Por Fernando Canto
Os fogos que cruzaram os céus de Macapá para comemorar os 238 anos da Fortaleza, na véspera do equinócio das águas, foram poucos diante da grandeza e importância que ela tem para o povo do Amapá.
A Fortaleza de São José é produto de múltiplas temporalidades, percepções e apropriações, mormente na sua condição de monumento tombado, protegido por Leis que fizeram a frente da cidade de Macapá tomar outro rumo na construção de seu espaço urbano nos últimos anos.
A essas transformações, onde se emolduram concepções distintas de espaços públicos, imagens e intervenções urbanas eficazes ou não, públicas ou particulares, também estão presentes, indubitavelmente, o olhar artístico, o discurso ufanista e político, a mídia direcionada, a observação crítica e todas as tensões desafiadoras dos conceitos constitutivos e questionamentos que requerem a significação desse monumento tão importante para a vida da cidade de Macapá.
Aliás, a Fortaleza de São José é a gênese da cidade de Macapá. Mesmo que a vila tenha surgido antes, possivelmente ela não sobreviveria como tal sem as obras, as alteridades e as transformações que ao longo do tempo a Fortaleza enfrentou.
Durante a sua construção, as cartas e relatórios emitidos pelos seus construtores tornam-se peças literárias de valor, não apenas pelo que indicam sobre a obra em si, mas pelos aspectos inerentes aos comportamentos sócio-ambientais de homens e mulheres que se tornaram rudes pelas circunstâncias, individualistas pelas necessidades e até sentimentais diante das injustiças e violências experimentadas naquele período. Esses documentos falam de saudade da família, de pedidos de promoções, de lista dos remédios mais usados para tentar sanar as doenças, e também das preocupações com detalhes de figuras e medidas de pedra “que sobre a porta principal da Fortaleza deve conter uma daquelas inscrições que em semelhantes monumentos passam à memória de seus fundadores aos séculos futuros” (Carta de Gallúcio, Códice 200, doc. 07. De 10.07.1769 – APP).
Nessas cartas, notadamente Henrique Gallúcio, Henrique João Wilkens, João Geraldo de Gronfelds e Lobo da Almada (todos eles diretores da fortificação em construção), mostram-se homens cultos. Gallúcio, por exemplo, cita versos latinos da Eneida, de Virgílio, em epígrafes de suas epístolas; assiste a eclipses do sol e da lua e informa que recebeu instrumentos de astronomia. Eles são invariavelmente vítimas de intrigas e doenças tropicais e nas suas demandas mostram-se subservientes até ao extremo na sua lealdade ao general governador e ao soberano. Uns como Gallúcio e Gronfelds são estrangeiros e, mesmo pertencendo ao Exército Português, são alvos de discriminações. Gallúcio faleceu e foi substituído por Wilkens, e este por Gronfelds. Mais tarde Wilkens foi transferido para a Província do Rio Negro e ali escreveu a “Muhuraida”, o primeiro poema épico da Amazônia.
Cremos que a história da Amazônia se mescla no seu sentido interpretativo a uma literatura real, feita de sangue e ossos, do testemunho relatorial e missivista dos que por aqui passaram, independentemente do seu intento de “fazer literatura”. O que escrevem confunde-se com o discurso ideológico-iluminista da época pombalina e reflete a experiência hegemônica dos conquistadores que a ferro e fogo construíram a Fortaleza de Macapá. Tais textos também podem ser vistos como elementos literários de grande valor, para além de meros relatórios que detalham cada passo da construção daquele edifício. Trata-se, portanto, de textos que contam uma epopéia amazônica, onde cada carta é um longo verso heroico. Ou uma pedra de cantaria na construção dessa memória.