Crônica de Pat Andrade
Estou fechando minha participação em um Simpósio de Poesia, para o qual fui convidada, ao mesmo tempo em que reviso um texto e preparo arroz.
Enquanto picava o alho, me veio à cabeça a Clarice Lispector. Que cheiro teriam suas mãos quando escreveu seu primeiro conto conhecido, Triunfo, publicado em 1940. Ela tinha 19 anos. Era tímida, mas ousada. Mais do que eu, inclusive.
Agora, o cheiro do arroz temperado se espalha pela casa. Sigo trabalhando diante do computador, respondendo e enviando mensagens.
Um passarinho canta aqui fora, bem pertinho da minha janela. Me pergunto: se eu não fosse poeta, essas coisas passariam despercebidas?
Será que a Dona Maria, mãe de oito filhos – com mais um na barriga – que lava e passa roupa pra fora, cozinha, cuida dos moleques sozinha, acorda às cinco da manhã pra buscar água no poço da vizinha, será que ela ouve esse passarinho? Será que tem arroz pra cozinhar?
Perguntas vãs, com respostas impossíveis sem poesia. Só a crueza de um cotidiano que não é o meu.
Meu gato me olha e se enrosca em minhas pernas – puro interesse: quer comer – e eu paro por aqui, antes que o arroz queime.
1 Comentário para "Arroz com alho – Crônica de Pat Andrade"
Patrícia, muito bancana a tua crônica. Foi pensando na Clarice Lispector que escrevi uma canção pra ela, juntamente com meu parceiro, Cássio Pontes, depois de ler isso que ela escreveu, e de revelar seus paradoxos secretos:
Eu te recebo de pés descalços: esta é minha humildade e esta nudez de pés é a minha ousadia.
— Clarice Lispector
Claríssima Nudez
Ademir Pedrosa e Cássio Pontes
Interpretação: Ariel Moura
Eu sonhei novamente contigo
Me recebias de pés descalços
De pés despidos, e com um abraço
Silhueta dos pés são teus vestígios
Me corrompias pra eu te desnudar
Pra te deixar em pelos explícitos
Me permitias assim sonhar
Despi da veste vã teus segredos
Como a desembainhar a lua
Cingi com meus obscenos dedos
Tua pele absurdamente nua
És meu sonho, minha Macabea
Teus pés Abaporu, um pé de cáctus
És a fina flor, a flor do Lácio
Minha nordestina Dulcinea
Sei que no meu sonho eu sou rei
E tu, a rainha. Eu sou tua, eu sei
Tu és soberanamente minha
https://youtu.be/OL6kaAZM0AQ