As verdades literárias do Mito das Amazonas – Por Yurgel Caldas (@yurgelcaldas)

Peter Paul Rubens – óleo sobre tela – 1618 – (Alte Pinakothek (Munchen, Germany))

Por Yurgel Caldas

No “Ensaio sobre a poesia épica”, o escritor paraense Carlos Alberto Nunes insere a presença definitiva das Amazonas como “a mais fascinante das lendas da nossa terra, surgida antes mesmo do início da colonização portuguesa, e de tal força configurada, que deu nome ao rio de cinge ao norte do território brasileiro” (NUNES, 1962, p.18). O ensaio de Nunes introduz seu poema épico, intitulado Os Brasileidas, que tem como subtítulo a expressão quase eufemística de “epopéia nacional”, cujo assunto gira em torno da rota percorrida pelos bandeirantes liderados por Antonio Raposo Tavares, que buscava alcançar as lendas amazônicas, tanto a do Eldorado quanto das mulheres guerreiras daquela região.

Antes de defender a tese do caráter sócio-familiar da lenda das Amazonas – presente na literatura universal, desde as narrativas gregas até o Romantismo Alemão -, Carlos Alberto Nunes contesta as criticas historicistas que prevalecem sobre a natureza fantástica das mulheres guerreiras, como elemento de criação ficcional: “que valor poderá ter a demonstração por a + b da não existência histórica das mulheres guerreiras se o nome do rio é a melhor prova do contrário?”(idem,p.19). Para Nunes, a “realidade lendária da Amazonas está assegurada pela crença multissecular da existência da um reino de mulheres guerreira, desaparecido, mais do que na voragem das águas, n da história, que o nome do grande rio preservou para a posteridade” (id. Ibd.).

A História tem um monte de relatos de mulheres guerreiras e sociedades como as Amazonas, mas todas se mantém no rol das lendas. Somente uma vez uma classe inteira de mulheres deteve real poder e respeito, foi durante o Reino Dahomey, mas você não vai ver essa história por aí. Ela tem muitas verdades inconvenientes – Imagem: site Forum Outerspace

Segundo o autor de Os Brasileidas – para quem os acontecimentos de base lendária ou mitológica forçam uma mudança de rumo cronológico na narrativa épica (idem, p.16) -, a carência de provas históricas pode ser compensada pela memória da tradição oral, o que determina uma espécie de “verdade” para a lenda amazônica. No sentido universalista do termo, as “Amazonas aparecem na origem de todos os povos e sempre como reação contra a opressão exercida pelos homens sobre as mulheres” (idem, p.21) – realidade eu pode ser lida como contraponto à lenda do Jurupari, figura divina que nasce, filho de mãe virgem, para restituir a autoridade masculina ante um mundo comandado por mulheres. Criando novas leis, como as de fidelidade conjugal e castidade para as mulheres, Jurupari passa a ser também “o legislador da mitologia indígena” (ROQUE, 1968, p.962, apud WILLIAMS, 1976, p. 106), tornando-se, segundo sugestão de Nunes, uma “representação simbólica da vitória do direito paterno, ou dos novos deuses sobre as divindades ctônicas das populações primitivas” (NUNES, 1962, p. 22).

Assim, o ensaio de Nunes aponta para o reforço de uma tradição imaginária iniciada pelos primeiros viajantes-cronistas, que viram e narraram, maravilhados e amedrontados, num misto de documento informativo e ficção, o espaço do Novo Mundo que por muitas vezes lembrava um território primitivo, fora do tempo histórico, cheio de promessas de riqueza e poder.

Imagem: Portal Mitos e Lendas

Ao considerar a lenda das mulheres Amazonas como fundamental para a criação ficcional, não só da Amazônica, mas também de todo Brasil, como Carlos Alberto Nunes abre espaço para a construção do bandeirante Antonio Raposo Tavares como o herói de seu poema, aliás, “o tipo acabado de herói da epopéia” (Idem, p. 28), alem de inserir a narrativa mitológica da Atlântida na estrutura de Os Brasileidas, sugerindo que as Amazonas seriam “sobreviventes do continente submergido” (idem, p. 30). Para reforçar tal idéia , Nunes busca apoio nos cronistas europeus, como o padre Simão de Vasconcelos, que escreve: “O que suposto […] há de se dizer que os progenitores dos índios da America […]entraram a povoá-lo sucessivamente com os que entraram a povoar a Ilha de Atlante; pois tudo era a mesma terra, mais ou menos distantes das colunas de Hércules” (Apud NUMES, 1962, P. 30).

Excetuando-se a visão meramente mitológica que Nunes desenvolve em ensaio e, naturalmente, em sua épica, vale a pena destacar a tradição conciliadora como base constitutiva do herói de Os Brasileidas, conforme vimos em Gomes Freire de Andrada (O Uraguay) , Diogo Álvares Correia (Caramuru) e nos “heróis” portugueses de Muburaida. Assim, Raposo Tavares é marcado como “herói” no contexto civilizador do século XVIII, o qual – tal como vimos nos heróis da épica brasileira colonial – fundamenta-se na piedade como traço marcante de seu caráter. Dessa maneira, também inspirado no Enéias virgiliano, o valoroso constitui-se como grande herói civilizador (“alma nobre”) do Brasil colonial, devendo ilitar: primar-se antes pelo discurso diplomático que pela força militar: “Desta arte o bandeirante […]/ em sua alma nobre o impulso/ primitivo da cólera consegue/ dominar e, mais calmo e comedido, / como um deus que as paixões domado houvesse” (NUNES, 1962, p. 67). Esse herói pacificador se insere, assim, definitivamente na linha de tradição do herói da épica brasileira do XVIII.

Bravas guerreiras da África Ocidental repeliram com sucesso invasores europeus – Imagem: aventurasnahistoria.uol.com.br

Se a “alma nobre” de Raposo Tavares é cantada em versos no poema de Carlos Alberto Nunes, ela já fora defendida na obra sociológica Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana (Cf. SANTIAGO [cood], 2002, vol. 1, p. 923-1188), que tem como um de seus pontos principais a constituição do colonial como fruto de uma evolução eugênica.

Assim, os primitivos colonizadores lusos, de quem [os chefes bandeirantes] descendem, representam a porção mais eugênica da massa peninsular; porque só emigram os caracteres fortes, ricos de coragem, imaginação e vontade. Na sua espantosa energia e fortaleza moral, os caudilhos bandeirantes revelam quão poderosas foram essas reservas de eugenismo acumuladas nos primeiros séculos. […] Como na Idade Média, a seleção se faz […] pela bravura, pelo valor – pela virtude, no sentido romano da expressão (Idem, p. 983-4).

“Lutando Amazonas” – Franz Von Stuck – óleo

Força, coragem, moral e inteligência superiores formariam, portanto, o caráter do bandeirante como o “tipo acabado” do herói colonial brasileiro, descendente direto da fina flor cavalheiresca, garantindo a sua “nobreza d’alma”, tantas vezes repetida n’Os Brasileidas, em referência direta a Raposo Tavares. A raça dos heróis bandeirantes, depurada com o passar do tempo, passaria a ser, na perspectiva determinista de Oliveira Viana e na poética mitológica de Carlos Alberto Nunes, a máxima expressão do heroísmo europeu civilizador sobre a selvageria do homem e do espaço americanos.

Como conseqüência desse pensamento, surgem as graduações de raças e sub-raças, no Brasil colonial. Dessa forma, o mulato “inferior” – cruzamento do brando com o negro “inferior”, degradado e incapaz de qualquer espécie de ascensão – estaria distante de formar parte das expedições bandeirantes. Diferente seria a condição do mulato “superior”: arianos pelo caráter e pela inteligência ou, pelo menos, suscetíveis da brancos na organização do país. […] Produtos diretos do cruzamento de brancos e negros, herdam, vezes, todos os caracteres psíquicos e, mesmo, somático da raça nobre. Do matiz dos cabelos à coloração da pele, da moralidade dos sentimentos ao vigor da inteligência, são de uma aparência perfeitamente ariana (Idem, p. 1007[grifo nosso]).

Escultura “Amazonas”, de August Kiss

Nem mesmo a crítica irônica de Alcântara Machado, em Vida e morte dos bandeirantes (Idem, p. 1189-1368), seria capaz de empanar a imagem vencedora e bravia desse sujeito, estabelecida a partir do século XVIII. Alcântara Machado encerra seu livro com a narração de um “gesto mesquinho”, atribuído a Antonio Raposo Tavares, fato impensável nas citadas obras de Oliveira Viana e Carlos Alberto Nunes: “Dos capitães só um reclama a paga de seu trabalho: Antonio Raposo Tavares. Da pobreza que fica por morte de Pascal Neto [bandeirantes falecido nos sertões], o heróico devastador das missões [jesuíticas] retira um par de meias” (Idem, p. 1358). Para a Historia brasileira, contudo, seria considerado de fato o legado legal, heróico e civilizador do “soldado civil” (bandeirantes), que foi desenvolvido pelas épicas nacional do século XVIII, representada pelas obras de Basílio da Gama, Santa Rita Durão e Henrique João Wilkens.

*Contribuição do amigo Fernando Canto.
**Yurgel Caldas, que é professor de Literatura da Unifap e do Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da mesma instituição.

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