Aquilo que seria uma viagem a trabalho para um show na Guiana Francesa se tornou uma incursão cultural com destaque para a original música tocada, cantada e dançada ali no topo da América do Sul – Guiana Francesa e Suriname. Saímos de Macapá dia 2 de agosto, para uma viagem de 10 dias.
Percorremos o trecho até o Oiapoque em 8h e foram necessários mais 3h para chegarmos em Caiena, totalizando 11h de viagem por via terrestre da capital do Amapá até a capital da Guiana Francesa.
O trajeto entre Caiena e Paramaribo também foram percorridos de maneira intercalada. Fizemos a rota entre as duas capitais em aproximadamente 6 horas, sendo 1h até Kourou, mais 3h até St Laurent du Maroni e quase 2h até a capital do Suriname.
Passamos um pouco mais de uma semana viajando entre um lugar e outro, que pela intensidade e riqueza do que vivemos, nos causou a sensação de estarmos bem mais dias juntos.
Pegamos a estrada em uma van que nos acompanhou até o final do percurso, um carro que não servia somente para nos transportar entre os destinos, mas um importante ponto de apoio e onde longas conversas foram travadas, muitas horas de músicas foram ouvidas e projetos futuros foram desenhados.
O repertório da playlist foi variado, mas algumas músicas marcaram o roteiro que fizemos e se tornaram trilhas da viagem – uma em especial e que, mesmo discordando do letrista, que diz que “Caiena é tão perto daqui quando penso na estrada…”, sem titubear, a música “De Macapá a Cayenne”, dos compositores Joãozinho Gomes e Zé Miguel foi a escolhida por aclamação popular, sentimental e física a Número 1 da viagem.
No total, éramos sete pessoas: a cantora Patricia Bastos, os compositores Nilson Chaves, Enrico Di Miceli, Joãozinho Gomes, Dante Ozzetti, Clicia Vieira Di Miceli e o motorista, comandante da Nave da constelação de parentes, Jerre Lews, carinhosamente chamado de Velho Lobo.
Nossa primeira parada programada foi em Oiapoque, onde o Nilson Chaves tinha um show agendado e com muito prazer curtimos a noite da cidade, que, para a maioria, era a primeira visita ao município.
No dia seguinte, antes de seguirmos para Caiena, navegamos de catraia pelo rio Oiapoque, fomos na Grand Roche nas proximidades de Clevelândia do Norte até a cidade de Saint-Georges de L’Oyapock para apresentar a nossa fronteira brasileira com o território francês.
Atravessamos a ponte sobre o rio Oiapoque às 15h do sábado, dia 03, e aqui vale o registro de que nos beneficiamos do primeiro final de semana da abertura da ponte Binacional, que até a presente data abria na segunda-feira em horário comercial e fechava definitivamente ao meio dia do sábado, reabrindo novamente somente no início da semana seguinte.
Passado o ponto de controle para apresentação dos passaportes e o obrigatório visto de entrada na Guiana Francesa, pegamos a sinuosa estrada que nos leva até Caiena, nosso próximo destino.
Quem nos levou à Guiana Francesa foi a música, através de um show que fechamos com o produtor Lívio de Sá para uma apresentação coletiva de Nilson Chaves, Enrico Di Miceli, Patricia Bastos e Dante Ozzetti, através do projeto Ponte Cultural Amapá-Guiana, que aconteceu no Complexo Eldorado, nas imediações da Place des Palmistes, coração da cidade e ponto de muitas manifestações culturais.
O show teve a participação da flautista Michaëlle Ngo Yamb Negan e recebeu uma plateia composta por guianenses, franceses metropolitanos e brasileiros nortistas imensamente saudosos por seus estados, mas ali afagados pelo repertório de canções que retratam nossa vida na Amazônia brasileira, e marcados pelos ritmos do marabaixo, do batuque e do carimbó.
Fechamos aquela noite felizes da vida e já querendo concordar com o poeta que diz que “Caiena é tão perto daqui”. Sim, somos separados por quase 800 Km de estrada e ligados por uma ponte Binacional e pelo belo rio Oiapoque.
São 590km até o município de Oiapoque, sendo 111km sem asfalto e mais 190 km até a capital da Guiana Francesa, somados a algumas dificuldades burocráticas que nos distanciam de nossos vizinhos franceses. Mas, ao fazermos esse encontro musical com artistas, pesquisadores e produtores locais, as nossas afinidades regionais foram afloradas e passamos a nos sentir “em casa”, sobretudo quando sonhamos conjuntamente a construção e afirmação de uma identidade amazônida que tem como base os nossos tambores, o nosso DNA indígena, a mistura crioula e um sotaque de línguas latinas que entrecruzam o português e o francês nessa fronteira cortada por rios e por uma costa atlântica que nos interliga ao mar do Caribe e às pequenas e grandes Antilhas, ilhas que permeiam nosso imaginário musical como Martinica, Guadalupe, Cuba, Jamaica e Haiti.
A Guiana Francesa é muito especial: possui uma diversificada cultura pela história de migração que viveu a partir da década de 1960 com a construção do Centro Espacial Guianense – CSG, na cidade de Kourou. A busca por salários pagos em Franco, hoje Euro, o sonho do ouro e a qualidade de vida com padrões europeus estimulou a ida de muita gente para lá e transformou aquele lugar em um caldeirão cultural composto por brasileiros, chineses, haitianos, hmongs, surinameses, dominicanos e outros tantos grupos que transformaram a Guiana Francesa em um território multicultural. Mas com tudo isso, nada é tão forte, belo e instigante quanto a original cultura franco-guianense dividida entre ameríndia, crioula e bushnengé.
Um portal que nos desloca de uma parte da União Europeia e da tecnologia espacial para um universo sonoro dos tambores e das maracas, dos dialetos, da culinária, da vestimenta e da arquitetura peculiar, uma Amazônia profunda que vai além dos manjados e estereotipados cartões postais.
Os Ameríndios:
As comunidades indígenas e suas tradições estão na pauta do dia com suas manifestações salvaguardada na Guiana Francesa, através de políticas de valorização dedicadas a celebrar a cultura de seus primeiros povos, a exemplo do evento de que participamos em praça pública – 9° Jornada internacional dos povos autóctones – com a participação dos 6 povos nativos: Kalina, Lokono, Palikur, Teko, Wayãpi e Wayana, alguns desses também presentes em território brasileiro, no estado do Amapá, a exemplo dos Palikur e Wayãpi.
Os Crioulos ou mestiços:
A cultura crioula da Guiana Francesa é fruto da mestiçagem e da herança do período da colonização que iniciou no século XVII e tem como base o francês, mas que se misturou com indígenas e africanos. O termo “crioulo” é utilizado para identificar uma língua e um povo, e a partir desse conjunto de identidades se percebe de maneira marcante a arquitetura, juntamente com a culinária, a vestimenta e a música que facilmente é ouvida na capital e nas demais cidades. A música crioula possui 7 ritmos de base (Grajé, Kanmougwé Léròl, Débòt, Béliya, Grajévals e Kasékò) tocados em tambores específicos dessa tradição. O Grajé é tocado no tambor Grajé, o Kanmougwé nos tambores Yongwé, e os demais ritmos nos tambores feitos de barril de vinho, chamados de tambor Kasékò. Já o ritmo Léròl, além dos tambores, utiliza o Chachá, um tipo de maraca da tradição indígena.
Os Bushnengé:
Outro marcante traço da tradição franco-guianense é o povo bushnengé (businenge) também chamados de noir-marron. São descendentes de africanos que foram escravizados pelos holandeses colonizadores do Suriname entre os séculos XVII e XVIII. Fugindo da escravidão em direção das matas às margens do Maroni, rio da fronteira do Suriname com a Guiana Francesa, reproduziram seu estilo de vida tribal e foram se adaptando à vida amazônica. Os Bushinengé possuem características específicas e são organizados socialmente com culinária, língua, arquitetura, embarcação, traço iconográfico, vestimenta, dança, ritmos e instrumentos próprios. Embora pareçam uma única etnia, são divididos em 6 grupos: Saramakà, Paramakà, Matawaï, Kwinti, Aluku (Boni) e Djuka.
Após nossa estada em Caiena e Kourou, seguimos para a terra dos Bushinengué, Saint Laurente du Maroni, última cidade franco-guianense antes de entrarmos no Suriname. Atravessamos o rio Maroni até a cidade de Albina e de lá seguimos de carro para Paramaribo, capital do Suriname, a ex-colônia holandesa que se tornou um país independente em 1975, o último da América do Sul a se descolonizar de um país europeu. É um país muito novo comparado às demais nações do continente e possui uma população composta por índios, descendentes de africanos, indianos, javaneses e brasileiros, que o torna uma nação culturalmente bem diferente quando comparada às particularidades históricas dos demais países da América do Sul que foram colonizados por portugueses ou espanhóis. Essa multiculturalidade se reflete na língua que oficialmente é o holandês, mas possui um dialeto local – o crioulo surinamense ou Sranantongo – popularmente chamado de taki taki.
Uma diversidade de traços físicos do povo, na marcante arquitetura dos casarões de herança da colonização holandesa, nos templos hindus, nas mesquitas, nas sinagogas, na diversidade encontrada na música e nas inúmeras possibilidades gastronômicas do país nos revelam uma abundante riqueza cultural, o traço mais forte desse país.
A partir de Paramaribo, iniciamos o nosso percurso de volta a Macapá. No retorno, paramos em Kourou (Guiana Francesa) para conhecermos a Íle du Salut (Ilhas da Salvação), um arquipélago composto pelas Íle du Diable, Íle Royale e a Íle Saint-Joseph, que abrigou o mais rigoroso complexo penal francês, criado no século XIX e desativado na década de 1940.
Nossa viagem até as ilhas foi em um pequeno barco a motor e durou 30 minutos, o que nos levou ao encontro da memória e das ruínas de um dos episódios mais conhecidos da antiga colônia francesa, que inspirou o livro Pappillon de Henri Charrière, posteriormente adaptado para o cinema e que ainda povoa de forma mítica a nossa imaginação.
A única ilha aberta à visitação é a ilha Real, que hoje abriga uma estrutura de hotelaria e restaurantes. O lugar paradisíaco recebe muitos turistas que buscam o contato com a história e as belezas naturais do lugar. A ilha do Diabo e a São José, fechadas à visitação, podem ser observadas do próprio barco ou de vários pontos da ilha Real.
Com um banho de mar nas ilhas de Salut, começamos a nos despedir daqueles dias especiais divididos entre a amizade, a música, a estrada, a comida crioula, a culinária asiática, o vinho francês, a cerveja surinamesa Parbo, as novas aquisições de Cds, os encontros no café da manhã, os planos traçados para o dia, o cansaço superado pela curiosidade de conhecer mais coisas, as mímicas pra ajudar na comunicação quando a língua falhava, a pimenta que nos pegava de surpresa, o bami, o poulet fumé, as pirogues, os sons dos variados tambores, a primeira audições do Todo Música, a audição das faixas mixadas do Timbres e Temperos e aquela emoção coletiva ao ouvirmos a Chiquinha é Chique, as incontáveis piadas e o nosso rico vocabulário de expressões renovadíssimos.
Viajar pela Guiana Francesa e o Suriname foi especial. Lugares que nos permitem estabelecer a interface da Amazônia com o Caribe e a União Européia.
Viajamos quase 3 mil km de estrada no trajeto Macapá/Oiapoque/St Georges/Caiena/ Kourou/Saint Laurent/ Paramaribo, e retornamos “no mesmo pé” até chegarmos ao nosso ponto de partida com a bagagem cheia de coisinhas legais, incluindo ritmos, projetos musicais e a amizade alimentada por um emaranhado de lindos momentos que vivemos.
Texto e Fotografia: Clicia Vieira Di Miceli
Clicia é produtora cultural, geógrafa e mestra em Estudos de Fronteira.
*Escrito em agosto e publicado somente em dezembro de 2019 por falta de tempo para revisar o texto e selecionar as fotos.