SOberba ORAção dos SERes da FLOResta parA IANEJAR, o heRÓI – Por Fernando Canto

 


Eu te agradeço Ianejar pelo teu sangue de borboleta avoante. Por seres a distorção da história fútil do homem branco que aqui chegou fincando sobre a terra seus valores.

Ianejar, eu te agradeço pelo fogo – o cataclismo devastador – mais que necessário para proteger teu povo do intrépido inimigo e de suas armas cuspidoras do brilho do infortúnio.

Todos os dias quando o sol se agiganta como um raivoso pai lá no horizonte, eu penso que tu estavas certo em provocar a fuga-exílio do teu povo sofredor por dentro de uma casa-argila, onde tantos faleceram de calor e de frio.

E era Mairi que flutuava pelas margens do Grande Paraná à deriva e à procura de uma terra em que houvesse paz.

Eu te agradeço, Ianejar, por conduzires com grandeza a dignidade do povo Wajãpi na sua memória ímpar, por enormes espirais que o nosso povo representa em ciclos míticos.

Sei que foi preciso destruir uma parte da Floresta-Mãe para depois fazer a roça e ver medrar a folha verde dos campos.

O cacique Piriri fuma seu charuto enquanto outros wajãpis celebram com cantos tradicionais. Nessas festas, eles costumam consumir caxiri, uma bebida típica com forte teor alcóolico preparada da fermentação da mandioca.Foto: Victor Moriyama

E mesmo antropizada como hoje diz o karaiko /o homem branco/ a floresta é a tua dádiva. É a cornucópia do nosso cabeludo povo, dada a nós por um demônio manso que hoje deita na tua rede no teu céu, lá onde estão as borboletas e a estrela em que tu te tornaste quando saíste pelo buraco do final da Terra.

Eu te agradeço, Ianejar, eu te agradeço.

Fernando Canto

* Publicado no livro EquinoCIO, de 2004.

Natal – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Quando a saudade sobe os degraus do tempo
E vem sentar no mesmo sofá em que Ontens, eu desenhei Amsterdã.
Agora é tempo de balançar os lençóis para que caiam as digitais.
Enquanto os relógios cruzam por várias vezes os anos e os meses, em por várias vezes eu vi Abril se espreguiçar na varanda.
Agora é tempo de sacudir as toalhas para retirar as migalhas de suor e shampoo que cicatrizaram nela.

É tempo de varrer os desencontros…
Por ao sol os desencantos.
Espreitar as lembranças que chegam pelo elevador.
Beliscar as cicatrizes que te mostram saudades caladas.
Voltar ao espelho para olhar de novo os olhares ali espelhados.
Polir os sorrisos para uma nova geração de vida.
Depois sentar a cabeceira de qualquer lugar.
E ver o horizonte se continuar no horizonte.

Em dúvida se teremos a companhia do Sol ou da lua, desenhar… desenhar …
Qualquer coisa azul, imensamente azul.
Pode até chama-la de você… ou dizer-lhe… Eu…
Abrir as portas, as janelas, os portões, as vírgulas, o ponto de exclamação, ruídos de trovões, e por fim silêncios…
Muitos deles são pequenos abismos onde reside coberta de limo, indiferente, a neve, e ao calor sufocante, toda a saudade que com você já teve intimidade.

Poderíamos pensar que foram clonados, um do outro…
Você não deixou ela olhar com paixão seu coração.
Por isso caminhe… volte ao início… desenhe… pode perguntar ao vento… que desenhar…
Ele dirá… A mim!
Ele rodopiará… em torno de seus pensamentos.
E se afastará espremendo nele seu desejo de ser feliz.

Quinta-feira a dor entrará no trem e partirá…


Eu espero o Natal para desenhar libélulas sob a luz descomunal da sua ausência.

*Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite moram os dias de Ontem’ – Rumo Editorial – Luiz Jorge.

Querido Papai Noel – Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

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Conto de Natal de Ronaldo Rodrigues

– Deixa de coisa! Vamos embora! Papai Noel não existe!
– Claro que existe! E ele vai aparecer hoje pra deixar o presente que eu pedi!
– Espera sentado! Eu vou dormir. Papai Noel pode até existir, mas ele nunca lembra da gente!

O mano maior disse aquilo ao mano menor e entrou para dormir. O mano menor ficou ali, no quintal, sob o orvalho da madrugada, só pensando: “Poxa. Bem que o Papai Noel poderia aparecer aqui com o meu presente. Eu ia correndo acordar o mano maior pra dizer que ele tava enganado pensando que Papai Noel não existe”.

O mano menor desistiu de esperar Papai Noel e entrou no quarto onde dormia na cama de cima do beliche, enquanto o mano maior dormia na cama debaixo. Teve uma surpresa quando viu um embrulho em cima da cama. E acordou o mano maior:
– Olha só! Papai Noel teve aqui e deixou um presente pra mim!

O mano maior, bocejando e reclamando por ser acordado, falou bruscamente:
– Só se ele entrou quando eu tava dormindo, porque eu não vi nada!

O mano menor, abrindo o embrulho:
– É que Papai Noel é mágico! Ele entra nos lugares sem que ninguém veja.
– Tudo bem! Agora me deixa dormir.

O mano menor olhou para o mano maior com um olhar de compaixão:
– Poxa! Ele não deixou nada pra ti, né?
– É que eu já sou grande.

O mano menor falou com um certo ar de reprovação:
– É que tu não acredita nele…

O mano maior respondeu, já se virando na cama:
– E não acredito mesmo! Boa noite!
– Boa noite! E Feliz Natal!

O mano maior ficou ouvindo a oração que o mano menor fazia na cama de cima do beliche:
Obrigado pelo presente, Papai Noel! Esse carrinho é o brinquedo que eu queria mesmo. O senhor acertou! Só quem sabia que eu queria esse carrinho é esse meu mano maior aí embaixo. Ele não acredita no senhor, mas ele é bacana. Perdoa ele! Agora eu vou guardar o meu carrinho, dormir e amanhã bem cedo eu vou brincar com o presente que o senhor me deu. Boa noite, Papai Noel!

Desligou a luz sem ver o brilho dos olhos do mano maior, que comemorava o fato de continuar mantendo no mano menor aquela chama de fantasia que embala tantas crianças por tantos anos.

O Velho das Latas – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Aquelas barbas espessas no rosto do homem, brancas, brancas, se esvoaçavam com o vento da Beira-rio. Eram barbas longas que chamavam a atenção de qualquer um, mas que logo, logo, provocavam uma sensação de desprezo pela figura. As pessoas nas mesas ao meu redor comentavam sobre ela e após constatarem que era um mendigo se desinteressavam.

Que era um velho o dono das barbas parecia óbvio. Jamais vira aquela pessoa na praça e creio que ninguém a conhecia também. Era um ser estranho. Não fossem as barbas longas diria que era um ancião indígena há muito tempo expulso da vida selvagem e degradado na cidade. Talvez tivesse vindo lá do sul do Pará ou do Maranhão, onde se vê tanto índio mendigando, bêbados, pelas rodoviárias.

Acompanhei seus gestos. De vez em quando ele apanhava uma lata de alumínio do chão, ajeitava-a e pisava nela com força, até achatá-la. Depois a punha num saco que carregava às costas e ia e vinha embalando seu cansaço. Calculei que ele se aproximara dos quiosques no finzinho da tarde quando os frequentadores dos bares surgiam para suas confabulações habituais. Certa hora ele se aproximou de uma mesa onde estava um casal bebendo cervejas em lata. Muitas delas já haviam sido consumidas e, amontoadas, tomavam a forma de pirâmide. Ele chegou devagar e pediu as latas vazias com os olhos. O rapaz o encarou e jogou uma lata no chão. O velho abaixou-se para pegá-la, mas o rapaz o empurrou sobre umas cadeiras de plástico, rindo de um jeito antipático e covarde. A moça que acompanhava o valentão repreendeu-lhe nervosamente, pagou a conta e foi embora na frente. Tentei ajudar o velho a se levantar, mas ele se desvencilhou de mim, atravessou a pista e sumiu.

A lua minguante surgiu como um imenso olho de cachorro dentro de uma nuvem negra e a maré subia, subia, arrebentando o muro de arrimo, o último anteparo de uma enchente ameaçadora. O vento intenso parecia orquestrar o bailado das águas, vigoroso e circular, provocando frio. Eu não duvidei que naquele momento e naquele pedacinho da cidade a natureza estava conspirando contra mim. Havia muitas luzes em toda parte, e eu estava ali ensimesmado, viajando em desilusões e lembranças amargas, esperando um tempo novo para mim. Sentia-me como uma roupa lavada e posta para secar no varal em dias de inesperados chuviscos.

De repente tomei um susto ao erguer os olhos. O velho surgiu na minha frente me encarando como se eu lhe devesse alguma coisa. Tinha o olhar severo e desafiador. Intrigado, pedi que sentasse e resolvi lhe encarar do mesmo jeito. Seu semblante foi mudando devagar até que sorriu. Então pude ver que seus dentes eram de uma brancura inquietante, mas ele tentava mesmo era falar com os olhos, numa comunicação inusitada que surpreendentemente eu compreendia. E foi “falando, falando em silêncio”. Pelos seus olhos dizia dos fenômenos das marés e dos ventos como um mestre em Geografia; falou do céu e das constelações como um velho astrônomo egípcio; dos homens como um santo e do coração como um deus que abre todas as portas para o amor. Enquanto “falava”, percebi que manuseava uma lata de alumínio com movimentos suaves, assim como quem modela uma peça de argila. E após tantas viagens imaginadas, que quase fizeram esquecer minha tristeza, o estranho homem se despediu e foi caminhando com sua sabedoria em direção à fortaleza de Macapá.

Ilustração de Fernando Canto.

Ficou em mim uma momentânea sensação de felicidade e a boca seca de vento e vinho. Mas logo voltaria aquele estado de amargura, de ter o coração fechado e um gosto de desamor e de abandono. Meus olhos apenas contemplavam o infinito. Foi então que ouvi o espocar de fogos de artifício e caí na realidade. Sobre a mesa estava uma chave retorcida feita de lata. Olhei ao redor, as mesas vazias. Um casal de garçons me acenava sorridente. Pensei no velho das latas, apertei a chave com força e uma sensação de paz abriu em meu coração para nunca mais se fechar para o amor. Olhei novamente em volta. O relógio do trapiche marcava meia-noite. Era natal e as luzes piscavam como meus olhos cheios de marés lançantes.

A Convenção – lindo conto de Natal de Fernando Canto

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Conto Natalino de Fernando Canto

O Centro de Convenções daquela moderna cidadezinha no interior da floresta era o palco de um evento religioso bianual da cristandade, de grande importância para nós, teólogos do Novo Olhar.

Após o grande processo de destruição ambiental do planeta ficamos espalhados pela terra sofrendo a ansiedade de vê-la reconstruída e fazendo a nossa parte. Levávamos aos mais necessitados uma nova forma de encarar o mundo e uma nova esperança para evitar os sofrimentos humanos causados pelos incontáveis desastres ecológicos ocorridos até em lugares onde nem se cogitava que eles pudessem acontecer.

Cientistas constataram a grande obviedade que a desgraça ocorrera mesmo devido a ganância dos detentores do capital internacional e o excesso de poder dos países ricos que tiravam a vida de milhões de pessoas pelo mundo afora, sem contar as vítimas de guerras causadas pela intolerância religiosa. Éramos poucos, mas a seriedade de cada um de nós fazia a diferença, aprofundada em detalhes interpretativos dos cânones universais contemporâneos e nos santos ensinamentos de Jesus Cristo.

Todos se esforçavam muito, participando de seminários e congressos pelo país, porque grande parte dos conhecimentos da nossa religião havia desaparecido ou queimado no mundo todo.

Ali, ao lado do grande evento, muitos acontecimentos ocorriam: feiras, espetáculos e exposições, como a de novas descobertas tecnológicas e de máquinas que respondiam perguntas sobre metempsicose e a natureza dos espíritos. Livros curiosos eram lançados e relançados virtualmente em telões, inclusive aqueles considerados sagrados que por séculos vinham intrigando a inteligência dos sábios com seus mistérios herméticos. Tumblr - AliensHavia debates intermináveis que abrangiam desde o pensamento de filósofos gregos sobre relatos de povos extraterrestres a absurdos que a contemporaneidade não conseguiu mudar.

Eu participava pela primeira vez desse encontro, e já dera minha palestra sobre a existência de Papai Noel Redivivo no Novo Mundo Amazônico e meu testemunho sobre isso em outro tema da programação, portanto estava livre de compromissos. Mas os debates continuavam em outros níveis. noelE eu fui guindado meio sem querer – e curioso – a assistir a um deles promovido pelos neoperipatéticos de Rinha, um convento de uma ordem sacra europeia. Chamou-me a atenção o denominado “Aristóteles e o Paraíso”, cujo tema central era sobre a localização geográfica exata do Jardim do Éden. Havia outro, muito singular, chamado “Dançarinos Aristotélicos” no qual se discutia sobre quantos anjos poderiam dançar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha. Os grupos de discussão seguiam um sacerdote-mestre sob as sombras das árvores na praça principal da cidade.

Aristóteles gozava de grande popularidade entre os sábios. Sobre ele corria a lenda da sua imensa alegria quando pôs as mãos em uma das penas verde-claras do anjo Gabriel, descoberta dentro de uma arca envolta em tafetá. Um grupo dizia que a partir dessa pena teria o filósofo reconstruído a pessoa do arcanjo. O grupo oposicionista, porém, suspeitava que a pena fosse proveniente da cauda de um periquito de asa branca, o que proporcionou um grande exaustivo debate entre os participantes. Após a discussão chegaram ao consenso de que a pena teria sido arrancada da asa do anjo na ocasião do seu aparecimento à Virgem Maria para anunciar a imaculada conceição. Presumiram que a própria Virgem Maria embrulhara a pena em tafetá, de modo que ela viesse a ser uma das sete maravilhas do mundo teológico. Para eles Aristóteles teria sido contemporâneo de Jesus.

Outro interessante tema de reverência religiosa que vi nesse encontro foi a respeito da unha de um querubim. Entretanto, o que chamou mais a atenção de todo o congresso bianual e que gerou a maior lotação no Centro de Convenções foi a maravilhosa descoberta arqueológica de um ataúde com acabamento em ouro e prata, onde estava ainda intacta, uma das costelas do Verbo feito carne.

Acho que aprendi muito com essa viagem. Os arqueólogos mostraram outras peças de grande valor teológico advindas de descobertas em expedições perigosas. Não era fácil expor seus nomes e conceitos profissionais e terem que viver em um mundo de fanáticos e ateus. Eles sabiam que como cientistas e religiosos ao mesmo tempo teriam dificuldades de mostrar as relíquias à sociedade e serem somente aplaudidos e reconhecidos.

Nesse meio os vulcões da vaidade explodem rápida e facilmente, e sempre há um lado invejoso e descontente. Mas não deixavam de demonstrar certa genialidade e coragem para afirmar suas convicções e prová-las. Foi muito difícil para eles, segundo seus próprios relatos, mas conseguiram encontrar um dos raios da estrela de Belém, que foi quebrado e guardado por um dos três reis magos que foram adorar Jesus em uma manjedoura, assim como a pequena garrafa de vidro, dentro da qual havia notas musicais, que teriam sido entoadas mais tarde pelas abelhas do Templo de Salomão, de acordo com as antigas escrituras não oficiais.

Mas juro pelos santos sacramentos que de tudo o que eu vi na convenção nada me impressionou mais do que as descobertas. Cometi o pecado capital da inveja, pois não consegui parar de imaginar o rei Baltazar em estado de delírio gozoso ao ver a epifania da estrela de Belém, ao adorar o salvador do mundo e a usar sua arte mágica para quebrar um raio e guardá-lo.
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Era tempo de natal e eu tinha que voltar logo para trabalhar nos preparativos da festa para as crianças órfãs da minha vila amazônica ainda em lenta recuperação ambiental. Elas estavam tão ansiosas como eu, ainda que não tivéssemos brinquedos. Contávamos apenas com a esperança e a bondade do Papai Noel. Fui embora com a humildade que cabe a um pobre missionário, saindo da civilização da cidadezinha para minha aldeia de crianças pobres e estropiadas, martelando o cérebro sobre como conseguir presentes para elas quando me deparei com um negro alto, vestido de túnica e turbante. Estava envolto em uma aura radiante.

Entregou-me um objeto dourado e disse: – Imagina e realizarás. E sumiu. Era Baltazar, o mago rei e o verdadeiro Papai Noel Redivivo das minhas pobres crianças que me dera a chave de um tesouro: um pedaço do raio da estrela-guia. Horas depois já refeito da situação olhei para as estrelas. Todas eram pequenas e brilhantes, e delas caiam ao meu redor centenas de brinquedos. Só pude exclamar: – Bendito é aquele que vem em nome do Senhor! Hosana nas Alturas!

P.R.I (Programa de Recuperação de Imagem) – Por Cleomar Almeida

Cleomar, o contador de histórias (e estórias).

Por Cleomar Almeida

Depois de alguns eventos recorrentes de mau comportamento por mim cometidos acabei sendo impelido a participar do P.R.I – Programa de Recuperação de Imagem. Este Programa essencialmente é voltado aos maridos que, por vez ou outra acabam, sem querer é claro, cometendo faltas consideradas quase imperdoáveis por suas “Conjes”, faltas essas que de forma nenhuma serão aqui listadas. Na verdade o motivo dessa postagem é dar conhecimento aos caros colegas do Programa e de suas implicações.

O programa basicamente é um misto de punições e restrições, dentre elas a obrigatoriedade de acompanhamento de novelas, no mínimo as três que passam a noite, de preferência sem muitas perguntas no sentido de entender o enredo. Ainda no item entretenimento, futebol e modalidades esportivas nem pensar, aliás, esqueça o controle remoto durante esse período.

Quanto à alimentação, no P.R.I. você come o que lhe for oferecido, se for oferecido, o que quase nunca ocorre, então prepare-se para cozinhar. Shakes e comida japonesa são praticamente obrigatórios em uma saída pra comer fora. O Shopping será seu habitat nessa fase difícil. Igrejas também serão usadas pra exorcizar este capeta que se apossa de você vez em quando. Perceba aí um ponto essencial no P.R.I. , se você estiver liso nem pense em participar do Programa, o gasto com comida, passeios, com coisas que inevitavelmente irão quebrar, esbandalhar ou misteriosamente sumir da sua casa lhe darão uma despesa extra.

Comportar-se bem na frente dos parentes da madame também faz parte do pacote, mas pode ter certeza que quando você for elogiado por alguém pela boa educação e prestatividade ela revelará os verdadeiros motivos de sua boa vontade com um belo “Tá assim porque fez merda, ta tentando se limpar comigo!”, nem pense em discordar dela nessa hora ou ela conta até o que não aconteceu, vai por mim.

Família do Cleomar.

Os filhos são sua responsabilidade absoluta, nem parece que saíram dela, você fez, você que se vire, reze pra eles já não usarem mais fraudas.

Sexo, esqueça, ninguém participa de um P.R.I e transa, é o alicerce fundamental do Programa e pode acreditar, esposas são excelentes em seguir protocolos. Concentre-se e siga na fé, talvez ao fim de tudo você seja compensado de alguma forma, não conte com isso mas milagres as vezes acontecem.

Enfim, como dito no começo, P.R.I é punição, restrição e um pouco de constrangimento pra te fazer ver o tamanho das burradas que andas fazendo. Sem tempo definido, pode ser rápido, demorado mas nunca indolor. Eu mesmo já passei por umas três experiências e lhes digo, evitem amigos, O P.R.I é terrível!!!!

A Reta linha do trem – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ela perdeu o trem, e então resolveu caminhar beirando os trilhos.

Escolheu entre o Sul e o Norte, e foi para Oeste.

Seu cão foi para o lado contrário da estrada, porventura farejara ossos, enterrados, entre as cruzes fincadas como homens de braços abertos em uma fila de mais de dez.

Fazia calor, ambos usavam, os cães não suam, são sem poros.

Ela escondeu um punhado de sal, atrás da orelha… repetia o que sua mãe, nas tardes em que colhiam café sob um sol de torrar sementes e gente. Faziam-no para espantar a sede.

O dia em que sua mãe morreu, ela a enterrou sob uma laranjeira, entrelaçou vários espinhos e construiu uma cruz que fincou no chão, sob um ruído de terra fofa e carne petrificada.

Fez uma trouxa com a roupa, com as palavras, e com a saudade extraída de um diário sujo e úmido, do qual lágrimas caíam enchendo de nódoas, a casa.

Sentou e esperou que anoitecesse. Quando a lua iluminou a estrada, incendiou a casa e afogou todos os retratos em um balde de leite. Por fim, exausta, adormeceu entre os animais.

Os gatos foram morar no que sobrou da casa queimada. Os galos, as galinhas, e os pintinhos subiram nas árvores e puseram-se a ensaiar voos cada vez mais altos, até que migraram para o Sudeste, onde cresceram como águias.

Ela e o cão foram em direção aos trilhos, que começavam em julho e, às vezes, transportavam os trens.

Muitas vezes pelos trilhos, passavam os ventos contando histórias de colheitas, juras secretas de amor, fim trágico de grandes paixões, rezas, choros, gritos irados, e maldições.

Vestiu-se toda de lilás e no cão fez listas negras em seu pelo marrom, puxou o seu latido por trás do ouvido, e o escondeu debaixo de umas folhas de urtiga, para que não incomodassem a noite que já tinha seus próprios sons para espalhar sobre as colinas e grutas esparramadas muito adiante deles.

Foram como em procissão. Ela cantava rezas. O cão apenas farejara as palavras mais doces, entre as mais ásperas e as engolia.

Para as que conhecia, abanava o rabo, para as desconhecidas, rosnava de um jeito tímido, erguendo o beiço superior até a metade dos dentes.

O trem não tinha vindo.O vento não havia vindo. Estava tudo calmo do lado de lá dos trilhos.

E do lado daqui muita chuva.

O cão sentou -se sobre as patas.

Ela sentou-se sobre as sombras deles.

O tempo todo era para esperar… o Vento…o Trem… Que voltasse o Sol. Que gritasse o Som.

Esperar até a unha dos pés, e das patas, crescer.

Nada havia o que fazer.

Até que fossem embora a chuva, a noite, a lua.

Como tinham ido… Ontem, antes de anteontem, antes, antes de antes, ali adiante dela e do cão.

Parecia ato de criar… mas era fim.

*Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite  moram os dias de Ontem’ – Rumo Editorial – Luiz Jorge.

Niver…Niver…Ponto…6.0 – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Alípio faz aniversário.

Alípio andou junto comigo pelas ruas arborizadas do bairro do Laguinho, quase todos os dias certa época, vindo da Escola Normal de Macapá, hoje IETA, pela Avenida FAB e outras que não me lembro.

Ainda na época do Rum Montilla e da promoção.

Beba Rum Montilla e junte os rótulos, seja sorteado, e viaje para a Copa do Mundo de Futebol no Chile- 62.

Separávamos na esquina do Bar Estrela do Laguinho. Ele ia em frente, eu quebrava para a esquerda na Av. Ernestino Borges, e o Eduardo, o Bico Doce – apelido dado por soprar uma flauta com muita destreza – descia para a Rua São José, no Igarapé das mulheres. Tadeu não.

Tadeu ficava em sua casa próxima ao Cemitério da cidade, onde a morte para nós, era apenas uma cruz, sobre um monte de terra fofa.

Conversávamos o ano todo sobre a matéria dada em aula, a prova, os professores, as festas nos Clubes da cidade, as meninas, ‘Os Brotos’, e o futuro. O futuro mais longe era nessa ordem.

Foto: G1 Amapá

Fazer os 15 anos, usar calça comprida 9ainda andávamos de bermudas), os dezoito anos, servir o exército através do Tiro de Guerra da Cidade de Macapá, território Federal do Amapá, e a Copa do Mundo, de 1970…tão longe…longe demais para tentar se escalar um time. Não tínhamos o fantasma da Revolução ainda por perto, e o barato era ouvir na Rádio Timbiras do Maranhão, a rádio novela Jerônimo…O Herói do Sertão, e assistir Domingo à tarde no Salão Paroquial dos Padres, o seriado do Cavalheiro Mascarado que servia de combustível para os comentários na escola durante toda a semana.

Um moço chamado Roberto Carlos gravara um Compacto Simples, e um jogador do Amapá, chamado ‘Palito’, havia ido treinar no Vasco.

Eu me preparava para ganhar a primeira calça comprida. Alípio ganhou bicicleta com garupa, e Eduardo ganhou um violino – que mais tarde ficou dependurado na parede do quarto, de Janeiro de 1965 até hoje.

Tadeu ganhou um violão e, canhoto, não inverteu as cordas.

Hoje o futuro pertence ao passado; estou em Osasco, de onde mando um abraço pelo Aniversário de Alípio que mora no Rio.

Tadeu continua em Macapá e Eduardo não viu estes múltiplos últimos anos, morreu em 1965, em Janeiro. Os viu por nossos olhos, afagou os filhos de cada um, por nossas mãos, e torce pela Copa do Mundo de 2014 no Brasil, pelos 50 anos da carreira de Sucesso de Roberto Carlos, pela Estátua de ‘Palito’ defronte ao Amapá Clube, pelo leilão dos Rótulos de Rum Montilla em Jamaica.

Coisas que nossa projeção de futuro não imaginou jamais.

Isso em 1962.

Quando Deus ainda não era brasileiro, nem o Papa…Argentino.

* Do livro de Contos “Defronte a Boca da Noite, moram os dias de Ontem”.

Bar do Redondo – Conto de Luiz Jorge Ferreira

De onde estou posso vê-lo. Cercado de uma meia dúzia de pessoas, as quais eu não reconheço. Esta trajando laranja, cor que me lembra Yellow Submarine. Fala muito gesticula como se apanhasse uma mosca branca no ar. Os outros mais velhos o escutam com atenção.

Olho ao redor e encontro a mesa mais próxima. Puxo a cadeira e sento. Alguém pede um violão. Talvez ele cante Irene. Adoro Irene, penso enquanto aceno ao garçom. Que não encontra o violão. Plagiando a Irene que conheci em Belém do Pará. Das palavras dos gestos e dos planos loucos de democracia plena. No meio da vigilância noturna da polícia política, em meio a Festa de Arraial na Igreja de São Raimundo. Pichando muros.

Igreja Matriz de São Raimundo Nonato, padroeiro do Bairro da Aldeia e a Praça do Centenário. Fotografia do acervo de Edenmar da Costa Machado.

O bar está quase deserto. Afora as pessoas que estão com ele temos um casal sentado perto do palco, um tablado mais alto que o assoalho uns quinze centímetros. Atores. Ela vestida de abelha e ele de rei. Provavelmente o Rei da Escócia. Provavelmente vindos de uma peça.

O pano que cobre a mesa de Caetano tem a figura do Zodíaco. Talvez ele role os dados.

Estalo os dedos para o garçom, um velho conhecido dali mesmo, eu um solicitador frequente de seus serviços.

Chico! Sai um Gim! Chico parece não me escutar. O bar está às moscas. Mas o ar parece pesado. E ainda são duas e meia da manhã. As cerejas que carrego amassadas no bolso da japona espreitam no fundo do copo. O palito espetado, balança como fosse pêndulo, sem Norte.

Arranco a cutícula do dedo mínimo da mão direita. Não ergo a voz receio gritar desafinado e chamar a atenção deles. Batuco os dedos na mesa como um ritmo Caribenho. Eles me olham e sem dar importância voltam aos seus assuntos. Bebem vinho do Porto.

Abro meu livro de Saint Exupéry e finjo ler. Caetano está de safári e sandálias. Amarra os cabelos com um cordão de rastafári. Finjo ler por que logo levanto para ir ao banheiro. E passo bem perto deles. Discutem Joyce. O monólogo. Um dia apenas de setecentas páginas.

Volto, eles já se foram. Vinte anos depois, em 1988, no dia 8 de Agosto. Volto aqui. Só. Com medo da noite. Não da polícia política. Dos assaltadores. O bar cedeu duas metades esquerdas, uma para a cafeteira americana que serve café com hortelã e mostarda e a outra parte para que guardem carrinhos de amendoim e de vendedores ambulantes quer entopem o centro da cidade, com suas guloseimas inúteis.

Sento à mesa descascada que parece eternizar-se ali. Chamaria o Chico, garçom para que me trouxesse um Gim. Mas Chico morreu. Tento estalar os dedos para chamar o que se esforça para entre as mesas muito próximas rápido para chegar aos clientes, mas nada. Os dedos já não emitem som quando os estalo. Tento batucar com eles um som Caribenho, eles se contorcem sem êxito. Sai um som desafinado e sem definição.

O garçom chega e peço um guaraná diet. Puxo o cachecol. Sobra um medo, filho da revolução, e da sua polícia política. Um tremular de mãos agiganta-se. Herança ganha do exílio e das torturas físicas e psicológicas. Tudo tem um leve sabor amargo, distante. Parece que só me contaram. Tudo agora é historia com h minúsculo.

Bebo todo o copo de guaraná com duas pílulas coloridas. Esqueço o ritmo dos dedos. Parece que passo pela mesa. E ainda Joyce e agora outros que nas palavras que abortaram, perpetuaram-se, inclusive ele.

Vou ao banheiro devagar, entro retiro o tampão da sonda e solto a urina politicamente correta. Olho para a sonda alaranjada. Olho no espelho enquanto lavo as mãos. Há um senhor de idade refletido no espelho. Talvez seja ele que se lembre de Irene e não eu.

Vinha aqui para curtir a solidão desde a época do cursinho. Hoje parece que ela nunca deixou de ser minha. Vinte anos depois imagino que este lugar ainda esta lotado. Mas não está. Volto, eles já se foram. Todos se foram. Inclusive Irene de Belém do Pará, a que fingia me namorar encostando-se à parede enquanto pichava. Abaixo a Ditadura.

Eu saio como entrei. Calado. Nem a garoa, me acompanha. Na banca. Há uma manchete no jornal que diz que Fidel Castro foi operado. Está solitário, doente, e muito mal.

Até ele?

Luiz Jorge Ferreira

*Do livro de Contos “Antena de Arame” – 2° Edição 2017 – Rumo Editorial. São Paulo. Brasil.

As negras velhas ( Por Fernando Canto )

Conto de Fernando Canto

Caixas do marabaixo retumbam/retumbam em círculos movimentados de pés descalços/negros pés. E saem das línguas vermelhas os gritos guerreiros e as canções improvisadas da guerra que nunca houve. A valentia é substituída pelo insaciável apetite de voar sem asas para mitigar dores ancestrais, enquanto rosas brancas, açucenas e papoulas enfeitam a negra beleza dos cabelos esticados em rolinhos de plástico… E sob os olhares críticos da geração megahair.

As caixas retumbam/retumbam e dobram incansavelmente ao meio de odores/suores/toalhas e saias rodadas que combinam brancas anáguas bordadas de renda.

O Marabaixo prossegue em seu curso no arrasto dos pés pela roda, em cursos passos à frente e um passo cansado atrás.

As velhas do Marabaixo cochicham segredos e riem dos seus casos antigos que ora se sentam nos bancos corridos dispostos pelo salão. É lá que as histórias completam a memória, acertam verdades e crenças e extinguem resquícios de quizílias familiares.

No gesto de encher a colher de caldo e levá-la à boca, na satisfação do gole da batida de gengibre e na algazarra de enfeitar o mastro com galhos de murta, está a poesia do povo e a fortaleza do sangue um dia pisado e magoado por grilhões e calcetas.

O diabo está solto no tempo do Marabaixo. Dizem que quem for podre que se quebre ou que se pegue com o Divino, aquele do Espírito Santo.

O diabo está solto, sim. Mas as negras desdenham dele e gargalham em seus sorrisos falhos, sabendo que o que fazem é bonito, é autêntico e dá uma saudade imensa…

* Publicado no livro EquinoCIO, de 2004.

Fotos encontradas nos blogs Visite o Brsil, Porta Retrato e Amapá da minha Terra

Flip – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Jesus não foi porque estava com catapora. Eu, Elzimar, fui. Fui arrastando o chinelo surrado cheio de calo dos meus calos. Saí pela porta como se fosse para o fim do mundo e eu ia só noutro povoado visitar nossa avó. Desci os degraus de terra batida. E pensei que hoje ia demorar mais de meia hora. E eu ia perder a hora do almoço.

A mesma lombrigueira roncando na barriga. Acima o sol tímido. Abaixo os toquinhos de capim furando e ferindo. O nosso cachorro me seguiu até a curva das grandes Oliveiras.

Depois se distraiu e começou a correr em círculos perseguindo a cauda. Eu chorei um pouco, por ir sem companhia. Mas lá adiante eu é que me distraí jogando pedras em uns pássaros pretos e correndo como se fosse alcançá-los e mais tarde corri para esconder-me de uma pancada rápida de chuva. Chuva de verão.

Tinha 10 anos. Jesus tinha nove. Semana que vem, vamos visitar o templo. Abaixei-me, enchi a mão de terra que atirei para cima para vê-la se espalhar com a lufada do vento que soprava trazendo um cheiro de camelo. Tenho saudade de quando morávamos à beira do mar aonde colecionávamos conchas, aonde costumávamos passar horas ouvindo o mar falar conosco. Ele traduzia o que o mar dizia. Coisas como: “Estou com frio. Estou muito azul hoje”.

Adorava quando o primo chamava para que nos acariciássemos. As pequenas baleias que vinham até próximo à praia e se ele chegasse perto elas queriam lamber-lhes os pés. Havia também as tartarugas que se arrastavam até a areia para nos carregar e apostávamos corridas sobre elas ou íamos a passeio pelo mar e as ondas nos faziam voltar e caprichosamente desenhavam na areia nossos rostos.

Por diversas vezes o vira andar sobre o mar, correndo com as sandálias na mão. Desviando-se, os peixes pulavam por sobre meus ombros. Ou as algas que se prendiam nos seus pés como a adorná-los.

Dissipei meus pensamentos e comecei a descer a ravina em direção à escada de pedra que rodeava o pequeno desfiladeiro. Bastava atravessa-lo e já se avista a casa de vovó. Caso ele tivesse vindo com certeza estalaria os dedos e um par de águias nos içaria, e nos transportaria para o outro lado, poupando esta marcha cansativa por esta escada escorregadia esculpida nas pedras da rocha.

A mãe dele, minha tia, já o proibira de fazer estas coisas na frente das pessoas, mesmo escondido. Pois alguém poderia ver. Vovó também dizia: “Não, Não deve usar esta sua facilidade de lidar com as coisas para tornar menos difíceis suas tarefas. Quando está com sede, não deve fazer brotar água das pedras, quando está enfadado, não deve caminhar dormindo. Nem olhar o que vai acontecer daqui a alguns dias, por simples curiosidade, apenas fechando os olhos e se concentrando, E está terminantemente proibido de fazer reviver pássaros, cães, gatos, ou outros animais mortos, com peninha deles.”

“Isso – dizia ela – não é normal que as pessoas façam. E pare de voar para cima das árvores para apanhar os frutos mais maduros. E se eu ou sua mão ou seu primo ficarmos doentes ou nos ferirmos em alguma ocasião, não nos toque para nos curar, nem nos cicatrize”. Eu pensei porque eu não sei fazer isto. Somos primos. Embora algumas vezes tenha pedido para ele me ensinar. E ele tentasse. Certa ocasião me pôs a mexer as mãos para cima e para baixo sobre um corvo morto e em dois dias nada aconteceu.

Esculpiu uma vara de bambu e suado se abraçou com ela e me deu para que tocasse com força nas pedras e nada de brotar água. Mandou que eu passasse saliva como tantas vezes o fizera sobre uma borboleta e ela não ressuscitou. E dizia: “Pensa… pensa… pensa… pensa forte”. E eu pensava tanto que ficava com dor de cabeça e nada. No dia que tentei voar para cima de uma videira, e olha que era baixa, foi uma queda só. Não, primo. Desisto, eu disse. Não sei como você faz, vejo que é simples, não tem nem palavra mágica.

Então é isto. Abraçou-me sorrindo. Falta uma palavra mágica para você, primo. E se a gente inventar uma. Qual? Indaguei. Flip. Ele falou Flip. E eu, de repente, estava com um pé só em cima da videira. Titia nos viu e nos deu umas palmadas. Está proibido, terminantemente, de fazer qualquer uma das coisas que lhe proibi. Falou rispidamente. Inclusive com Elzimar, apontando para mim e dirigindo-se a ele. Até que fique um homem senhor da sua vida. Nem mesmo se curar pode, ouviu!

Ele a olhou em silêncio, com os olhos marejados. Vovó, quando me viu chegar sozinho, com cara de tristeza, suado, faminto, todo coberto de pó, perguntou-me: “Veio só?”. Vim – respondi. Jesus não veio. Jesus está com catapora.

* Do livro de Contos “Antena de Arame” – 2° Edição 2017 – Rumo Editorial. São Paulo. Brasil.

O NOIVADO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Tenho duas preocupações na minha cabeça. Hoje, 17 de abril de 1968. Delas, a primeira são as janelas da repartição pública em que trabalhei trinta anos. A segunda é sua certeza de que devemos viver o resto de nossas vidas juntos.

A primeira tenho quase certeza de que com um pouco de boa massa de vidraceiro contornarei o problema. Estou aposentado, mas não perdi o raciocínio. É certo que me encho de sono quando vejo o mar se arrebentar a cada minuto contra os arrecifes. Ele é como eu. Tudo o que fiz, repeti tantas vezes que decorei.

Decorei o caminho para Olinda. A burocracia do serviço público. Meus conhecimentos sobre insetos. A conversa semanal com meus amigos reunidos neste apartamento falando sobre quadros geométricos, e nuances de cores do nanquim.

Tenho a impressão que são duas e quarenta e cinco da manhã. Com você não sei como resolverei sem o som da marcha nupcial: tamtamtam…tamtamtam…tamtamtam…

Volto ao banheiro para dar descarga no vaso sanitário. Um cheiro de rato podre me aborrece desde a semana passada.

Rato podre no décimo terceiro andar?

Há duas semanas tenho lhe magoado com o meu “não” ao nosso casamento. Penteio o que resta dos meus cabelos com um pente largo sem cabo. Pareço o meu pai no espelho.

E você minha mãe.

E você, quando desce para ir a praia comigo ou para irmos ao Supermercado, ainda me segura pelas mãos, e puxa meus sessenta e quatro quilos, nestes um e setenta e cinco de altura, como se eu fosse a sacola que trazemos sempre abarrotada de latas e vidros. Nao gosta de me deixar ir a rua sozinho, pois diz que eu atraio formigas.

Sempre esquece meu aparelho descartável com que aparo os pelos brancos de uma barba mal resolvida, arruma minhas meias em pares trocados, e entope o ralo do banheiro com o sabonete amassado. Para que formigas não entrem pelo ralo e procurem minhas roupas , que eu espalho pelo cantos do apartamento.

Olho meu terno de Gabardine, vejo uns pontos puídos aqui, e ali. Vejo formigas. Estou na repartição.

Não vou retira-lo do corpo. E ficar de camisa social. Deve ter algumas formigas, pela roupa, desconfio pelos buraquinhos feitos no tecido, aqui e ali…

Mas como poderei deslocar a enorme flanela que protege minha escrivaninha para subir e retirar o vidro da janela mais alta.

As mangas apertadas do Paleto me impedem amplos movimentos.E se o vidro cair? Já não se fazem mais vidros deste padrão, desenhado, uma Deusa e um Fauno.

Hoje daqui da janela, do decimo terceiro andar. Estou me demorando mais do que o costume, olhando longe a espuma do mar. Venta muito.

Você insiste há vinte anos em casar, ter filhos e esperar netos que entrem correndo pelo corredor com os sapatos sujos de areia. Vejo-a balançando lentamente, na parede sua sombra projetada pela luz mortiça da sala, parece o movimento das aranhas, mas são suas pernas sincronizadas com as sombras que elas projetam.

Quer ter filhos, mas temo que você não resista a uma cesariana. Afinal tem duas pontes de safena, e uma perturbação espiritual que se manifesta quando diz enxergar Nossa Senhora de Lourdes lá no canto esquerdo da sala.

E se eu lhe levar embora desta redoma de vidro em que lhe tranquei há dois meses sem comer e beber, só para tomar jeito?

Quem colocará massa de vidraceiro nos meus ouvidos quando as formigas invadirem Recife.

Luiz Jorge Ferreira.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial – 2016

O Quadro – Conto de Luiz Jorge Ferreira

 

Conto de Luiz Jorge Ferreira

De Lisboa a Londres fui andando.

A nado fui de Belém a Macapá. Voando fui de João Pessoa a Quixadá. Hoje neste apartamento pequeno em que as paredes, pintadas de roxo, têm muitas manchas amarelas provocadas pela umidade Amazônica. É que sei que o tempo passou, enquanto eu calçava e descalçava os sapatos surrados. Manchou-me também.

Hoje corro descalço, olhando de suas janelas que dão para a Av Ernestino Borges, as da frente. A da cozinha, abrem-se para a Rua Iolanda Marcucy. A do banheiro, dela se vê a Rua 14 de Março, e a da cozinha tem a paisagem da rua Cel Lisboa, com o telhado descorado da casa do Braz.

Estou em meus oitenta anos. A cabeça já funciona aos solavancos e os cabelos, estão úmidos, produto desta fina garoa, que teimosamente chove sobre mim. Ela me abriga a usar permanentemente um guarda chuva aberto, mesmo dentro do apartamento.

Caminho devagar, entre os dias e as noites. São seis aparelhos de televisão ligados, cada um em um canal. Oito rádios sintonizados nas oito maiores capitais do mundo que enchem a casa de um barulho estéril de Mandarim, Russo, Árabe, Japonês, Hebreu, Grego, Inglês e Italiano. Tenho dois sois, um amarelo e outro castanho, que se reflete em um jogo de espelhos, que dependurei entre a cômoda e a estante cheia de bíblias sempre movimentadas as suas paginas por um amontoado de ventiladores, que mantem a temperatura da sala quase meio grau abaixo de zero.

Caminho devagar entre as esculturas Maias e Incas que coabitam comigo na sala, entre cabeças empalhadas de orangotangos e chimpanzés. Por isso perco com facilidade meus chinelos. E quando vou pé ante pé para o local em que guardo meus discos e os ponho na vitrola em trinta e oito rotações por minutos rangem as tabuas do assoalho.

Fazem dueto com os estalos de minhas articulações, quase enferrujadas. Ouço Mario Lanza em um dueto estranho com minhas próprias barulheiras. Abro as janelas muitas vezes e o ar de fora bate na minha própria umidade e volta criando um pequeno ciclone que apelidei de “Equadorzinho”.

Um dia lendo uma das dezenove Enciclopédias e fazendo cálculos com uma régua fisiogeográfica percebi que os trópicos de Câncer e Capricórnio cruzam-se aqui, talvez por isso, este prurido que me castiga determinados dias do mês, e que me fez ficar amigo de uns pelicanos, que também se coçam.

Eles pousam na janela, aquela que abre para a Avenida Ernestino Borges, em alguns dias do mês. Comecei a morar aqui quando fiquei viúvo. Ela morreu e deixou um enorme vazio que preenchi com garrafas de Rum e desenhei sua silhueta.

Para formar o par de peitos foram necessárias mais de cinqüenta garrafas. Era uma mulher abastada que deu-me dezoito filhos e pretendia dar-me mais se não se houvesse tocado fogo lixando tanto as unhas. Quando fiquei só pretendia mudar-me o mais cedo possível, mas a amizade com as águas vivas do lago do Ibirapuera e a admiração pelas borboletas do Pacoval foram prolongando minha estadia.

Hoje sou parte deste Quadro. E olhando a pintura de um quadro feito por Salvador Dali, dependurado no vão entre a porta do nosso quarto e o inicio da escada que nunca subi, nem sei aonde vai dar. É que percebo que envelheci.

Não tenho mais vontade para trocar de roupa e agora me cubro, com pelos espessos e longos cabelos, que pouco molho, mas estão sempre úmidos.

Como muito pouco e durmo quase nada. Quando a saudade aperta abraço-me a imagem dela feita de garrafas e assim fico por um tempo.

O que tem me cortado demais o peito e o púbis. Mas eu não ligo. O que me incomoda são os filhos. Estes que estão empalhados pelo corredor entre as cabeças empalhadas de Orangotangos e Chimpanzés.

Amanha irei para Osasco aonde enterrarei o Quadro.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial II Edição – São Paulo – 2017.

Oníria – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Eu encontrei com ela descendo a rua em direção ao Campo dos Escoteiros. Vinha lá do fim do bairro do Laguinho, de saia preta, tranças no cabelo, boca levemente pintada, um cheiro de perfume patchuli, não me lembro se descalça. Caminhava indolente. Passou por mim e seguiu. Eu a olhei disfarçadamente.

Depois troquei de mão a sacola cheia de goiabas que levava para casa e atravessei para o outro lado da rua, seguido de perto pelas formigas. Subi as escadas e vi minha mãe lá no fim do quintal. Escrevia, talvez copiasse um texto de um papiro aberto sobre um tabuado. Riscava com a ponta da faca o tronco de uma árvore de ingá. Mãe estava de azul, eu estava azul e as goiabas ainda estavam verdes. Goiabas que eu apanhara na casa de Dona Ercília naquele mesmo dia onze e quinze, antes de encontrar com Oníria, que fingira não me ver.

Lá no fundo do quintal, mamãe escrevia no tronco, curvada sobre um dos ombros. Escrevia e lambia a seiva que escorria dos golpes aplicados no tronco do lado que a sombra do sol coloria. Parecia embriagada. Às vezes parava de riscar e punha-se a dançar, depois cansada ficava de cócoras. Eu estava muito cansado para comer, beber água, dormir, caminhar, subir na rede, deitar, fechar os olhos, respirar.

Então resolvi morrer.As formigas trouxeram as goiabas e com elas entupiram minha boca.

À tarde trouxe Dona Ercília, com outras goiabas que se avolumaram pela casa toda e mais de noite Oníria chegou ainda de tranças, agora quatro, um cheiro de Água de Cheiro do Ver-o-peso, nua em pelo, para o espanto dos que tomavam café e comiam pão torrado.

Ela deitou sobre mim quente como um forno de carvão, cheia de formigas.

Minha mãe veio correndo e nos separou, colocou-nos de castigo ao lado das formigas que empilhavam os pingos de chuva, os talos de goiabas e as lágrimas dos que tinham vindo chorar.

Já era sábado quando as formigas foram embora, levando as goiabas.

Minha mãe começou a contar estória de encantamente e gente do fundo, duendes e caiporas.

Eu estava febril, queria beber água, e comer fungos, bolores e semente.

Logo sarei, bebendo muito chá de sumo de ingá. As goiabas que restaram apodreceram e fizeram nascer larvas de moscas e minhocas.

Foi com elas que me criei. Quando comecei a voar fui ter com Oniria. Agora não esperei que passasse.

Esperei que voasse à frente de toda a sua colônia que gritava bem alto, seguindo-a: Rainha … Rainha …

* Do livro Antena de Arame – Rumo Editorial – Primeira Edição – São Paulo – Abril de 2016.