Mal entendido – Conto de Ronaldo Rodrigues

Conto de Ronaldo Rodrigues

Nos dávamos bem. Sexualmente, então, nos dávamos muitíssimo bem. Ficávamos trocando afagos e, depois das transas, longos papos. Roberta gostava de falar dos machos que passaram por sua cama. Sem fazer comparações, é claro. Eu falava das minhas mulheres também, mas ela sabia colocar mais entusiasmo nas suas histórias de amor e sexo, o que tornava sua vida bem mais interessante.

Roberta era legal. Se tivéssemos ficado juntos, hoje eu estaria morando no seu apartamento, no oitavo andar de um edifício mais ou menos chique, latinha de cerveja na mão, assistindo a algum programa vespertino babaca, sem muito o que fazer a não ser esperar a chegada de Roberta para darmos início a mais umas sessões de sexo. Algo bem parecido com felicidade. Pensei até em casamento, papel passado, aliança, champanhe e tudo o mais. O que fez as coisas entre nós desandarem foi a amiga que se hospedou no apartamento de Roberta.

*** *** ***

Quando eu ia ao apê de Roberta e Jane estava só minha libido disparava, passava do oitavo andar e ia muito além. Jane estava sempre fazendo ginástica. Meu Deus do céu! Quantas fantasias Jane despertava em mim, ela muito gostosa enfiada num microscópico short azul, malhando, louca pra deixar o corpo ainda mais delicioso.

Certa vez, cheguei ao apartamento numa hora em que Roberta não estava. Jane abriu a porta, tinha acabado de malhar, estava salgadinha de suor. Usava apenas uma camiseta, por baixo só a calcinha e a coisa maravilhosa que ela era. Ligou a televisão, dizendo que Roberta não demoraria. Imagina! Eu sozinho com aquela mulher! Ela andando pra lá e pra cá, com a ponta dos seios tentando romper a fina malha da camiseta.

Jane sentou no sofá e passou a cruzar as pernas a todo momento, comentando displicentemente o bárbaro crime que o telejornal tentava explicar. As fantasias rolavam na minha cabeça. Eu só conseguia me ver passando, muito lentamente a língua por toda a extensão do corpo nu de Jane. Não ficava um milímetro sequer daquele corpo sem sentir o calor da minha língua, que tinha calma suficiente para esperar a parte mais doce e procurar a parte mais salgada.

Quando minhas fantasias já cavalgavam furiosos cavalos alados, tentando dissipar o nevoeiro que me envolvia, me levantei pra ir embora. Jane barrou minha passagem, a ponta dos seios quase me tocando: “A Roberta vai chegar a qualquer momento. Espera um pouco. Fica aí, vendo televisão. Eu vou tomar um banho”.

Obedeci. Fiquei vendo TV e, através da tela, como se fosse um filme e com a trilha sonora do ruído do jato d’água do chuveiro, vi Jane tomando banho. Só que não era banho de chuveiro, mas de uma cachoeira que despencava de uma altura infinita, em câmera lenta, indo cair em cima de Jane.

Imaginei estar me aproximando da televisão para ver aquele espetáculo mais de perto, mas, na realidade, eu me dirigia ao banheiro. Abri a porta e vi Jane nua, majestosa, a água escorrendo por seus pelos. Ela não fez qualquer gesto de vergonha, parecia que já esperava a minha chegada.

*** *** ***

Nos deitamos na cama onde eu e Roberta tantas vezes realizamos nossos jogos eróticos. Jane só queria ficar deitada, abraçada comigo, nada mais. Ela sabia que não era o momento e eu não tentei nada, só a envolvi em meus braços. Eu queria mais, queria tudo, mas aceitei a situação.

Claro que Roberta não acreditou, ninguém acreditaria. No momento em que abriu a porta do quarto, sua cabeça só conseguiu registrar a imagem de dois corpos nus abraçados. Seu namorado e sua amiga deitados na sua cama. Que droga! Havíamos pegado no sono.

Me senti largado no vazio da cama quando Roberta, num golpe preciso, me cravou uma tesoura no pescoço. A única coisa que consegui divisar, antes de perder a consciência, em meio a tanto sangue, foi Roberta abrir a gaveta da cômoda, tirar um revólver calibre 38, apontar para Jane e disparar um tiro, dois tiros, três tiros.

Balanço de fim de ano – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Este senhor senta-se à mesa do café exatamente às 7h18 para um frugal desjejum. Sai às 7h20 e vai conferindo as pedras pretas e brancas do calçamento. Sua rua termina na vista pro mar, um pedaço de muro e uma trilha de terra batida que vai dar na praia. Seus pés recebem a areia com a mesma felicidade fofa com que a areia recebe seus pés. Este senhor sou eu mesmo e me reconheço nele sempre que abaixa a cabeça para fazer espelho da água e olhar seu reflexo.

Não me reconheço nele quando passa a mão na cabeça de um cão que caminha tranquilo. Não tenho amizade com cachorros, gatos, cangurus… Admiro as hienas e os elefantes, mas apenas nos documentários que passam no canal da minha madrugada. Hienas e elefantes vivem em sociedades matriarcais e isso é bom. Quando/se eu voltar, na pele de outra pessoa, tentarei ter mais afeição por animais. E seu eu vier na forma de um animal, que seja uma jubarte com sua eterna cauda mergulhando no mar.

Este senhor está se despedindo da vida (ou se despindo da vida?) ou vice-versa. Mas isso não se dará hoje ou mesmo este ano. Talvez não ocorra nenhuma ruptura nos próximos 30 anos. Quem sabe ele vai festejar sua trajetória pra muito além do tempo de seu tempo? Quem sabe expressará sua frustração por não ter feito aquela viagem maluca para os confins do Himalaia, por não ter tido a ousadia suficiente para invadir a igreja e interromper aquela cerimônia em que a mulher que amava se casava com outro homem?

Neste senhor, que o corvo, empoleirado no ombro do espantalho, disse que sou eu, está minha determinação de permanecer vivo pelo tempo que me for dado por quem maneja a ampulheta. O mesmo tempo que foi dado ao portão do quintal, à rede que ainda balança na varanda, ao peixe que comi ontem e me mantém vivo hoje. E a essa árvore, que sou eu, orvalhada nos galhos e fincada na raiz desse porto de chegada/saída que se chama… Como se chama?! Ah, sim! Diz que é a vida…

A fábrica de best-seller – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

A consagrada escritora de livros infantis, com um sorriso que quase chega a ofuscar os flashs das câmeras fotográficas, desfila à luz dos holofotes da fama. É a noite de autógrafos de seu quinquagésimo oitavo livro, que deve seguir o caminho dos anteriores: se transformar em best-seller, sucesso total de crítica e público.

A escritora de livros infantis está esfuziante em seu vestido de pedras preciosas. Agora, sentada em sua mesa florida, ela distribui autógrafos e simpatia entre seus milhares de leitores. Apesar de ter crianças como público-alvo, sua literatura atrai pessoas de todas as idades. As quinze secretárias e os trinta e cinco garçons transitam pra cá e pra lá na gigantesca mansão da escritora, atendendo imprensa, convidados e penetras.

Após o festejado evento, onde houve distribuição de comidas e bebidas da melhor procedência e discursos das maiores autoridades da cidade e do mundo literário, vamos encontrar a grande escritora de livros infantis em seu gabinete. Longe do glamour que a cercou por toda a noite, ela se despe de seu vestido de pedras preciosas, veste uma bata simples, pega um cesto, onde estão algumas migalhas do que restou do farto coquetel, e se dirige ao porão de sua mansão. É lá que ela encontra um batalhão de crianças acorrentadas, diante de computadores, digitando alucinadamente. São elas as verdadeiras autoras das histórias lançadas regularmente e com as quais a escritora obteve o reconhecimento de toda a indústria editorial.

Com os olhos brilhando de satisfação cada vez que escuta o som de notificação de pix chegando ao seu celular, a consagrada escritora passa a distribuir as migalhas entre as crianças.

Meus amigos de Liverpool – Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues – Republicada pelos 42 anos da morte de Lennon

Crônica (memória fictícia) de Ronaldo Rodrigues

Tudo começou em 1963, quando conheci o John. Ele era meio maluco, falava muito e estava sempre a fim de fazer alguma coisa: montar uma banda de rock, formar um grupo de apoio social ou reunir uma galera boa para invadir um pub e roubar toda a cerveja. Pois foi uma banda que nós resolvemos montar.

Ele apareceu uma vez com um cara que tocava muito, o Paul. Depois, o Paul trouxe outro cara que tocava demais, o George. Tínhamos então eu no vocal, John na guitarra base, George na guitarra solo e Paul no baixo. O Pete, que era nosso baterista, não ficou muito tempo e logo apareceu um tal de Ringo, que já desfrutava de um certo sucesso.

Fizemos umas pequenas turnês, já angariávamos algum prestígio e muita gente curtia nossas músicas. A maioria era de minha autoria, mas o John e o Paul brigavam tanto por serem as estrelas principais que abri mão da minha participação e deixei os dois assinando as músicas, mesmo que várias delas fossem minhas.

Gravar um disco ainda era um sonho muito distante, mas entrou em cena outro cara, o Brian, que surgiu atraído pelo sucesso que fazíamos no pequeno circuito em que transitávamos. Ele já tinha todos os macetes e sabia, como se diz hoje, o caminho das pedras. Antes que o Brian tomasse conta do grupo, eu resolvi sair. Era muita correria: compor, ensaiar, gravar, cumprir a exaustiva agenda de shows… Ufa! E, também, a minha timidez não combinava com o estrelato. A vida pacata que levei desde então foi o suficiente para mim.

Voltei para minha pequena cidade e segui minha carreira de ilustre desconhecido, bem mais quieta do que a vida de celebridade. Aquela banda se tornou mesmo um sucesso mundial e eu passei a colecionar recortes de jornais com shows e entrevistas daqueles amigos que eu havia deixado em Liverpool e que logo depois se mudaram para Londres. Jamais revelei a alguém minha ligação com a banda.

Depois que os rapazes conquistaram o mundo, a banda se dissolveu. Os fãs diziam que o fim foi cedo, que ainda havia muita música boa para vir à tona. A maioria dos fãs culpava a nova esposa do John pelo fim. Outros diziam que o Paul queria a liderança a qualquer custo e isso desgastou a relação. A minha opinião, que não foi pedida por ninguém, é que as coisas boas, para terem existência completa, precisam mesmo acabar. Começo, meio e fim: esta é a fórmula.

Meus amigos de Liverpool continuaram fazendo sucesso em suas carreiras solo, o tempo passou e o período em que fiz parte daquela banda ia ficando nos desvãos mais recônditos da memória. Até que, certa manhã, ao abrir o jornal, fui despertado do meu resto de sono pelo barulho ensurdecedor de vários tiros e a manchete que jamais esperei ler algum dia, a notícia crua, a frieza do assassino. As lembranças voltaram dolorosamente: os óculos redondos, o humor sardônico, as passeatas pela paz mundial. E aquela data ficou para sempre sangrando em mim: 8 de dezembro de 1980. Mas quem vai acreditar nisso?

*Republicada pelos 42 anos da morte de Lennon.

Na Baleia – Crônica do meu amigo Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordei naquele dia ainda bêbado. Demorei a perceber que estava dentro da baleia. Estômago de baleia, vocês sabem, é muito pequeno, parece um apartamento japonês. Então eu estava meio espremido no meio do monte de plâncton que tinha sido a última refeição da baleia. Pensei por alguns momentos sobre como sair dali. Mas depois, como a preguiça pós-bebedeira era quase maior que a baleia, me deixei ficar naquele remanso.

Aí pensei nas figuras que já estiveram dentro de uma baleia. Pinóquio e Gepetto estiveram dentro da baleia Monstro. Jonas esteve por três dias dentro de um peixe imenso que a Bíblia não diz que é baleia, mas eu digo. Se bem que baleia não é peixe, é mamífero.

Sou teimoso nessas coisas: se baleia vive no mar então é peixe. Aí vocês podem dizer: esponja vive no mar e não é peixe. Eu respondo que esponja vive é no supermercado antes de parar na pia de alguma dona de casa. Mas isso é bobagem de minha parte.

Devo estar perturbado pelo fato de me encontrar dentro de uma baleia. Tento lembrar de como, bêbado, vim parar aqui. Aos poucos vou montando o cenário. Agora já consigo colocar alguns personagens neste cenário.

São meus amigos, que bebiam comigo na noite anterior. Onde será que eles estão agora? No estômago de outra baleia? Devem estar se divertindo, os safados! Agora me lembro. Estávamos num navio celebrando a primeira viagem desse navio. Lembro perfeitamente agora de alguém discursando sobre a impossibilidade de aquele navio naufragar. O que acabou de entrar pela boca da baleia? Uma folha de jornal. Vejamos o que diz esse jornal.

Ah! Agora tudo faz sentido. É isso mesmo! Vejam, senhores, a manchete do jornal: “Hic! Hic! Hic! Titanic vai a pique”. Bingo! Lembrei de tudo! Estávamos na viagem inaugural do Titanic. Sentimos o impacto de uma colisão, pessoas correndo desesperadas e nós só bebendo.

Vejo que sobrevivi, talvez graças ao meu estado de embriaguez, que atraiu esta baleia alcoólatra, que me engoliu como uma dose de uísque e me livrou de morrer afogado. Dos males, o melhor. Vou ficar por aqui mesmo dentro desta baleia. Quem sabe daqui a pouco ela engole a Kate Winslet. Saúde! Ui minha cabeça!

Sem dar nome aos bois – Crônica de Ronaldo Rodrigues para um mundo melhor

Crônica de Ronaldo Rodrigues para um mundo melhor

Daqui a alguns anos, muitos e muitos anos, quando tudo for passado, eu estarei sentado em minha cadeira de balanço, fazendo palavras cruzadas ou estourando plástico-bolha e, de vez em quando, estendendo meu olhar pelos jardins do asilo numa tentativa de lembrar alguma coisa, alguém, um rosto, uma palavra.

Há tempos que esqueci o nome de algumas pessoas (que bom!), mas lembro de certas coisas de suas personalidades. Não me importo com o que houve com elas, é só uma curiosidade que bate de vez em quando: onde estarão essas pessoas? O que aconteceu com suas vidas imbecis?

• “Inútil! A gente somos inútil!”, cantava aquele rebelde sem causa nos anos 1980 para, nos anos 2000, desafinar feio e mostrar que ele estava certo, se revelando mesmo um inútil. Realmente um fato ultrajante! Com ele, vários ícones de sua geração também reforçaram o refrão da decadência, sem a mínima elegância.

• Fazia belas ultrapassagens aquele piloto de Fórmula 1, conhecido também pelo seu humor azedo e sua voz um tanto fora dos padrões sonoros estéticos. Ele derrapou na reta final de sua vida e serviu de motorista a um sujeito que entrou de carona na direção do país, graças a milhares de desorientados que se deixaram guiar para o abismo de seus pensamentos e sentimentos anti-humanidade.

• E aquele jogador de futebol mimado que arrasava dentro de campo (quando não estava deitado na grama) e era um completo perna de pau fora das quatro linhas? Driblando possíveis condenações por sonegação de impostos, entrou no time do cara que se achava o dono da bola. Fora de campo, o nosso craque marcou inúmeros gols contra e espero que não tenha se afogado nos seus milhões de dólares. Mas o futebol é assim: salvando algumas honrosas exceções, por mais craque que o sujeito seja com a pelota, costuma ser ruim da cabeça. O próprio rei indiscutível desse esporte se revelava um tremendo pereba sempre que o assunto escapava de seus habilidosos pés.

• E aquele jogador de basquete, o maior de todos, que quando arremessava suas opiniões via-se que suas palavras não tinham o mesmo brilho que sua mão santa tinha em quadra.

• E o sujeito que quebrou a placa da rua em reação ao nome que estava escrito lá? Será que ele conseguiu, pelo menos, se tornar nome de um beco sem saída?

• E o assassino da atriz da novela das oito? Sei que ele se transformou em pastor evangélico e ergueu um altar para seu ídolo-mor.

• E por falar em pastor, que terá acontecido com todos aqueles impastores (pastores impostores), ladrões da fé alheia? Será que esses vendilhões do templo, detentores de concessões televisivas e internéticas, se entupiram de dinheiro e estouraram, desta vez de verdade, não na audiência de seus seguidores?

• E os tantos humoristas desengraçados, grosseiros, que perderam o ritmo, o timing, e chafurdaram em piadas de baixíssimo senso de humanidade?

• E os sertanejos, que já haviam conspurcado o verdadeiro sentido da música caipira, autêntica, de raiz? O que terá acontecido com esses glorificadores do agronegócio?

• E os meus ex-amigos artistas, que empunhavam lápis, tinta e papel e se viram seduzidos a fazer o sinal de arminha na mão? Será que foram devorados por sua mediocridade?

• E aquela gente que nunca havia se manifestado na vida, nem contra nem a favor de coisa alguma, que não hesitou em vestir a camisa verde e amarela de um patriotismo torto? E os que enveredaram por um anticristianismo, de exclusão e impiedade?

• E os produtores e disparadores de fake news? Onde estarão espalhando suas mentiras?

Será que alguém aí, que estiver lendo estas linhas, pode arriscar um palpite? Melhor não. Deixa esses merdas pra lá. Prefiro pensar que o tempo passou pra todos nós (que estivemos do outro lado) como um bálsamo e nos curou de todas essas doenças. Eu vou parar por aqui porque já estou sentindo asco de tentar lembrar dessa gente escrota (era gente mesmo aquilo?). E espero sinceramente, tomando emprestado um pequeno trecho da carta do chefe Seattle, que essa galera toda tenha sido sufocada pelos próprios dejetos.

Alguns parágrafos para o eterno – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Eu vejo a luz, mas não sei se é a do fim do túnel. Desconfio, inclusive, de que não há túnel algum.

Abro a janela num ato mecânico. Por que pulam, lá fora, os ponteiros dos relógios? Três dias atrás faltava dois anos para nunca mais. A sombra da torneira lacrimeja momentos de solidão. E por que isso me veio à mente?

Toda vez que tentei seguir a fila, alguém me indicou o caminho contrário. Aí eu vim, vendo muitos rostos passando por mim. Creio que todos os rostos que passaram por mim pela vida inteira. As pessoas, donas dos rostos, ignoraram o meu rosto, meu jeito de ser, minha mente. Mas é assim mesmo: ignorantes ignoram. É o que sobrou para eles.

Sempre fui assim, todo errado, mas, num mundo errado, até que nem destoo tanto da paisagem em volta. Às vezes, percebo o engano, mas insisto nele, para ser sociável, para ser aceito, para fazer alguma coisa.

É de manhã no vale da minha existência. Os pássaros, vindos da noite de ontem, demoram a reconhecer os ninhos e vão depositando as claves de sol em qualquer lugar, até que encontrem os filhotes, ávidos por esse alimento.

Pesadelos me vêm de madrugada. Se eu dormisse numa tumba, dentro de uma cripta, no porão de um castelo medieval, acharia esses pesadelos até naturais. Mas dormindo aqui, debaixo do viaduto, com o sol da meia-noite me batendo na cara, eles são bem estranhos. Ainda bem que também sou estranho.

Sim, existem amanheceres e disposição para abrir os olhos. E eu vou fazer/refazer essa rotina até que ela se torne saudade. Até que se torne eternidade. Até que o lamento se torne canção. Até que o cansaço se torne ânimo. Até que eu pare de vez e comece de novo. E de novo. E de novo…

 

Sociedade dos Boêmios Mortos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Noite dessas, saí agarrado à intenção de rever pessoas e situações. Até aí tudo bem, se as pessoas e as situações não estivessem para além da fronteira da vida, aquilo a que se convencionou chamar de “morte”.

Fui, então, a uma reunião de uma confraria que há muito suspeitava de sua existência: a Sociedade dos Boêmios Mortos.

Cheguei ao Quiosque Norte & Nordeste, na Praça Floriano Peixoto, que atendia pelo simples nome de Bar da Floriano. O som que me recebeu vinha de uma vitrola e quem estava no comando era o Gino Flex, colocando as músicas mais descoladas da imensa coleção de discos de vinil.

Logo em seguida, um poeta louco subiu numa cadeira e passou a declamar poemas de Vinicius de Moraes. Era o Fred Lavoura, que conhecia tudo do Poetinha e nem esperava que batessem palmas. Ele mesmo liderava os aplausos depois da apresentação de mais um poema.

Enquanto isso, o Brô contava uma história em que ele se destacava como o grande herói, é claro. Ao seu lado estava o Banana, que, sejamos justos com esse momento único, não aprontou confusão alguma. O Pururuca e o Foa passaram por lá, mas ficaram pouco tempo, já que tinham compromissos em seus trabalhos de mototaxista.

Uma turma mais antiga deu o ar de sua graça. Os poetas Alcy Araújo e Isnard Lima e o artista plástico Estêvão Silva. Claro que o trio nunca esteve no Bar da Floriano, que não existia quando estes grandes personagens viviam no mesmo plano que nós. Mas puxo da minha cartola esta licença literária e os coloco no mesmo ambiente para que a minha homenagem se estenda a essa geração de loucos geniais, sonhadores e personalidades ímpares que Macapá produz.

Eu não sei se, devido à instabilidade de temperamento de artistas e boêmios, seria possível um encontro dessas pessoas. Pode ser que alguns dos citados fossem desafetos de outros e jamais admitissem estar na mesma mesa ou no mesmo bar. Mas corro esse risco, mesmo porque, se houvesse alguma briga, ninguém mataria ninguém, já que todos estão mortos.

Ah, sim. Já ia esquecendo. O Valério Campos, mais conhecido como Kadáver, estava lá também, mas, apesar do nome artístico, era, além de mim, o único ser vivo.

Um dia vou te convidar, caro leitor, para dar essa volta. Topas?

Algo a dizer (pedaço de uma possível autobiografia) – Texto de Ronaldo Rodrigues – Ilustração de Ronaldo Rony

Nasci em janeiro de 1966 e lá se vão 56 anos e alguns quebrados (quebrados por conta da vida instável em alguns pontos do caminho). A cidade de Curuçá, no Pará, foi o lugar que me recebeu no mundo (não sei se a contragosto, espero que não).

Minha família rumou para a capital Belém quando eu, o último dos seis filhos da dona Darlinda e do seu Rodrigo, tinha seis anos de idade e muita memória já, pois lembro perfeitamente da infância vivida até então, entre as árvores de um imenso quintal e uma casa sempre alegre.

Em Belém, a vida seguiu amena, entre jogos de futebol (esporte no qual jamais me destaquei, assim como em todos os outros), as brigas de moleque (em que eu sempre era o que apanhava) e o encanto pela literatura, que na minha casa era farta e variada.

Lembro de alguns livros que se perderam no tempo e nas mudanças de casa e não vi mais depois de adulto. Li alguns livros fortes para uma criança, como O Exorcista (William Peter Blatty) e Os Miseráveis (Victor Hugo), sem escapar, ainda bem, de O Menino do Dedo Verde (Maurice Druon), O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry) e O Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos). Malba Tahan me encantou com suas Lendas do Deserto. Sim, e muito Monteiro Lobato, que atualmente leva fama de racista. Li as histórias bíblicas. Até hoje as aventuras daquela galera do Antigo Testamento me fascinam, assim como os deuses e heróis da Mitologia Grega.

Tinha também a literatura, digamos, mais popular do começo dos anos 1970. Livros de bolso com histórias de faroeste e espionagem. Li também fotonovelas, Almanaque do Biotônico Fontoura e, claro, histórias em quadrinhos de todos os gêneros: Zorro, Luluzinha, Mônica, Brotoeja, Gasparzinho, Bolota, Recruta Zero, Tio Patinhas, Conde Drácula, Tex, Fantasma, Mandrake, Gato Félix, Homem-Aranha, Tarzan, Batman… Devorava as páginas dominicais dos jornais que traziam tiras do Brucutu, Capitão César, Pinduca, Dick Tracy, Snoopy… Mais pra cá no tempo, Conan e Ken Parker ocuparam papéis importantes. Os quadrinhos foram definitivos para mim, como escritor e como o cartunista que vim a ser, mas essa é outra história*. Por falar nisso, foi num gibi do Mickey que a descoberta das letras se fez. Quando consegui ler frases inteiras, o universo da leitura se abriu e me arrebatou, causando um alumbramento que vivo até hoje.

Depois de começar a ler, bateu a vontade de também experimentar essa forma de expressão. Passei a observar a estrutura dos textos, o conteúdo, os voos da imaginação dos escritores e logo estava arriscando meus primeiros poemas, tentando textos mais longos em prosa e caprichando nas redações escolares, que foram bons laboratórios.

Em 1995, participei de um concurso promovido pela Universidade Federal do Pará e tive um conto publicado pela primeira vez (As que se chamam Flávia…) na coletânea que reunia alguns escritores já experientes e outros iniciantes.

Hoje, morando em Macapá/AP desde 1997, mantenho uma produção de contos e crônicas com alguma frequência, outras vezes nem tanto quanto gostaria. Publico com mais fôlego no Blog De Rocha!, cujo editor, Elton Tavares, é um dos responsáveis por eu me manter ativo na arte de escrevinhar. Sempre que vem o bloqueio criativo, a entressafra, ele me instiga, me cutuca com uma mensagem tipo: “E aí, mano? Nada?”. Eu sempre aceito a provocação e acabo entregando um texto.

Num país que pouco lê, ser escritor é como a voz que clama no deserto, mas creio que é uma missão que nos escolhe, antes que possamos escolhê-la. Como observadores do mundo, vamos desbravando os mundos e os vários personagens que entre nós transitam e só a alguns é dado reconhecê-los e reinventá-los.

Mas, como escreveu o poeta da minha vida, Carlos Drummond de Andrade, “lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe a manhã”, eu sigo lutando e creio que, em certos (ou incertos) momentos, consigo sentir o sabor de uma efêmera vitória.

*A outra história – Escrevi acima que sou também cartunista e, como tal, assino Ronaldo Rony, usando o nome Ronaldo Rodrigues apenas para a atividade de escritor (coisa de artista ou mero capricho, não sei. Alguns acham que é só frescura). Como cartunista, já tenho três livros publicados: Ícaro, Liberdade Ainda que Nunca! (história em quadrinhos – Belém, 1990); A Chave da Porta da Poesia (literatura infantil para crianças de todas as idades, em parceria com a poeta paraense Roseli Sousa – Belém/Macapá, 2005); e Papo Casal (cartuns sobre relações amorosas que chamo de fugas emocionais – Macapá, 2008). Também já ilustrei vários livros, como Lugar da Chuva (Lulih Rojanski); Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias e Papos de Rocha e Outras Crônicas no Meio do Mundo, ambos de Elton Tavares; o CD Pelos Cantos de Belém, de Sergio Salles, entre vários outros trabalhos gráficos.

De forma artesanal, via impressão xerográfica, já lancei vários fanzines e mantenho, com certa regularidade, a produção da revista Capitão Açaí, um super-herói amazônico que é meu mais famoso personagem. Para concluir, ressalto o trabalho em conjunto das duas personas que me habitam. Ronaldo Rodrigues e Ronaldo Rony já assinaram participações no jornal Folha do Amapá e na revista Vanguarda Cultural, além do jornal satírico vert!gem.

Texto de Ronaldo Rodrigues – Ilustração de Ronaldo Rony
Junho/2022

A fonte da velhice – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Como? Cinquenta e seis anos? Nem parece!
Ele ouvia sempre isso quando o assunto idade vinha à baila.
– Tem cara de 42, por aí.
Quando tinha 15 anos, achavam que ele tinha 9. Aos dois anos de idade:
– Nossa! Parece recém-nascido!
Era barrado constantemente em festas. Nem mostrando a carteira de identidade se livrava do estigma:
– Você não pode entrar! Essa carteira deve ser falsa! Vá embora já, senão vão te prender! Falsificação de documento é crime!
Quando tinha 25 anos quis namorar uma menina de 18. Ela foi categórica:
– Não namoro com garotos de 14 anos. Não insista!
Aquilo já estava se tornando paranoico. Aos 56 anos, sem rugas, sem um fio de cabelo branco e com muita disposição, ninguém poderia supor que ele já ultrapassou a marca de meio século. Nem a barba, que deixava crescer de vez em quando, conseguia conferir à sua aparência um pouco mais de idade.
Foi então que, ao contrário de Ponce de León, navegador espanhol que partiu pelo mundo à procura da Fonte da Juventude, ele começou uma jornada a fim de encontrar um meio de aparentar a idade madura que tinha, o que ele achava que poderia atrair mais respeito para a sua pessoa.
Eis que, passados alguns meses longe dos amigos, ele apareceu com um visual bem diferente do que o havia marcado até então, com muitas rugas ao redor dos olhos, na testa e nas mãos, e os cabelos completamente brancos. E foi logo explicando, diante dos olhares de espanto:
– Algumas vezes, na história e na literatura, pessoas reais ou personagens da ficção fizeram pacto para manter eternamente a juventude. Eu fiz um pacto ao contrário, para me tornar mais velho, ou, pelo menos, que minha aparência faça jus à idade que tenho. Procurei um cirurgião plástico. A princípio, ele estranhou alguém no mundo recorrendo a um cirurgião plástico com a intenção de envelhecer. A maioria, na verdade a totalidade das pessoas, quer rejuvenescer. Ele relutou em fazer a cirurgia e eu mostrei todos os argumentos e o principal deles era:
– Doutor! Eu estou de saco cheio de ouvir as pessoas falando que pareço ter menos idade do que realmente tenho!
Ele falou isso com as mãos agarradas ao colarinho do médico, que foi convencido a fazer a cirurgia graças a um bem-vindo reforço de capital, alguns reais acima do valor que ele costumava cobrar.
Foi então que o nosso personagem concebeu mais um mito em torno da questão do passar inexorável do tempo. Ele criou a Fonte da Velhice, uma fonte da qual ninguém quer chegar perto, mas todo mundo se encaminha para ela e há de encontrá-la um dia.

A Moça do Tempo – Crônica de Ronaldo Rodrigues (com ilustração de Ronaldo Rony)

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Aos 19 anos, Mariana completou 30.

Sempre à frente de seu tempo, Mariana menstruou aos 70 e perdeu a virgindade aos três.

O tempo era seu passatempo. Seus banhos demoravam duas semanas, mas para comer cinco pizzas e três refrigerantes, dois segundos e meio bastavam.

Mariana se casou com seu avô, este com sete anos. Seu filho mais velho nasceu depois dos trigêmeos, que vieram ao mundo separadamente, em Estocolmo, Kingston e Bruxelas.

Seus netos a conheceram na festa de seu 15º aniversário, quando ela, já completamente senil, ainda não havia nascido.

Sempre que perguntada pelas horas, Mariana respondia que faltavam quinze dias para dois minutos, tempo em que viriam o calor infernal do inverno, as flores no outono, a primavera hostil e o verão glacial.

Mariana começou a escrever suas memórias antes dos 150 anos e as concluiu com apenas dois dias de nascida.

Seus pais começaram a namorar 20 anos antes de se conhecerem.

Depois do mestrado e doutorado, Mariana ingressou na alfabetização, onde aprendeu a ler todos os livros que ainda não haviam sido escritos. Foi quando Mariana pediu um tempo ao tempo……………………………………………………………

Então, todos os relógios do mundo marcaram a mesma hora. Quando seu primeiro ancestral iniciou sua proliferação, bem no começo de toda a existência, o tempo fechou para Mariana. As ampulhetas explodiram e os relógios, com seus ponteiros apontados para ela, gritaram numa só voz:

– Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou!

Malhando os malhadores (Crônica muito porreta de Ronaldo Rodrigues)

Semana Santa. Sempre que chega esta data fico pensando no sentido de justiça de certas pessoas. Elas pegam Judas e fazem o diabo com ele. Malham o cara de todo jeito. Dizem que é a única forma de fazê-lo pagar pelo crime de ter traído Jesus. Isso é o que mais me preocupa. Se tudo já estava escrito, segundo a própria Bíblia, qual é a culpa de Judas? Se há culpa, é de quem escreveu.

Prefiro acreditar que Judas foi um elemento para que a história se cumprisse da forma que se cumpriu. Judas foi um aliado de Jesus e agiu daquela forma para que tudo saísse segundo o roteiro do Todo (Todo é como chamo o Todo-Poderoso na intimidade). Ora! Parem com esse negócio de associar o nome de Judas à traição. E parem de fazer essa justiça esquisita que comporta todo tipo de torpeza que vocês veem no cara, que condenam nos outros, mas que em vocês é aceitável.


Traidores são vocês! Traidores da palavra de Deus! (vocês são quem vestir a carapuça). Na verdade, sou a favor da reabilitação de todas as figuras malditas da Bíblia, pelo mesmo motivo: não foram elas responsáveis por seus destinos. Como dizem os árabes: maktub! (estava escrito!).

Portanto, Judas, Caim, Lúcifer, Barrabás, Pilatos, Herodes etc. devem ser vistos como personagens desempenhando seus papéis. Aí algumas pessoas dizem que há o livre-arbítrio, que esses personagens poderiam ter tomado outro caminho. E como ficaria a palavra do Todo?

Na verdade, os cristãos (a maior parte deles) confundem tudo. Esse papo de dizer que Jesus morreu para nos salvar acho exagero e injusto com o cara. Cada um tem que fazer por si, pela sua salvação, e não achar que está tudo bem, bastando ir à igreja rezar que – abracadabra – estamos salvos. Muito confortável, não acham?

Agora vou me despedir porque tem uma multidão de fanáticos correndo atrás de mim querendo me linchar. E olha que eles nem leram esta linhas. É que estou com barba e cabelo grandinhos e estão me confundido, claro, com Judas. Por que não me confundem com Jesus Cristo? Ah, daria no mesmo! Só que, em vez de me linchar, eles me colocariam na cruz. Ó my God!

Ronaldo Rodrigues

Mais um dia de rebeldia – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Acordo despreocupado com a perspectiva de enfrentar mais um dia. A gente acaba se acostumando. Esta é a vida que se foi construindo até aqui. Vida feita de vontade de romper com o mundo, apesar de omissões e covardias.

Romper com o mundo. Pensei nisso aos 12 anos, aos 18, aos 35. Agora, aos 56 anos, já não tenho ânimo nem de lembrar que um dia tive arroubos de rebeldia.

Ultimamente tenho pensado nessa coisa de rebeldia e vou usar aqui um palavrão do momento: ressignificar. É isso que venho fazendo: ressignificando tudo. É um exercício, um aprendizado. Já ressignifiquei o Círio de Nazaré, o Natal, o fim/começo de ano… Ressignifiquei sentimentos, valores e pessoas. Mudei de casa, de relacionamento e de ideias. Mudei apenas para que eu possa continuar sendo um novo homem. E esse novo homem que sou é o mesmo homem que sempre fui. Uma criança que nasce cada vez que abre os olhos para um novo dia.

Sim, ressignifiquei minha rebeldia. Se o “normal” é burlar a lei, a rebeldia está justamente em fazer o contrário: seguir a tal da lei, obedecê-la. Por isso eu atravesso na faixa destinada aos pedestres. Por isso eu jogo o lixo dentro da lixeira. Por isso a primeira coisa que faço ao entrar num carro é colocar o cinto de segurança. Por isso não furo fila. Continuar sendo honesto em meio ao mar de corrupção, isso é rebeldia. E nem é algo sobrenatural. Quem é assim não sabe ser de outro jeito. Mesmo que os seres honestos possam ser chamados de atrasados e até de otários, faz bem insistir. Na verdade, faz toda a diferença.

Na adolescência, fui um rebelde diferente do rebelde que sou hoje. Ou mais igual ao que se espera de um ser minimamente revoltado. Minha rebeldia me fazia renunciar à ingestão de Coca-Cola, reconhecendo nela a bandeira do imperialismo ianque fincada no território dos nossos intestinos. Eu andava com um prego, de tamanho considerável, riscando os carros da burguesia sempre que surgia uma oportunidade. Naquela espécie de insurreição solitária, eu jurava que estava dando a minha contribuição à revolução, vandalizando um pouquinho a propriedade privada. Não me arrependo. Mas lembro também de uma rebeldia tola, de quando eu tinha 18 anos: mijar na pia do banheiro dos bares, e não no vaso sanitário. Uma transgressão que admito, hoje, ser só babaquice mesmo. Tive minha fase de rebeldia filosófica e não foram poucas as vezes em que arremeti contra Deus a minha ira santa, elegendo Lúcifer como o primeiro guerrilheiro a enfrentar a tirania divina, que teve de amargar exílio e maldição. Hoje, Deus e o Diabo estão devidamente ressignificados e os dois convivem muito bem.

Por isso, hoje, sou rebelde de verdade. E parece que mais terrível, pois os inimigos não estão preparados pra enfrentar quem luta com a verdade estampada em cada gesto. Honrar compromissos, cumprir a palavra, ter boa vontade são ofensas a quem só compreende atitudes espúrias, pra quem acha natural que um sujeito enriqueça em sucessivos mandatos públicos sem ter que trabalhar. Podendo até chegar ao mais alto posto da nação.

Obedecer à lei da consciência, ter sonos tranquilos, despertar com bom-humor, estar atento ao sentido de justiça e jamais deixar de perceber o canto de um pássaro. E querer bem, querer o bem, sempre o bem. Dos outros e de todos. Eis a minha rebeldia de hoje.