ANTENA DE ARAME – Conto de Luiz Jorge Ferreira

ANTENA DE ARAME

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O rádio estava chiando muito. Meu pai, com o propósito de diminuir o chiado, mudava de posição a vara de bambu que segurava um pedaço longo de arame que chamava, a toda hora, de antena. Mas tudo em vão. Eu sabia que era Copa do Mundo.

Todos falavam que aquele jogo com a Tchecoslováquia era de vida e morte. Aquele Skarov era o diabo, podia fazer um gol e muitos outros e nos mandar de volta do Chile para casa, acabando com o sonho de sermos bicampeões mundiais.

Eu, medrosamente, olhava para o rádio. Quem sabe se aquele diabo loiro, musculoso, de muitos metros de altura, como eu o imaginava, pulasse de dentro do rádio para acabar com todos ali, inclusive comigo que torcia contra ele. Eu queria que este Skarov morresse e fosse para o inferno que era o pior lugar que eu em meus oito anos ouvira falar. Escondia-me por detrás de mamãe. Ia aonde ela ia. Vigiava a porta disfarçadamente e olhava assustado para o grupo de amigos do papai, que ora fumavam, ora bebiam um gole de seus copos sempre cheios, ora passavam a mão pelos cabelos, ora roíam as unhas e iam e vinham do banheiro apressados, enxugando as mãos na calça. “- Quanto está ainda? Ninguém marcou? O Skarov está nos atacando novamente? Este demônio vai acabar fazendo um gol.” Depois de noventa minutos de sofrimento, o Brasil ganhou o jogo.

À noite, vi Skarov vindo me engasgar com suas mãos peludas, rindo e pondo a mostra seus dentes afiadíssimos. Trazia um hálito de sangue, um fogo em seus olhos vermelhos que pareciam beliscar-me. Gritei muito. Mamãe saiu de seu quarto e veio me sacudir. “– Eu não lhe disse para que não provasse o vinho que seu pai e os amigos dele estavam tomando? E que também não ficasse com o ouvido grudado no rádio? Jogo é para gente adulta. Levanta e vai tomar banho. Está urinado. Lave-se e, depois, vá para cama do seu irmão. De manhã, troco os lençóis. Reze de novo antes de deitar.”

Em 1982, por ocasião da Copa do Mundo, fui a trabalho até a antiga Tchecoslováquia e fiquei hospedado nas proximidades de uma antiga Vila Olímpica que, na ocasião, foi transformada como abrigo de ex-atletas. Uma noite, antes de embarcar, ao regressar sozinho de um coquetel, atravessei por entre os prédios todos iguais, andando por uma viela escura que cortava caminho em direção ao Hotel onde estava hospedado com a delegação de jornalistas brasileiro, foi quando vi o vulto de uma pessoa.

Ao me aproximar, vi um homem caído defronte a um dos últimos prédios. Aproximei-me para prestar-lhe ajuda. Risquei o isqueiro. Estava escuro e muito frio para a estação. Ameaçava mesmo nevar. Observei que era um homem de aproximadamente uns setenta e poucos anos, magro, desnutrido, que cheirava álcool, balbuciava uma mistura de francês e tcheco. Ficou apavorado comigo ali. Àquela hora, abaixado sobre ele e tentando acender um isqueiro, eu tentava enxergá-lo melhor para saber se ele estava ferido. Vi que tentou levantar-se, arrastar-se, mas as pernas castigadas pelo álcool não lhe obedeciam. Transpirava muito. Olhava-me quase como se implorasse pela sua vida e eu, também, fiquei nervoso balbuciando frases mal construídas em inglês e em francês, tentando me comunicar. Era em vão. Ele estava em pânico. Apertava meu braço e tentava ficar de pé. O vento frio que soprava não era o bastante para enxugar o suor que gotejava da sua testa. Ele tremia apavorado. Eu, sem saber o que fazer para acalmá-lo, gritava em português. “– Acalme-se! Não se apavore, quero ajudá-lo. Sou jornalista do Brasil. Você esta ferido? Você entende? Brasil!”

O ancião olhava-me em choque, com certeza se achava vítima de um assassino ou na presença de um monstro de dentes afiadíssimos que queria no mínimo devorá-lo. De repente, passou-me uma ideia. Abri o paletó e mostrei-lhe a camisa da Seleção Brasileira que tínhamos levado para o coquetel de confraternização a fim de fazermos uma brincadeira com os jornalistas portugueses. Senti que havia dado certo. Eu tinha razão, ex-atleta reconhece a camisa. Aquela cor, aquele distintivo. Por fim, deixou-me ergue-lo e acomodá-lo em um canto da escada, onde o cobri e com meu sobretudo. Senti que se acalmava. Já não transpirava muito e seus olhos começavam a perder o olhar apavorado. Diminuíra sua angustia. Tentei fazer com que ele me entendesse e procurei ver se tinha um documento, uma identificação para que eu pudesse passar pela portaria do Hotel. Pedi para que um funcionário fosse vê-lo e o encaminhasse a um atendimento médico. Por certo, ficaria muitas horas exposto ao frio. Ele deu-me um pequeno embrulho de plástico. Compreendi que aquilo protegia um documento. Antes que eu me afastasse em direção a portaria, abraçou-me agradecido, meio sem jeito, na posição que se encontrava. O deixei ali e fui até ao Hotel onde entreguei o embrulho para o chefe da segurança, que se encarregou do caso.

Pela manhã, ao descer para embarcar de volta para a Espanha, o rapaz da portaria disse que havia um recado para mim da família do homem que eu ajudara, mas que infelizmente ele havia falecido. Como não leio Tcheco, ele o fez anotando a tradução no verso do próprio bilhete que imediatamente guardei. Tomei um táxi para o Aeroporto com aquela tira de papel no bolso do paletó e o episódio martelando em minha cabeça.

Comprei um jornal espanhol e ao folhear a secção de esporte, deparei-me com a notícia “A Tchecklosvaquia perdera um craque da seleção vice-campeã do mundo de 1962. Encontrado ao relento por um turista estrangeiro…” Foi, então, que abri a tira de papel com o bilhete traduzido: “A família do ex-jogador de Futebol Skarow agradece ao jornalista brasileiro pela ajuda prestada ao seu pai e avô.” Grampeada em anexo havia uma foto da formação da seleção Tcheca 1962. Retornei ao jornal assustado e confuso. A notícia martelava em minha cabeça. Li novamente. Abaixo da legenda via-se a foto de um ancião pequeno, frágil, magro, de cabelos brancos e ralos, de semblante plácido, deitado sobre uma mesa, coberto com seu sobretudo. Tomei o avião e quando cheguei em Madrid, fazia sol.

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *