A morte e a desmorte do Bogéa – Crônica porreta de Fernando Canto

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José Arthur Bogéa – Foto encontrada no blog Canto da Amazônia

Por Fernando Canto

Já não é mais tão difícil para mim falar da pessoas que partem desta vida em suas canoas espirituais. A gente vai envelhecendo e os amigos e parentes que amamos se vão a nossa revelia, em busca de novos portos para prestar contas com o Grande Arquiteto. Só eles sabiam realmente o que fizeram nesta vida e o que realizaram nas tardes amareladas de sóis poentes e nas manhãs de chuva que despetalam as rosas, afofam a terra e fertilizam as sementes. Cada qual tinha a responsabilidade de viver com a necessidade de encarar a morte. E vive e versa. Sim, só a eles competia interpretar suas metáforas particulares, suas soberbas criações e finalidades diversificadas.

Ah, a morte, flagelo imensurável e certo que acompanha os viajores execrados de seus próprios corpos; nefasta conclusão de um tempo em que perdura o sonho. – Morte, ó morte, obreira incansável que carrega o relógio da vida sob o manto negro, e o instrumento que ceifa qualquer tentativa de viçar demais. Traz o tempo certo na ossatura à vista e parte em bradantes gargalhadas pelos túneis da incompreensão humana.

Com ela salta o nosso pranto em gotas rutilantes, por tudo o que passamos, por tudo o que lembramos. A morte é memória posterior ao sonho. É a contraluz que indica o caminho revertério. A morte é a ponte inalterada da criação. Todos morrem. Todos morrem-morrem, desmorrem e morrem. E é morrendo que creio na criação, que crio no tempo do viver. E vivo. Eu escrevo com a mão esquerda/ saúdo com a voz do vento/ meu escudo é uma fortaleza/ que embate a foice da morte.

Eu tenho um poço escondido de todos. É uma grande cavidade de esquecimentos, onde jogo minhas mágoas e o nome das pessoas que me fizeram mal. É um poço fundo, fundo. Eu o conheço bem porque já estive lá e a muito custo consegui voltar. Eu tenho ainda uma fogueira permanentemente acesa para queimar minhas mazelas e transformar em pó as ciladas que me armaram e as energias negativas que lançaram em mim nos momentos de fragilidade. Mas eu não tenho um cemitério para enterrar meus inimigos. Eles que cavem suas próprias sepulturas, embora já habitem o abismo do poço escondido.

E que façam seus enterros ao sol do meio-dia, para que descasquem logo. Queiram ou não meus amigos vão permanecer acordados no meu pensar, em um jardim que plantarei num minifúndio especial e muito produtivo. Eles usarão chapéus na labuta diária e à noite comporão elegias e epitáfios por encomenda e serão regiamente remunerados com bons salários. Decerto sonharão com a vida, com os anjos e com o trabalho que terão de completar em outro porto, em outro cosmo, porque já estarão aposentados do trabalho de jardinagem, mas suas poesias correrão como relâmpagos nas noites escuras, onde Pégaso reina voando em direção ao Olimpo. E virarão pedras de mármore assinaladas pela palavra saudade.

Morreu o meu amigo, o Zé Arthur, o professor erudito de literatura e especialmente da literatura amazônica. Assim deu numa pequena nota de jornal, em Belém, sua terra, onde lecionou na Universidade por muitos anos. Morreu. Morreu mesmo, me confirmou o morto Ronaldo Bandeira. O escritor José Arthur Bogéa partiu como quem fica no início do mês numa cidadezinha do Espírito Santo, onde seu espírito, santo como seu texto, vaga pelo céu que lhe descortinou a paisagem para que, enfim, se transformasse em estrela.

Embora tenha saído essa nota de jornal, tenho a impressão que é mais uma das muitas mortes que inventaram desse meu amigo. Eu acho que ele ainda vai mandar notícias, desmorrer de novo. Quem sabe um novo livro sobre a obra de Dalcídio, porque chove nos campos em que plantaste teu trabalho, velho amigo.

*José Arthur Bogéa, paraense, ex-professor da Universidade Federal do Espírito Santo e professor visitante da Rijksuniversiteit te Utrecht (Holanda), jornalista, ator, crítico literário. Um criador. Comprometido com a cultura de sua terra e entusiasta da boa literatura produzida na região amazônica. 

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