Autorretrato – Crônica de Lulih Rojanski

Crônica de Lulih Rojanski

Nasci no ano de 1415 do calendário armênio. O que me consola é que no calendário rúnico já era 2216, e só agora compreendo que o gregoriano é o pacificador dos calendários. Era uma quarta-feira, destinada à proteção do Deus Odin, e no ano do cavalo no horóscopo chinês. Mas isso não influenciou em nada minha vida, que poderia ter sido menos pálida se eu tivesse me deixado governar pela água, pelo saxofone e pelo número oito. Talvez o fervor da Guerra do Vietnã naquele ano tenha suscitado em meu espírito um profundo desejo de paz, e a fundação da Igreja de Satã originado a impressão de um risco vertical em meu olho esquerdo… Não sei.

A astrologia reversa diz que nasci touro com a personalidade de peixes. Paciência. O mundo andava muito louco por aquela época. Manuel Bandeira fazia oitenta anos, e nos ensinava o Itinerário de Pasárgada, para onde finalmente aprendi a ir, mais de trinta anos depois. Nada mais. Apenas nascemos: eu, Zeca Baleiro e o terrorista iraquiano Abu Musab al-Zarqawi, enquanto a boca ávida de Bob Dylan procurava a gaita, em algum lugar.

Quando Pelé voltou do México abraçado à taça Jules Rimet, eu ainda não tinha televisão em casa. Ainda não havia percebido minha própria existência. Mas se tivesse televisão, certamente colocaria no canal do Capitão Aza. Um pouco depois, o Etna entrou em erupção, a juventude entrou em erupção porque Jim Morrison se foi, as crianças entraram em erupção pelo Walt Disney World. Mas na época não fiquei sabendo de nada. Talvez estivesse pensando no Nobel de Literatura de Pablo Neruda.

Passei anos me guardando dos invernos implacáveis dos confins do Paraná. Nos dias hibernais, meu companheiro fiel era o Gato Félix dos quadrinhos, que me ensinou a compreender as primeiras frases escritas. Depois, a televisão chegou à sala da minha infância, e Vila Sésamo me despertava da letargia. Mas chegou o ano em que tudo o que me rodeava foi salvo dos insípidos tempos de geada: descobri os livros, e foi o princípio de um amor eterno, embora naquele tempo eu ainda saltasse do muro com uma fronha amarrada nas costas, gritando o nome de Flash Gordon.

1980 foi o primeiro ano do resto de minha vida, porque topei de frente com o amor, em uma tarde em que o sol de outono estendia caminhos amarelos sob as paineiras. Os amores que nasceram naquele ano foram embalados pela Imagine do beatle assassinado, pelos sonetos do Vinícius morto. O meu não foi diferente.

De lá para cá, dei mais dezenas de voltas ao redor do sol, plantando muito pé de flor que deu capim, capim que deu flor, e nada me desviou do caminho da circunspecção… Nem a passagem do Halley, a queda do Muro de Berlim, a carona que pegaram Drummond, Chico Mendes e Rubem Braga no relâmpago do adeus. Mas estive atenta ao mundo, vendo muita coisa que não queria ver e outras que não pretendo morrer sem rever, como a chuva nas ruas esmigalhadas de solidão da cidade distante onde nasci.

Como agora ando confusa com os calendários, espio o horóscopo, que continua me prometendo um pouco de ternura depois das luas minguantes. Mas tudo está bem, enquanto vou acreditando que sou zen. Amanheço abraçada ao tempo, construindo as manhãs com tantas esperanças quanto raios de sol. Entardeço enumerando sonhos na margem do rio, derramando uma a uma as páginas do Livro de Areia, de Borges. Anoiteço dançando entre os cristais dos sentimentos e adormeço no cheiro das margaridas capturadas nos quintais da infância, que continua a arder no sonho. No peito trago a vontade insondável de voltar a ter dois anos e não saber de nada. No espelho vejo o olhar sereno de alguém que gosto. O fantasma de meu velho gato Stephen Fry anda por perto, a despeito dos anos e dos temporais.

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