Breve história do gato que falava esperanto – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Do nada, o gato começou a falar esperanto. Desde suas primeiras palavras, ainda no berço, se recusava à língua natural dos gatos, falada pelo resto da ninhada de maneira espontânea. Para mamar, gritava em esperanto. Fazia cocô e chamava a mãe para limpar, em esperanto. Como ela entendia, não se sabe. Talvez apenas porque fosse mãe. De modo que o gato que falava esperanto passou uma infância solitária. Era um esquisito na sociedade. Sua vida social tornou-se menos difícil quando aprendeu a usar a esquisitice em seu próprio favor. Intermediava conflitos entre cães e gatos, além de dar aconselhamento amoroso para casais de siamês com egípcio, siberiano com birmanês, persa com azul russo…

Os gatos uniam-se em matrimônio ignorando absolutamente o que um dizia ao outro. Com o tempo, passada a semana da paixão tresloucada no telhado, percebia-se a barreira da língua. Era então que o gato que falava esperanto entrava. E tudo resolvia. Pelo simples fato de compreender a raiz de cada língua.

Fez-se respeitado. De cima do muro fazia discursos paroxítonos e nos modos indicativo, imperativo e subjuntivo. Katoj! Gritava, levantando a pata dianteira em clamor, e a gataria se empinava de orgulho diante daquela referência em substantivo plural. Quando se tratava de julgamentos peremptórios, aproveitava-se da ignorância da plateia para usar a morfologia, e abusava do acusativo e do nominativo, incutindo soluções ilusórias. A arquitetura sintética de sua morfossintaxe também era utilizada para receber comida de graça, lugares quentes para dormir e conquistar as mais belas namoradas. Ensinava esperanto às novas ninhadas e proclamava o sonho de que todos os bichos falassem uma segunda língua universal. No fundo, era um bom gato, apesar da malandragem que trazia na espécie. Andava com o Koncisa Etimologia Vortaro, um dicionário etimológico de esperanto debaixo do braço, e de lá, tirava palavras que satisfaziam à curiosidade de gatos que queriam saber como se diziam certos palavrões em esperanto, fingia arrancar poemas que na verdade improvisava – em esperanto, claro – deixando felinas lânguidas e boquiabertas. Quando se candidatou a presidente nacional dos gatos, foi apoiado pelos anarquistas, pelo Centro de Mídia Independente e pela escola Bona Espero*, mas não esperava encontrar um opositor no gato poliglota que falava inglês, chinês, espanhol e hindu, que era compreendido por milhões de pessoas e que recebia apoio em dólares. Foi sua derrota. E ele, que podia ter estudado medicina, foi engolido pelo imperialismo cultural que privilegia gatos que falam inglês. Implacavelmente perseguido, teve sua família dizimada por um gato german longhair, da Alemanha, e passou a viver nas sombras, onde podia ensinar esperanto a gatos marginalizados, engajados e revolucionários.

De certo modo, nunca fora tão feliz quanto agora. E nunca compreendeu porque nascera falando esperanto. Só o que sabia de si era o próprio nome: Zamenhof. O gato que falava esperanto ainda fala esperanto.

*A Escola Bona Espero, em Goiânia, abriga crianças carentes e lhes ensina esperanto. Conto publicado no livro Gatos Pingados – Escrituras Editora – 2018.

 

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