As Estrelas da Tarde (Conto paid’égua de Fernando Canto)

Conto de Fernando Canto

– Quem vê uma estrela de dia será feliz, disse-me o homem de cabelos brancos com quem costumava conversar quando voltava da escola.

Eu havia contado a ele que há dias vira uma delas, grande e brilhosa, dentro de nuvens escuras (cumulus-nimbus, frisei, orgulhoso do meu aprendizado escolar), antes que elas vertessem sobre o mundo suas águas lacerantes.

Seu Unvagnime ficava todo fim de tarde na calçada observando os poucos passantes da rua enladeirada, onde um tempo lento absorvia a realidade e abria seu portal para uma dimensão que nos olhava de soslaio. Junto a sua cadeira de macarrão, afundada de tantos sentares, havia sempre uma garrafa térmica com café que oferecia aos seus conversadores ocasionais. Entre eles eu. Parava ali como se estivesse atendendo a um chamado, mas meus colegas de escola o escarneciam por causa de sua aparência. Cheguei a brigar por causa disso com um deles, que também era meu vizinho.

Tornei-me um conversador contumaz e um apreciador daquele café puro, colhido, torrado e moído no pilão por suas filhas solteironas, umas meninas galegas de cabelos louríssimos e de olhos azuis, azuis. Pareciam mulheres nórdicas que pulavam de dentro de revistas e se escondiam nos meus sonhos. Eram albinas. Quando voltava da missa aos domingos eu as acompanhava. Estavam sempre de óculos escuros e lenços de seda na cabeça. Chamavam-se Anabella e Ana Bolena. Aparentavam tristeza, mas sorriam quando falavam comigo.

Em uma dessas conversas com o ancião perguntei se ele já teria visto uma estrela de dia. Ele percebeu minha curiosidade, ajeitou os óculos espelhados estilo ray-ban que mandou buscar por um catálogo, e disse:

Vi muitas, Josset, vi muitas. E sou feliz, eu juro. Por Deus e pelas sete chagas de Cristo, repetindo o juramento com entusiasmo.

Contou suas aventuras como marítimo e pescador, dos sete naufrágios em que se salvou, sendo que quatro deles aconteceram em pleno dia. Falava como se estivesse revivendo tudo aquilo, olhando a embarcação estraçalhada pelas vagas do oceano, embaixo de procelas inacabáveis. Falou que sua voz e seus ouvidos estouravam na dança arritmada das águas, no vai-e-vem, no vai-vai, no vem-vem das ondas, nos punhais da chuva baguda disparada pelo vento.

E graças às estrelas que corriam entre as nuvens, me disse, soubera que direção tomar. Em um desses desastres ele nadou, nadou, e nadou no rumo das ilhas, ao sabor da corrente, até ser encontrado por um barco de passageiros que ia em direção às ilhas do Bailique. Sempre que se salvava de um naufrágio estava preso a uma boia, a um botijão de gás ou outro objeto que os ajudavam a se salvar. Certa vez, ele e um marinheiro se agarraram a um tronco solto na maré depois que o barco virou surpreendido por uma pororoca entre o continente e a ilha do Brigue. Infelizmente seu parceiro sumiu nas águas barrentas e ele nada pôde fazer.


– Vi muitas vezes, Josset, tantas que nem procurei a felicidade, se é que queres saber. Ela veio a mim e eu sou feliz. Viver foi a minha condição de felicidade, que é tão rude como as ondas do mar na tempestade. Vi muitas, meu amigo. Como são suaves e belas ao cair da tarde. O céu me deu a escolha de tê-las grandes ou pequenas. Eu quis a que veio a mim por quatro vezes para que eu tivesse uma longa vida. Conheci pessoas que tiveram esse condão e foram contempladas com a sorte da riqueza. Elas pouco viveram, mas compensaram suas vidas espalhando sua felicidade no tempo a outros que dela precisaram.

Olha rapaz, disse o velho, a felicidade não é um objeto, um ser, uma alma. Ela apenas é. Ela vive, sim, em um tempo duradouro, às vezes na forma de uma estrela avistada por poucos em tardes de tempestades.

Narrou suas histórias por um bom tempo. Quando terminou de falar encheu o copo de café e o entornou. Eu fiz o mesmo e fui para casa. Quase não dormi naquela noite, imaginando viagens pelos mares, e por causa do café.

No dia seguinte ao voltar da escola deparei com uma multidão na sua casa. Velavam seu corpo na sala. Eu que nunca havia passado pelo portão do quintal me surpreendi com aquele ambiente esquisito, nem alegre nem soturno.

Havia conjuntos de móveis estofados, enormes telas de paisagens amazônicas nas paredes, sempre com barcos navegando; cristaleiras com taças e cálices com bordas de ouro, estantes abarrotadas de livros e de miniaturas de barcos, tapetes coloridos sob mesas de mármore com pés de madeira nobre; uma geladeira vermelha meio arredondada e uma vitrola hi-fi de mogno num canto. Na sala contígua estava o caixão branco com o corpo do velho Unvagnime ornado de flores, anzóis e pedaços de rede de pesca. Em seu peito haviam colocado a bandeira do Brasil e a do Sindicato dos Pescadores.

Cumprimentei suas filhas com o devido respeito, me contendo para não chorar, pois já possuía a experiência de morte na família e a perda de uma pessoa que considerava amiga me doía muito. Aproximei-me do corpo. No rosto pálido haviam deixado os óculos espelhados, a pedido dele, me disseram.

E foram muitas as lágrimas que caíram dos meus olhos naquelas lentes que me refletiam.

Eu os tirei do rosto para enxugá-los com blusa do meu uniforme e olhei seu rosto bem de perto, mas em vez de seus olhos fechados vi duas estrelas faiscando como se estivessem me chamando em código, do alto de uma nuvem escura.

Um cheiro de café explodia em todos os meus sentidos. Saí daquele ambiente plenamente entranhado de sensações estranhas e de uma felicidade extemporânea.

Ela sempre reina em mim quando olho para o céu e procuro estrelas da tarde. Se a sorte chega e vejo uma, pequena e fugaz que seja, ouso transformá-la em nebulosas infinitas.

  • Excelente Conto de Fernando da lavra dos incluídos no Surrealismo Fantásticos Amazônicos… Porém como a Humanidade é indivisível… Surrealismo Fantásticos Mundial.
    Todos os parâmetros prendem, e fantasiam a mente do leitor em toda a extensão do Texto.
    Ave Fernando Canto!!!

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