A mais importante passagem de Chico Science pela cidade de São Paulo.


Certa feita, era dia de semana, no quintal dos cumpadres Dani e Lula, ouvi Bráulio ensinar algo assim para uma plateia de ouvidos curiosos, no Poço da Panela, Recife, Pernambuco:


– Já contei que Mr. Tambourine Man foi escrita a partir de um encontro entre o senhor Dylan e o senhor Jackson do Pandeiro, no Rio de Janeiro, na Feira de São Cristóvão?

A partir daí, com uma narrativa e desenvoltura que só caras da envergadura literária dele mesmo – e mais meia dúzia, atualmente, conseguem conduzir – Bráulio nos levaria pela mão através dos corredores enfumaçados até chegar na biboca onde Jackson tocava e Dylan, ao ouvir meia dúzia de palavras cantadas pelo pequeno sujeito que cantava como quem dispara uma metralhadora melódica, sentou num banco de plástico fuleiro para ouvir, embasbacado. Cada vez que Jackson terminava um coco envenenado, senhor Dylan dizia Senhor Pandeirista, toque uma canção para mim. Foi assim até o ponto de Jackson ter que parar com os pedidos sob uma resposta amedrontada.

– Hôme, deixe eu ir que já tá tarde, senão Almira me mata quando eu chegar em casa.

Isso foi em 1964. E é um prefácio daquilo que preciso contar a vocês, que eu mesmo tive o prazer de ouvir da boca de quem estava lá e viu tudo de perto, em pequenas rodas de amigos. Foi assim.

Era 1994. Pouco antes de fazer a última audição do álbum – uma labuta sofrida, todo mundo na pindaíba, uns querendo desistir, outros não, e insistindo para os desistentes mudarem de ideia – Chico parou numa esquina para tomar um café. Rua Augusta, São Paulo, fim de tarde. A audição estava marcada para daqui a pouco, mas Chico queria ouvir alguém, um amigo. Pediu um café, pediu para cancelar, pediu uma cerveja. Olhou ao redor e nada. Resolveu trancar-se um pouco nos seus pensamentos que já estavam pensando melhor, desde o almoço, e que agora continuariam em evolução e ebulição. Samba Makossa estava fechada, sabia que iria adiante. Isso dava ao seu estômago uma garantia de que os últimos dois anos de trabalho abririam uma porta importante dali por diante. Samba Makossa o deixava confortável. Mas tinha algo embrulhado no bucho de Chico e não era a empada tenebrosa da padaria. 

Era um sentimento de que algo ainda poderia mudar o prumo da prosa por inteiro. Bebeu a cerveja até o fim, já estava anoitecendo, preparou-se para levantar e pagar quando, pela entrada da padaria, viu entrar, todo de preto, cabeça baixa, sozinho, sozinho, o senhor Dylan. Nem fumei hoje. Senhor Dylan? O senhor balançou a cabeça fazendo sinal de negativo, mas puxou Chico pelo braço, dizendo em português fajuto, espanhol pior ainda. Si, sou yo. Mas no fala. Sentaram no canto da padoca, pediram mais duas cervejas, saíram em disparada no assunto, rumo ao nada, o vazio do desencontro inesperado, pois aquilo era mais desencontro que encontro – dali ninguém sairia como entrou.

O padeiro estava acostumado com o senhor Dylan por ali. Mas aquele rapaz de Recife, trejeito de tudo quanto era jeito, um menino que todo mundo já tinha comentado Esse aí vem pra arrebentar, mô véi (mô véi que vem do latim meu velho e numa típica referência às gírias pernambucanas – melhor: olindenses – de Chico, eram uma maneira de aproximar quem estava distante – chamar de mô véi era oferecer um abraço, uma luva num dia de vento frio, um picolé Chicabon na praia).

– Senhor Dylan, hoje tem a audição do álbum, bora comigo? É aqui do lado.

O senhor Dylan e Chico chegaram ao estúdio minúsculo e a banda estava toda lá. Dengue soltou um putaqueopariu, todo grudado assim mesmo, que é como se diz quando a gente quer dizer um puta que o pariu mais invocado: putaqueopariu. Todo mundo ficou silencioso e Lúcio, desenrolado na língua estrangeira nativa do hôme, mandou logo um papo reto dizendo que, com o mestre ali dentro, o mínimo que eles poderiam fazer era muito silêncio para que o álbum tocasse em paz até chegar no cérebro do senhor Dylan. Foi-se uma, duas, três músicas. Parem. Toquem de novo. Silêncio. Toquem de novo. Parem. Toquem, toquem, toquem de novo. Senhor Ciência, toque de novo essa canção para mim. Essa canção, Macaxeira, Imbiribeira, Bom Pastor, toque, toque. É essa.

E foi nessa noite que só acabou na manhã seguinte que Chico e o senhor Dylan selaram uma amizade que durou até quando o tempo quis. E o senhor Dylan, em pequenas rodas de amigos, ainda confessa a surpresa ao ouvir da boca de Lúcio que os rios, pontes e overdrives existem. E estão lá.

– Ei, senhor da gaita no pescoço. Toque uma canção pra mim.

Disse Chico, certa feita. Era um boa noite, sendo que dito de um melhor jeito.


*Surrupiado do Facebook da jornalista Cíntia Souza. 

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