do Aturiá. Saudade das tertúlias da sede do Trem e dos bailes de Carnaval do Amapá Clube. Saudade do Jet’s Bar, do Gato Azul, do Maguila, do Lennon, do Urca Bar e do Royal. Saudade do La Boheme, último empreendimento do Nena Leão, o Rei da Noite. Saudade do Liverpool Rock Bar.

Saudade da Banca do Dorimar, da Casa Leão do Norte, do Flip Guaraná, do Largo dos Inocentes, do Formigueiro. Saudade do Poço do Mato.

Saudade do Quiosque Norte e Nordeste, informalmente conhecido como Bar da Floriano, comandado pelo casal gente boa Neide e Alceu. Saudade do indefectível Antônio, garçom meio marrento, mas também gente boa, que se dividia entre as mesas servindo a uma galera que não estava nem aí pra sanidade.

Saudade de ir, na companhia do Euclides Campos de Moraes, descolar umas namoradinhas nas festas no Círculo Militar ou no Teleclube. Saudade de curtir uma noitada na companhia do Alcy Araújo e Isnard Lima. Saudade do Hélio Penafort, Correa Neto, Sacaca, Suerda, Macunaíma, Ivo Cannuty, Babá, Bi Trindade, Pai Véio e Pai d’Égua. Saudade do Fred Lavoura, do Foa, do Pururuca.

Saudade de ir às terças-feiras assistir ao Projeto Botequim, no antigo Sesc Centro. Compromisso selado de uma galera que, em certo momento, nem se interessava mais em saber qual o artista que iria se apresentar. O nosso encontro era o que nos atraía. Depois, sair pela noite e, esgotadas todas as opções de bar, tomar a saideira na sede da Úbma.

Saudade do tio Duca, do bar do Metralha, do Tigrão. Saudade do Xixi e do Xiri Molhado, do Bang Bar, do Cabaré Safári, do Bar Caboclo, do Hollywood, do Juçarão. Saudade do Pau Preto, hoje Black Dick, do Bar da Loura, da Casa das Máquinas, da Casa Amarela, do Fundo de Kintal.

Saudade de sair com a minha turma de rebeldes do Colégio Amapaense e tomar umas inocentes brejas no Xodó, pitoresco bar capitaneado pelo não menos pitoresco Albino.

Saudade de assistir a um bom filme de Tarzan no Cine João XXIII, no Cine Macapá, no Orange, no Veneza ou no Territorial. Saudade de ir com a minha galerinha (que devia se chamar patota naquela época) tomar sorvete no Novotel.

Saudade das conspirações contra a ditadura. Saudade do Chaguinha. Saudade do Moap (Movimento Artístico Amapaense), onde o mestre R. Peixe agitava arte, com Olivar Cunha e o indomável Estêvão da Silva.

Saudade do início do grupo Pilão, de ouvir o Canto do Fernando. Saudade dos primeiros acordes do Movimento Costa Norte. Saudade do Nonato Leal solando seu violão mágico e do Mestre Oscar regendo sua orquestra.

Saudade de me sentir chocado com as peças do Celso Dias, como A Santificação de Agarantu, que custou ao autor um processo de excomunhão.

Saudade de ouvir histórias sobre o engasga-engasga. Saudade de ficar aterrorizado com a seringa contaminada do Bambolê.

Saudade do tacacá da tia Bebé e da tia Luci. Saudade do salgado da tia Nenê, de degustar um quitute da Zinoca e da Dedeca. Saudade da arte de Niná Nakanishi. Saudade de Ladislau, tia Gertudes, tia Chiquinha, Julião Ramos, mãe Luzia.

Saudade dos craques Bira, Aldo, Jasson. Saudade do Zé Penha, goleiro que defendeu as cores do Ypiranga e São José.

Saudade de ouvir aquele amontoado de sons no Complexo Zagury, com cada quiosque levando uma música ao vivo. Lula Jerônimo e Lady Púrpura pontificavam por lá. E o Fineias (de vasta cabeleira e antes de incorporar o Nelluty ao seu nome) cantando e tocando seu teclado. Por falar em Fineias, saudade da Jéssica Kandomblé.

Saudade de sair deslizando no papelão como se fosse um carrinho de rolimã lá na praça Zagury. Saudade de andar de patins e skate no estacionamento do Banco do Brasil. Saudade de roubar manga da fazenda do seu Barbosa, que, quando descobria, recebia a molecada com tiros de sal disparados por uma velha espingarda de ar comprimido. Saudade de pedalar por uma rampa tosca, ao lado do trapiche, e saltar com bike e tudo dentro do rio Amazonas.

Saudade do Museu da Imagem e do Som na gestão do Alexandre Brito, único período em que o MIS realmente aconteceu. Saudade das maquinações artísticas do Espaço Caos. Saudade do Festival Quebramar. Saudade das intervenções urbanas do grupo Urucum. Saudade do Arthur Leandro, do Antônio Messias e da Niudes Pereira.

Saudade das festas que aconteciam na casa do Ronaldo Rony, do Edson Índio, do Mariozinho Dias e do Ginoflex. Saudade das idas ao Lontra do Pedreira e à Ilha de Santana. Saudade da casa da Av. Maria Quitéria onde alguns amigos, como Celso Dias e Roni Moraes, se reuniam e de onde saíram muitas músicas.

Saudade dos desfiles cívicos e carnavalescos na Avenida Fab. Saudade das festas de marabaixo no Curiaú. Saudade de, não só ver a Banda passar, mas sair na Banda.

Saudade de uma vida inteira desta cidade que existe em mim somente há 25 anos, mas pulsa dentro do meu peito como se aqui eu tivesse vivido sempre, sem, é claro, desmerecer os lugares em que estive antes. Tudo vai se somando na memória afetiva, real e fictícia deste cronista, filho adotivo e emotivo desta terra.

Macapá celebra hoje seus 265 anos de eterna juventude. E haja fôôôôôôôlego! Vamos à festa!

*Colaboraram para esta crônica Andressa Pereira, Wender Gemaque, Maria Lídia, Patrícia Andrade, Honorato Jr., Celso Dias, Pequeno e Elton Tavares.