Quarto Degrau – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Depois que nos mudamos para aquela casa. Bastava cessar a chuva e eu ouvia o barulho de Zig.Zig.Zag.

Ouvia por quatro vezes. Depois parava. Eu saia do meu quarto meio com medo dentro dos meus seis anos. Ia até a cozinha e olhando na direção da escada que levava ao andar de cima. Estava lá uma esfera luminosa zig zig zag deslizando com ruído no quarto degrau. Eu das primeiras vezes fiquei espantado. Depois já me aproximava dela. Era esférica e tinha um orifício no meio. Eu enxergava–a com dificuldade. Mas mesmo assim conseguia ver que havia imagens no centro do orifício. Depois ela sumia e sumia com ela o barulho.

Não contei para ninguém. Nem satisfiz a curiosidade de olhar no centro da esfera e ver o que eram aquelas figuras ali. Que dava para nota-las, dava, mas não dava para distinguir. Mesmo eu dobrando os óculos de vovó, para por as duas lentes em um olho só.

Mesmo assim. Eu tinha medo de aproximar meu rosto da esfera luminosa.

Meses depois meu pai que era Gerente do Banco Moreira Gomes em Macapá.

Foi transferido para Fortaleza.

Passaram-se anos. Eu formado em engenharia volto a cidade á trabalho. Como cresceu. Quase não a reconheço.

Hoje eu resolvo ir à casa de uma colega de equipe para um encontro e já meio atrasado tomo um táxi.

Pode me levar a rua Jovino de Noa, a altura do 515? – É pra já, responde, o motorista.

Começamos a rodar. Estou ansioso. Parece que estou apaixonado, ela interessou-me demais.

De repente o táxi entra por ruas que me levaram a infância. Lembranças felizes.

Momentos inesquecíveis junto com meus pais, agora já falecidos.

Peço que ele diminua a velocidade.

Foto encontrada no blog Porta Retrato

-Olho o colégio que estudei. Olha a praça dos Escoteiros. Quantas pipas empinei aqui.

O motorista sorriu.

Aqui nesta praça ganhei esta cicatriz.  Apontei-a sobre a sobrancelha direita.

De repente surgiu o esqueleto de uma casa já meio demolida. Eu já morei ai. Disse-lhe.

Que vão construir? Perguntei. Um templo, respondeu.

Pare um pouco. Vou descer um momento. Vou entrar um pouco nestas ruínas.

Ele parou na esquina. Debaixo de um foco de luz da iluminação publica. O que restou da casa estava do outro lado da rua em total abandono.

Não se demore disse. Este lugar é bastante perigoso.

Atravessei meio correndo.

A casa estava ali. Fora a ultima moradia comum a meus pais e meus avós, antes de irmos para Fortaleza.

Apesar de estarem derrubadas algumas paredes. Eu ainda conheço você, disse. Conheço bem ainda seus cômodos. Aqui era a sala. Bem ali ficavam os quartos, o banheiro, a cozinha.

Estava muito escuro. A placa da construtora defronte da casa quase totalmente demolida aumentava a escuridão e era uma construção de responsabilidade de nossa Construtora.

Que coincidência. Pensei comigo.

Parece que o táxi buzinava. Chamando-me.

O lugar esta escorregadio. Quase levo um tombo e que choveu fininho há pouco.

Das poucas coisas ainda de pé encontro à escada a minha frente, suspensa no ar.

Agora ela não se encontra com o andar de cima. Vou ao quintal não há mais a porta, vejo o cajueiro outrora pequeno, agora enorme.

De repente ouço um zig zig zag que me assusta um pouco. Retorno à cozinha pulando por sobre monturos de paredes derrubadas.

Esta lá brilhando a esfera luminosa. Parece que me esperava. Olho seu movimento zigzagueando de um degrau para o outro ate parar no quarto degrau.

Agora a vejo melhor. Estou usando uso óculos. E com eles posso vê-la é de uma luminosidade quase vermelha, brilhante, com um orifício no meio.E neste meio alguma coisa como que se mexe.

Pulo por cima dos pedaços de madeiras podres, espalhados pelo chão e me aproximo cada vez mais.

Ela não foge de mim zig zig zagueia e me espera.

Agora meio apoiado na própria escada, olho pelo orifício do centro.

Há uma figura masculina posso perceber pelo traje. Andando, de costas para mim.

Há um carro estacionado, é na direção do carro que ele caminha, posso vê-lo bem. Presto mais atenção sem me preocupar com a proximidade dos meus olhos, com o orifício da esfera luminosa. Chega um novo vulto, é outro homem.

Não consigo distinguir bem as feições. O que chegou por ultimo esta armado, mete a mão no bolso do primeiro, retira alguma coisa. Brigam um pouco.O homem armado atira varias vezes. Não acredito pareço sentir em mim os tiros. Ele corre. O que estava indo para o carro é atingido cai de costas. Não consigo ver seu rosto. Agora quase encosto os olhos no orifício de bola luminosa.

De repente sai outro homem do carro pela porta do motorista e se dirige ao que esta no chão Toma-lhe o pulso e parece gritar. O outro deve estar morto, pensei.

Então vira o corpo caído. Meu coração sobressalta-se. Foi um assalto.Eu vejo por fim o rosto nítido do morto no chão. Sua feição jovem, a meia barba, uma cicatriz sobre a sobrancelha direita, os óculos caídos no chão sob a luz mortiça do poste. Agora posso vê-lo nítido.

A esfera luminosa começa extinguir-se, não antes dos meus gritos

Ele.- Sou eu! Ele.- Sou eu! Ele – Sou eu.

Luiz Jorge Ferreira

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

POSE – UM CEGO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

POSE – UM CEGO

Um cego olhando de longe o horizonte me viu. Eu estava com um casal de andorinhas nas mãos. Quase neste instante, choveu. Uma chuva suja. Minha casa ficou toda molhada encolheu. Pedi a um homem que eu conhecia de nome, mas não lembrava de onde, que fotografasse de frente e de perfil meus retratos infantis dentro do quarto de dormir que eu via dali sob a pata traseira de um cachorro. Ele preferiu ficar com o osso do animal e fugiu.

Defronte onde estávamos, um sol enorme queimava o chão. Acendia baganas de cigarro e espantava os passarinhos para o céu. O cego veio se aproximando. Cantava ele um canto nordestino meio baião, que nem falava de seca nem de chuva inundante, mas falava de cores e tons, de cheiro e sons, de sorrisos e gargalhadas. “- Dê-me a máquina fotográfica. Quer fotografar com arte seus retratos de menino?” Pressentiu que afirmei sim com a cabeça. As andorinhas subiram na minha cabeça. Pretendia proteger-me da chuva, fazer um ninho ou alçar vôo. O cego, com a máquina na mão, se pôs e me mandou fazer pose.

A chuva cavou um buraco que engoliu a casa, a rua, a cidade, os pontos cardeais, duas festas de aniversário, o galope de um cavalo e eu. As andorinhas nunca chegaram ao céu. O cego está lá até hoje esperando. Pensa que ainda eu faço pose.

Luiz Jorge Ferreira

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

 

Orgulho: conto da escritora amapaense Alcinéa Cavalcante integra antologia lançada no Museu do Louvre, em Paris (FRA)


O conto “La Pierre enchantée” de autoria da poeta, jornalista e escritora amapaense, ela é imortal da Academia Amapaense de Letras (AAL), além de querida amiga deste editor, Alcinéa Cavalcante integrou a antologia “Les Plus Belles Oeuvres de ce Siècle”, lançada na última sexta-feira (20), no Museu do Louvre, em Paris (FRA).

A publicação também será lançada nesta terça-feira (23), no Museu do Perfume, na cidade de Marrakesh (MAR).

“Les Plus Belles Oeuvres de ce Siècle” é a segunda antologia em francês, editada pela Divine Académie, a publicar as obras de Alcinéa. A primeira foi “Ainsi écrivent les brésiliennes”, lançada em 2015, no Salão do Livro de Paris.

Além destes feitos, a querida escritora teve seu conto “A pedra encantada do guindaste” publicado na Antologia “As Melhores Obras deste Século”, em 2017. O mesmo escrito também faz parte das publicações antologia “Vozes Portuguesas”, do Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Lisboa, que será lançada dia 26 de maio do ano passado, em Odivelas (Portugal) e Antologia “Lindas Lendas Brasileiras”, de 2014.

Só orgulho da querida amiga Alcinéa.

Alcinéa é “PHO – DA”! Assim mesmo, com PH, silabicamente e em caixa alta. E esse foi mais um de seus feitos. Além disso, é uma das melhores jornalistas do Amapá. Tenho muito orgulho de ser seu amigo. Meus parabéns à escritora, que representa a literatura do Amapá nacional e internacionalmente. Orgulho de ti, Néa. Parabéns!!

Elton Tavares

A HORA DA DANAÇÃO – Conto porreta de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Depois de vencer sete eleições consecutivas para deputado estadual, o escamoso líder do Partido da Estrela Negra, Maciel Fallabuonna enfim perdeu a disputa eleitoral naquele ano, possivelmente por causa dos inúmeros escândalos de corrupção envolvendo o seu nome.

Maciel tinha uma carreira impressionante pelo carisma que emanava até dos poros, desde que fora eleito como vereador pelo partido do governo nos tempos da ditadura militar. Seguia sempre os princípios de não ser nem oposição nem absolutamente situação, apesar de constantemente mudar de partido, de acordo com suas conveniências e as oportunidades históricas que se avistavam. Exerceu cargos mandantes na mesa diretora, sem se envolver diretamente com as decisões da presidência. Sempre tinha poder. Seus assessores chagavam a quase duzentas pessoas, porque sabia dividir a verba parlamentar de modo que todos ficavam satisfeitos. Somados os cargos de apadrinhados e familiares nos governos o número disparava e o colocava em vantagemimages (2) contra seus pares. Vencia sempre. Assim podia indicar quem quisesse nos governos que se aliava, principalmente na época das eleições ou depois que as águas da política baixavam, quando o poder executivo precisava do seu apoio, por meio de alianças venais veladas, dessas que a imprensa democrática jamais teria condições de descobrir. Sua assessoria era tão eficiente que até o presidente da Assembleia tentou comprar o passe do jornalista responsável pela divulgação das atividades de Maciel. Só tentou, porque Maciel segurou o seu passe com vantagens que só eles sabiam.

Maciel, contudo, tinha uma frustração. Nunca pôde ter filhos. Por ser muito ocupado também não se preocupara em adotar algucpi-pelicanoém ou mesmo pular o muro atrás de mulheres fáceis, que cercavam os poderosos e que notadamente usavam de truques sujos para engravidar de incautos e com isso garantir pensão em troca de silêncio. Nunca, porém Maciel se envolveu em orgias e escândalos sexuais. Mexeu com o jogo do bicho e outras contravenções penais; com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro, mas com mulheres, jamais. Era até respeitado no high society por causa disso. E sua mulher achava o máximo. Mal sabiam as pessoas que fora do Estado ele se metia com travestis em uma época que nem se falava em GLBT e políticas de diversidade de gêneros.

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Foi aí que começou a derrocada do deputado. Boatos começaram a circular e especuladores oposicionistas deflagraram um processo de degradação moral do deputado. Tudo começou mesmo quando um travesti do estado vizinho que migrara para Macapá o reconheceu no noticiário de TV. Foi só um pulo para a boataria deslanchar. Entretanto, a assessoria do deputado conseguiu desmentir tudo e levá-lo novamente à vitória para exercer seu sétimo mandato.

Embora tivesse vencido essa eleição, seria a última que ganharia, pois a dúvida, o preconceito e o machismo da população permaneceriam por mais quatro anos lhe espezinhando a moela, falando sobre seu gosto por homens ”montados” de mulheres. E uma vronaldo_com_travestiez no chão, diziam, o caldo não se junta nem com língua de cão sarnento lambendo e fuçando. Apelidos, ditados populares jocosos e discursos insinuadores fizeram o inferno do legislador, que mesmo ganhando muito dinheiro nos inúmeros processos por calúnia e difamação, não conseguia se desvencilhar das especulações. Ele sofria uma campanha pesada. Um vídeo em que supostamente ele aparecia em ato sexual com um travesti louríssimo foi disseminado na internet e isso concorreu bastante para que perdesse a eleição pela primeira vez, após quase trinta anos de atividade política.

Mágoas deslizaram ao largo de sua boa vontade de sempre fazer projetos de impacto para a melhimages (3)oria do povo do estado que ele tanto amava. ”Um baque no coração”. “Porrada seca”, dizia. E andava triste, consolado apenas pela compreensiva esposa estéril. Chorava também por não ter filhos para continuar sua descendência política, sua “dinastia”, falava. Se a sorte lhe negara isso, a mente invejava seus pares e adversários que já haviam colocado os filhos nas trilhas aparentemente fáceis da política. Todos eram assim: contra o nepotismo, a corrupção e as injustiças sociais, irreverentes, lutadores e ideólogos. Depois se eximiam dos propósitos iniciais, sucumbiam ao dinheiro e se lançavam aos cães do mando dos mais poderosos.

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Aos ccanstock25890860inquenta e três anos, abatido pelos escândalos de corrupção e envolvimento em outras práticas criminosas, Maciel prostrou-se em uma depressão inédita em sua vida ainda jovem e saudável – produto da prática da musculação diária na academia instalada em sua mansão. Rico, mas sem o poder que lhe acompanhara a vida toda, gastou uma chuva de dinheiro para a cura dessa doença contemporânea.

Conseguiu se sair dela depois de longo tratamento e algumas perspectivas de voltar à política, dado o rol de informes que poucos ex-colaboradores lhe passavam pessoalmente, pois detestava ler jornais: uma fobia adquirida no poder quando sua assessoria só lhe passava clipes diários.

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Com o tempo voltou a ler tudo o que via pela frente, até que um dia viu uma notícia diferente: um concurso de melhor velório, em uma grande capital, promovido por uma revista de circulação nacional. Achou estranho, porque nem sabia que era comum postarem fotos de enterro de famosos na internet, de velórios glamorosos de famílias ricas e de personalidades do mundo da política. Era o culto à morte dos não-heróis. O capitalismo achou um outro nicho para driblar a crise e armazenar chuvas de dinheiro. Virou moda. A indústria de maquiagem para cadáveres se desenvolveu rápida e oportuna, assim como os serviços de decoração, floricultura, buffet e arquitetura moderna para túmulos e santuários, que também chegaram download (5)rápidos em sua cidade. A especulação tomou conta dos cemitérios e os ricos chegavam a comprar os pequenos lotes ao redor dos seus para erguerem capelas, templos e campanários climatizados, que chamavam a atenção e faziam a alegria dos frequentadores mórbidos e da rapaziada gótica. A Prefeitura urbanizou os campos santos, contemplando-os com linhas de micro-ônibus e praças de alimentação. Certos lugares tinham a concessão de cobrar ingressos para visitação, tanto era a sofisticação e a diversidade de atrações desse mercado.

download (6)Visitantes andavam de elevadores pelos subsolos onde jaziam os sarcófagos construídos ao estilo faraônico. Viam-se os corpos intatos das personalidades famosas, muitas das quais haviam sido enterradas em rituais patrióticos. Havia túmulos de diversos estilos. Alguns corpos ficavam em esquifes nos patamares um pouco abaixo do obelisco municipal que tinha em todos os cemitérios públicos, monumento obrigatório por Lei. O público era transportado por elevadores panorâmicos, por isso tinham o ingresso mais caro. Também havia a seção museológica dos mortos em acidentes trágicos que recebia vista de milhares de romeiros de todo o Estado. Eles digitavam em tablets ali mesmo vendidos, os agradecimentos pelas graças alcançadas pelas curas de suas doenças, ao mesmo tempo em que desejavam estar expostos juntos a seus santos.

De acordo com as suas religiões as pessoas também pagavam com peças de ouro um minuto de aconchego com as asas eletrônicas e confortáveis de anjos, querubins, serafins, potestades…. Cada categoria tinha um preço.

A noite era o período de maior visitação. Antigos darks e grupos de heavy metal faziam aARGENTINA-CERATI-DEATH-FUNERAL-GPN1RDJPR.1presentações no anfiteatro cantando uma mistura de gospel e protesto contra a vida. As encenações punham a morte de um longo vestido vermelho brilhante descendo ao palco com uma enorme foice de luz. A figura jogava de repente a foice e emergia no meio do público alucinado disparando um fuzil russo automático. Ninguém se amedrontava, pois se sabia que era a hora da morte, a hora da danação.

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Com o barulho do disparo na mente, Maciel saiu do transe, da concentração, meio tonto ainda. Pediu a um colaborador os detalhes do concurso de túmulos. Nada mais lhe restava, senão a morte e um enterro digno de um ex-parlamentar atuante.images (6)

Como o respeito pelos mortos mudava de configuração nestes tempos, ele apostou consigo mesmo que ganharia o concurso, mesmo que para isso tivesse que morrer. Começou a planejar suas exéquias contratando um arquiteto italiano especialista em cemitérios. Sua fortuna acumulada lhe permitia sonhar com o primeiro lugar em todo o Brasil. Bastava-lhe morrer. Antes, porém, escreveria sua biografia, onde a defesa das coisas a ele imputadas seria o foco principal. Morreria, ora se morreria. A vida não lhe interessava mais. Logo ele que nunca tivera tempo de se converter em uma religião porque fora de todas nas suas conveniências políticas em busca de votos. Por isso sabia os rituais.as_mulheres_choradeiras-E

Ao se preparar para a glória definitiva Maciel inventou uma liturgia que era a mistura de vários ritos de encomendação das almas de religiões diferentes. Mandou imprimi-la para que os presentes recitassem desde a transladação do corpo no carro de bombeiros da Assembleia Legislativa ao cemitério, quando os discursos e a pomposidade explodiriam sobre as suas antigas eleitoras previamente bem trajadas com as cores do seu último partido político, e bem pagas para serem carpideiras e mistificadoras da sua obra.Quando-eu-morrer-por-Sponholz1

O ex-deputado escolheu um modelo de se matar que não viesse a agredir ou mutilar seu rosto e estaria barbeado e maquiado conforme suas instruções. No dia marcado e tudo em segredo, sua mulher estranhou um certo entusiasmo, depois da depressão que o atormentava. Terminou descobrindo o plano mórbido. E ameaçou contar tudo à imprensa. Maciel, no entanto, estava irredutível e decidiu morrer de qualquer maneira. Dominou a frágil esposa e a prendeu num quarto.

Seu plano seguia de acordo como que previra, inclusive com a inscrição do seu túmulo no concurso da revista. Partiu para o ato final. Na sua hora da danação os olhos esbugalhados de um doente depressivo, injetados de problemas e de remédios “tarjas pretas”. Estava o deputado mortinho, obstinado no seu desejo de imortalidade em forma de monumento. Feneceria, cleao-cachorro-tumulo-rio-550_thumbonforme imaginou, congelado dentro de um freezer após se dopar com uma overdose de valium.

Seguiram as instruções deixadas, mas o deputado não ganhou sua última eleição.

Mercedes, encontrada e liberta, achou que seria um gesto desnecessário tanta pomposidade para o morto e resolveu economizar aqui na terra, preferindo um túmulo mais barato para garantir o seu futuro, já que a justiça iniciara o resgate dos bens acumulados do marido em seus últimos mandatos.

AZUL – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

O primeiro cavalo era o que trazia a cauda toda ensopada de orvalho. Do terceiro em diante, só insetos, restos de dia, pedaços escuros da noite e sons de puns de dragões. Para ela, presa a uma cadeira de rodas, era uma alegria ouvir o barulho da cavalgada e, mais ainda, adivinhar a ordem de chegada de cada um deles pelo tropel. Quando era menorzinha, caíra gravemente da bicicleta e machucou muito a coluna vertebral.

Desde então, não andava mais. Quatro anos, dos oito que possuía, acostumara-se a ser colocada próxima à janela e observar quase que diariamente a passagem dos cavalos. Quando eles não vinham, distraía-se observando o voar dos anuns lá no milharal, ou então quedava-se a escutar a conversa animada dos espantalhos medrosos da chuva, reclamando do sol e xingando as joaninhas que lhe causavam cócegas nas pernas.

Por isso, quando o primeiro cavalo parou para conversar com ela, animou-se muito. Fez amizade e deu lhe restos de bolo de milho que comera no café da manhã. Depois, apresentou-o aos anuns e mais tarde aos espantalhos. Uma tarde, quase foram pegos jogando baralho e apostando pétalas de girassóis.

Hoje, não amanhecera bem. Não conseguia comer e tinha febre. A noitinha, surpreendentemente, sentiu vontade de esperar os cavalos na frente da casa. Tentou com esforço levantar e conseguiu. Suas pernas haviam ficado leves. Foi como se flutuasse até o terreiro. Escutou o tropel. Eles já estavam chegando quando caiu da cadeira de rodas. Escutou o choro dos que ficaram dentro de casa. A que chorava mais alto era sua mãe. Mas nem se importou. Muito menos com os gritos dos anuns: “- Lá vai ela! Lá vai ela!” E nem com os acenos dos espantalhos. Montou no primeiro cavalo e saíram cavalgando. Podia ser que fosse longe, mas parecia tão azul…

*Luiz Jorge Ferreira é amapaense, médico que reside em São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).

A SUCURI – Conto indígena de Fernando Canto

 

Era ainda princípio de mundo quando Ianejar já havia criado os seres que mais tarde iriam compor o conjunto de animais sobre a terra. Todos eles tinham a mesma aparência, falavam a mesma língua e não mostravam nenhuma diferença nas suas práticas e conhecimentos da vida. Tinham música e flautas do turé para realizarem seus rituais, mas não possuíam cores.

Só a floresta tinha cor. Coube, então a Ianejar, durante uma grande festa, promover a separação entre homens e animais, para os quais destinou um espaço diferenciado para organizar, assim, a vida em sociedade. Na festa os homens e animais cantavam e dançavam, até que uma grande parte desses primeiros seres que dançavam caiu no rio e se transformaram em peixes, que passaram daí em diante, a servir de pasto aos homens. Outros viraram cobras aquáticas que continuaram vivendo no fundo dos rios, e só se comunicavam com os pajés, porque continuavam gente.

No local em que viviam havia uma enorme caverna sob uma montanha de pedra, onde morava um ser muito temido e que foi morto pelos humanos. Ao cair na beira do rio eles lhe abriram o ventre e extraíram seus excrementos, que eram todos coloridos. Então fizeram outra grande festa e se pintaram com as cores deixadas pelo ser. Não perceberam, entretanto, que no ventre do cadáver do poderoso ser eclodia o ovo de uma enorme sucuri que foi crescendo, crescendo, durante a festa que realizavam.

De repente ela surgiu afugentando os convidados que partiram voando para o céu se tornando os primeiros pássaros. Alguns se embrenharam em todas as direções da floresta e viraram caititus, antas e capivaras, veados e jacarés.

A cobra-grande jurou se vingar dos homens e de qualquer animal que se pusesse em sua frente, furiosa porque mataram seu pai primordial. E se foi na direção do sol poente, levando águas e terras até fazer sua morada em um lago escuro, de onde sai de tempos em tempos, quando uma estrela de cauda aparece no céu da noite. Ela vem silenciosa para destruir o que os homens construíram às margens dos rios, sejam aldeias, cidades ou fortes de pedras. E no seu caminho em direção à foz do Grande Paraná, para onde vai trocar de pele, vai deixando escamas sobre as construções que destrói na trajetória avassaladora de sua eterna vingança. É por isso, então, que para se protegerem de si mesmos e dos perigos da floresta, até hoje os homens só constroem suas casas umas juntas das outras nos lugares onde ficaram as escamas deixadas pela sucuri.

Mercúrio em Virgem – Por Mayara La-Rocque

Por Mayara La-Rocque

Já te disse que a noite é prenha e que só a lua transborda. Certa vez escrevi isso, lá atrás, talvez eu tivesse a idade de meu irmão ou um pouco mais. Acontece que esses ares me voltam à cabeça, os daquela época – hoje a de meu irmão e dos amigos dele. Era um tempo em que eu escrevia pelas paredes do quarto e me arranhava em pensamento pelas ruas. As ruas desta mesma noite. Já te disse que ela é prenha e a lua continua a transbordar. Tudo ainda me cresce e apesar das luzes cheias de gentes que ofuscam, dos sinos que tocam, dos festejos que comemoram datas imprecisas – ninguém mais se lembra da história, quando foi que tudo começou, se era mesmo um deus que nascia ou deuses que morriam, mas vejo que foi desde então – os calendários estão atônitos, os noticiários se repetem na frente das igrejas, das praças, no homem que trucidou a mulher que chamou de sua, no corpo dessa mulher de pele e vias-lácteas violadas.

Contudo, tem algo ali entre a curva das mangueiras e a beira do céu quase a alcançar Mercúrio por cima de minha cabeça e que traz por entre as esquinas a queda de uma estrela, o tempo dilatado das ruínas. Não sei bem o que é, mas me afronta a memória como ostra viva, se assemelha a algo que talvez eu tenha lido ainda hoje – não bem em verbo ou carne ressequida, mas tinha gosto de vida, era fresco como orvalho entranhando as narinas; muito menos era palavra o que li, mas sim, o que eu vi tomou corpo e forma dos reencontros que tenho tido entre leitura e solidão.

Tudo isso já te disse. Então, tu preponderas e até refutas, indignado, pra quê tanta solidão? E eu te digo que dela o mundo está vazio, pois que é sempre muita gente sozinha em tumulto, muita fala ao mesmo tempo aglomerada, muita boca lotada de secura, muitos olhares perdidos por todos os lados a procurar, uma procura que desvia a procurar, procurar, procurar o quê? Sem solidão, ninguém sabe.

Mas eu dizia que as ruas ainda vivem nos meus passos. É quase sempre onde me faço ou descubro um pensamento, um caminho ruminando em algum lugar que ainda não conheço. Eu sei, todo mundo carrega tristezas, mas me pergunto – ora, veja, quem! – quem, realmente se dá conta por si e sabe de sua tristeza? Está bem, está certo, acho que, no fundo, todos sabem. E apesar das luzes tremendo o barulho que sibila, esse embaçado que carregamos frente aos olhos – e que dói até nas costas, meu Deus, eu sei que dói – apesar desse a-pesar, existe uma noite que é prenha. Está fermentando lá embaixo enquanto vivemos aqui na superfície: eu tenho fome, preciso, comer, minha garganta está seca, tenho sede. O que é a sede? Tu perguntas. Agora! Diz, tu tens sede exatamente do quê? Não sabes. Não sei. Tenho. Temos. Quero, e sabemos, queremos sempre mais. Toda-via, Deus meu, tem vida debaixo da terra e sei que tu ainda podes observar, ela percorre o giro da lua – decapitando as dormências e nos acordando na entrada dos olhos os zincos, as pratas e os metais e também as pérolas ativas do sonho que de heras vem se formando por debaixo dos oceanos feito anzóis em suspensão; é enquanto olhamos a crista das ondas do mar que pescamos: a noite é sombra que reflete o brilho, movimento que vai parar nos olhos; a fundo, da ponta dos cílios também tem um oceano querendo jorrar.

No momento em que estou indo para casa, lembro que tenho que comprar pão, também o café e outras embalagens, os ditos descartáveis, os resíduos manufaturados do supermercado, e os resíduos humanos seguem comigo, penso na minha vida adulta e nos meus projetos inacabados. Sinto fome. Continuo a especular, é sempre tudo mera especulação: quando chegar em casa, preparo algo para comer e é exatamente aí que, de repente, é como se tudo que estivesse na boca do estômago em estado de latência, ruminando, fervilhando, chegasse até o limiar da goela e, ao ser mastigado, voltasse a ser engolido e fosse para o lugar de onde veio. Saciada a fome da superfície, tudo se esquece, e volta a dormir no âmago do sonho.

*Mayara La-Rocque é paraense, educadora, escritora. Publicou a plaquete literária “Uma luminária pensa no céu”, pela Editora Escriba, em 2017. (além de velha amiga minha e colaboradora deste site).

O DITADO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Minha tia morreu jovem aos oitenta anos de um parto prematuro. Minha mãe morreu velha aos 16. Eu sobrevivi até hoje. Sobrevivi, porque Deus adoeceu e não viu que eu me escondia debaixo deste assoalho de tábuas podres onde eu moro. Eu e meus três cavalos: Açaí, Bacaba e Tucumã. São três belos cavalos garanhões, fogosos e brabos.

As proximidades do outono, Bacaba pariu um potro albino que eu chamei de Tucuxi. Uma anciã, que jogava búzios, disse-me que ele era filho de boto. Um velho Saci Pererê, que vinha lavar a ferida da perna no córrego, onde lavo os meus cavalos, disse-me ser ele filho de seu próprio pai. Um índio da tribo dos Tumucumaque, que eu conheci salgando peixe-boi no Porto de Santana, disse que ele era fruto dos sêmens trazidos pelas correntes marinhas, oriundos das noitadas dos marinheiros de Ulisses, que o engravidara assim como acontecera com Helena. O fato é que me afeiçoei tremendamente ao potro Tucuxi e ele a mim. Com a chegada do desmatamento e a transformação da floresta em pastagens, Tucuxi começou a se afastar e procurar ser aceito pelos bandos de cavalos que pastavam do outro lado do córrego, agora um rio de águas amareladas.

O clima começou a mudar e as noites foram ficando mais longas. O córrego onde eu lavava Açaí, Bacaba e Tucumã salgou-se. Um mateiro, cego de um olho, disse que isso tinha sido feito por um índio que salgava peixe-boi. O soldado, que patrulhava a fronteira entre o Amapá e a Guiana Inglesa, disse que foi o azougue. E um regatão, vendedor de perfume francês de duas cores e chita colorida transparente, disse que foi o Tsunami em Macacoari.

O fato é que com a transformação da água doce em água salgada, Açaí, Bacaba e Tucumã envelheceram, perderam os dentes, os pêlos, racharam as patas e encolheram as pernas traseiras. Em vez de relinchar apenas miavam. Tucuxi parecia uma canoa. Ficava flutuando como uma toiça branca pela extensão do córrego, agora um pequeno rio-mar.

Toda à noite de lua cheia, eu saia um pouco debaixo do jirau de tábuas podres e olhava para o firmamento. Como não via os olhos de Deus procurando-me, ia ao rio e lavava-me sob a intensa dor provocada pelo sal das águas na minha carne avermelhada e nas feridas aberta nos meus pés. Eu já estava criando cascos. Descobri olhando os rastros que eu deixava na lama da margem. Em mim, também, nasciam asas. Isto eu descobri pela grande quantidade de penas no rio. Estava translúcido, de pele muito alva, resultado do enorme tempo que vivia debaixo do jirau de tábuas podres. Escondido dos olhos de Deus.

Tucuxi ficava horas comigo. Eram dois albinos tomando banho despreocupadamente. Talvez pai e filho. Talvez anjos caídos. Talvez cavalos. Deus quando me encontrou morreu. Fiquei órfão. A lavadeira que batia as roupas esfarrapadas de encontro às pedras porosas do rio, disse para eu rezar. A bota que expelia óvulos debaixo da folha do mururé, para que o sol os fecundasse, disse para eu beber Andiroba. A brisa que acariciava o dorso das Cobras e Poraquês deu-me de costas. A prostituta, que se dependura na beirada dos barcos para vender-se em poucos minutos, ficou com pena de mim e deu-me um Curumim que, hoje, é: – Quem escreve o que falo.

Frases, contos e histórias do Cleomar (Parte II)

Meu amigo Cleomar Almeida é um competente engenheiro. O cara também é a personificação da pavulagem e gentebonisse, presepeiro e boçal como poucos que conheço. Um figura divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade. Quem conhece, sabe. Na mesma linha da PRIMEIRA PUBLICAÇÃO sobre seus papos no Facebook, selecionei alguns de seus relatos na referida rede social. Boa leitura:

“Não vem dar teco no meu açaí, toma o teu que eu tomo o meu”. Pra eu deixar de ser enxirido.

Se eu, Cleomar, pego uma cagada que nem a que o Gilmar Mendes pegou do Ministro Barroso ontem, aproveitava o apagão e mandava avisar: Gente, queimou uns bagulhos aqui em casa e tô tentando arrumar, não poderei ir na repartição hoje. Pense numa lapada. (Em março de 2018, sobre o “mau sentimento).

Como é a vida! Lembro de um episódio nessa lida de engenheiro em que um potencial cliente me chamou pra acompanhar uma obra e que, por ser um serviço simples, ele me pagaria com “o da gasolina”. Na hora fiquei puto da vida, perguntei pra ele se achava que eu tinha cara de motor, virei as costas e saí dali indignado. Se tal proposta fosse feita hoje, nem ele teria condições de me pagar o prometido e nem eu me encheria de frescura em aceitar. (Durante a falta de combustível, em maio de 2018).

Ia comprar o AmapaCap pra ver se diminui essa lisura mas acho que primeiro vou me mudar pra Santana, pense num povo de sorte, só dá eles.

Já tô mordido com essas porcarias de goteiras, pior que só aparece quando tá chovendo. Parece o gás, que só acaba quando a gente tá cozinhando.

São estilo “Walking Dead” os carapanãs da minha casa, só pode. Tu entopes o quarto de veneno e vai caindo um por um, em meia hora já começam a se levantar, só que agora totalmente transformados, possuídos, com ódio no coração, dá pra ver a ira em seus olhos esbugalhados e sedentos de sangue. Coisa do Belzebu mesmo.

Nenhum “Fake news” foi tão devastador quanto o da faca no boneco do Fofão. Tinha até fogueira pra queimar o boneco do capeta. Tédoido!

Coisa boa mesmo é o cara ser desembargador federal, dia que tu acordas de cu sujo, tu bagunças com o domingo da galera toda. (Sobre o habeas corpus concedido ao ex-presidente Lula, pelo desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no dia 8 de julho de 2018).

Você foi chegando aos poucos, ocupando cada espaço em minha cabeça, quando percebi já era tarde. Sai de mim calvíce da peste, logo eu, que era o Urso do Cabelo Duro.

Fala a verdade, tu tá mais puto por conta das folgas que tu perdeu, no fundo a gente sabia que não ia ganhar porra nenhuma. (Sobre a eliminação do Brasil na Copa do Mundo 2018).

Quer encontrar gente aru, é só ir na fila do caixa eletrônico, fôlego.

No meu entendimento, se o cara fez a comida, ele tá livre de qualquer obrigação com as louças, se eu cozinho, eu não lavo.

Se a vadiagem fosse remunerada, já teria feito uma grana preta, só nesse sábado.

Já tô cansado de tanto descansar, amanhã vou trabalhar de qualquer jeito. Meeeeentheeeera, ainda aguento ficar nessa vadiagem mais uns dez dias. Pra melhorar só faltava uma rede e uma frieira.

Ninguém, eu afirmo ninguém, teve um domingo mais tiricento de que eu. Sai de mim.

Tá decidido, vou votar no Dr Rey, ele tá prometendo que vai deixar todo mundo bonito, bora comigo bando de feio.

O assalto no campus Marco Zero – Conto porreta de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Um ar de tranquilidade pairava na Universidade no entardecer daquela quinta-feira, véspera de feriado. Eu precisava retirar uma grana do caixa eletrônico instalado no prédio da reitoria para poder viajar com a família ao terreno que temos em Ferreira Gomes.

Pensando nisso fiquei na fila aguardando a minha vez, enquanto colegas de trabalho, sorridentes, desejavam bom feriadão uns aos outros.

Ao chegar minha vez fui surpreendido com um objeto frio na nuca antes de colocar o cartão na máquina. Eu me voltei e um sujeito corpulento me empurrou e disse:

– Não me olha, filho da puta. Encosta ali no canto que a gente vai explodir essa porra.

Tive que me deitar no corredor onde a vigilante que minutos antes trocara de turno jazia sobre o balcão de informações com a garganta cortada, ainda em convulsão. Ouvi ruídos e em seguida uma explosão que rebentou toda a máquina. Quatro bandidos apanharam o dinheiro rapidamente e saíram correndo para um carro que os esperava. Atiraram na cabeça do vigilante instalado na guarita do portão de entrada e feriram, atirando a esmo, dois estudantes que chegavam para o turno da noite. Fugiram na direção de Fazendinha pela Rodovia JK, perseguidos pelo carro do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar que havia sido informada do roubo e das mortes.

Mais tarde, quando depunha na Delegacia de Roubos e Furtos, ainda surdo com o barulho da explosão, soube pelo plantão da TV que na fuga desesperada eles foram atropelados e esmagados por uma carreta da AMCEL carregada de eucalipto, lá em Santana. Os cinco bandidos morreram na hora. Viraram farelo dentro de uma lata. Segundo o repórter, um deles era de Mazagão e os outros vieram do sul do Pará.

Mesmo refeito do susto eu não quis mais ir para o terreno da família. Mas no domingo… No domingo não resisti e fui ao bar do Abreu. Bebi pra caralho e vibrei com a vitória do Flamengo sobre o Vasco, coisa que os assaltantes filhos de uma égua não iriam assistir nem no inferno. Égua! Mas o barulho de cada foguete explodindo lá fora me lembrava da porra do assalto. E o campari no copo era igual ao sangue esvaído da vigilante estrebuchando ao meu lado.

NA TRAVESSIA, DENTRO DA NOITE FEIA – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

“Sim sinhô, tamos saindo de novo de mais um porto de carga, partindo em busca de um outro no constante vai – e – vem que a nossa vida comanda. Nós aqui que se defenda do destino! Se a gente come ar, água barrenta e jabá com farinha é porque Deus tem querença e nós só temos que obedecer, rezar sempre que puder pra não ter a sorte de peixe na rede do pescador.

“Já é noite velha e fechada por um tempo enegrecido com cara de tempestade. Já é mais uma entre tantas a deslizar nas águas benditas destas paragens que nos servem pro trabalho e pros despachos das coisas que não precisamos mais. É noite fechada, é sim… sem hora, descaminhada, prenha de vento forte e que judia a solidão mais amiúde que um homem saudoso tem…

“Sim sinhô, é duro ter mãos calosas, pé rachado e cicatriz das cargas que bem carrego, desde jito, lhe asseguro, pensando e Ter bem dinheiro pra dar uma casa ao pai na velha Vila Formosa de Bom Jesus do Anaju. Minha vida é o que carrego cada vez que o barco sai, toda vez que o barco chega e toda vez queu me arrependo.

“Saudade não tenho tanta da minha infância, eu agaranto. Sempre fui acostumado com a dureza do trabalho, mesmo ficando aos poucos taludo, entanguido e forte, mas-porém malandro e astuto desde as primeiras pontes, canoas e remos de tábua.

“Tenho visto muita coisa neste mundo encarquilhado, coisa do arco-da-velha e cores desencardidas. Só não vi padre fuder freira nem piramutaba ovada. Mas visage, isso então… Nem lhe conto, pra que não pense o sinhô queu sou desses mentirosos. Desde jito, quero que Deus me cegue… vi mato pegando fogo nas ribanceiras dos rios, gente gritando muito debaixo da chuvarada de bala da jagunçada que vagueia atrás de sangue a mando dos coronéis. Vi muita lepra perversa em forma de home comum aumentando dia-a-dia nos trapiches que aportei, como uma vez na Estrada Nova quando pediram um cigarro pro dono do barco Olavo, da terra de Cametá. O rapaz que nem fumava morreu de treze facadas só porque não tinha pito e nem pôde se arrepender.

“Não senta na minha ilharga gente malina e rude. Eu olho logo de esguelha, desconfiado do besta que procura confusão. Eu tomo minhas cachaças sem ter preferência à marca, todavia, lhe garanto, nunquinha caí de porre.

“Dei serviço em muito barco, já tive muito patrão, faz quase quarenta anos que rolo por cima d’água. Não quis me casar, o sinhô sabe, meu tempo foi pro trabalho, e mesmo eu não tenho casa e a maorparte dos meus parentes já foram encontrar com Cristo na morada celestina, onde só tem convite que foi nesta vida humilde. Assim nunca me arrependo de não ter me amasiado com rapariga festeira nem com mulher assanhada. Umas três já declararam que ficaram prenha deste, pois eu lhe conto, não nego, que também não sou santinho. Só sei que nunca fui pai nem padrinho de menino nos lugares onde parei pra carregar esses trabalhos, descarregar minha gala, trocando o óleo da pomba… Humrum! Molhar o osso, seu menino, é preciso praticar, senão a cabeça endoida, fica bilé, bilé. A gente fica mofino, não dá atenção pras coisas e com calo na mão não presta bater punheta nas folgas. Vara de macho escroto precisa de bem carinho e basta só um pouquinho pra entrar nas perseguidas e se lambuzar de prazer.

“Sim sinhô, tô divagando… Me adesculpe se lhe enjôo com esta conversa fiada. É queu vivo me acercando das coisas do meu redor como desta noite feia. Arrepare que tem lua pra nascer daqui a pouco, minguando, mais ainda grande, que vai ajudar com imenso nossa longa travessia por cima desta baía. Vigie ali rés à mata a chegada de um clarão: é ela empurrando as nuvens pra cair logo uma chuva e o barco seguir em paz. Antes que a chuva venha, se ajunte mais pra dentro deste comando apertado, se aproteja do frio que judia a gente e dos solavancos das ondas que neste vento paresque até banzeiro espumante do catamarã da Enasa. Depois da procela forte vem um pouco de chuvisco e as ondas vão se acamar, daí chega a lua branca e eu ainda posso ver á frente sem precisar de farol. Eu moço já andava em barco que não tinha nem motor, nem bússola ou farolete, daqueles movido a vento, onde a gente se guiava pelos lugares que via. Só conhecendo, velava e se livrava dos troncos arrancados dos barrancos.

“Inda mais… Me lembro que já passei por maus momentos, indizíveis, apelando para a Virgem na hora da morte certa, como daquela vez, paresque numa baía chamada Curralinho, quando o casco do barco abriu ao bater numa jangada de troncos, solta e perdida no negro da escuridão. Dessa vez não teve tempo pra desviar do perigo. Morreram cinco pessoas. Consegui salvar só duas que levei lá pra beira em cima de um camburão de óleo combustível.

“Meu parente, se não é a Virgem no céu, os marítimos se estrepam aqui na terra. Coisa ruim só acontece conosco, gente sofrida do mar. Perdi muitos companheiros que foram pras profundezas destas águas amarelas onde vive boto e Iara, boiúna e cobra Sofia.

“Mas quando já…! O sinhô pode pensar. Não creio nessas conversas. Há de dizer o parente. Mas lhe garanto uma coisa: este rio tem tanta água como ente que judia. Já vi coisas, seu menino, que penso não acreditar, por isso prefiro a morte que me arrepiar de medo quando enfrentasse, ‘sconjuro, gente que não desse mundo.

“Espie só a chuva passando. Agora que só tem lua e um mar calmo pela frente é que vem na minha mente uma figura ‘stimada de um homem sempre presente no meu imparável trabalho.

“Não arrepare se eu falo assim meio ‘stúrdio, mas dentro de mim vem uma dor afogalhada toda vez queu cambo meu pensar pra esse lado. Talvez o sinhô tenha tido algum patrão na vida. Não sei se lhe importa eu soltar minhas mágoas que me atormentam benzinho no fundo da minha alma. Tome um café, me escute e não arrepare essa dor.

“Tordia fiquei macucando… pensando na minha vida, no meu destino de boto que paresque é fazer as coisas e desaparecer nas águas. Já vi que tem parecença com as ondas e com tudo do meu redor. É como se eu fosse mururé dançando n’água, planta que tem flor roxa e folha verde e se assustenta do rio. Vai pra onde a maré bate, mas continua pelo rio até bater numa praia, se dividir ou se somar nos troncos da aningueiras ou na hélice do barco despedaçar de vez.

“Não quero ter descamaradagem com a figura do patrão, porém já sofri bastante vendo ele ficar alegre ao conferir o dinheiro que o nosso trabalho dá. Queria ver eles sem nós. Só com seu barco, só ele navegando por aí, debaixo da tempestade. Tá, cheiroso! Eu ia dizer, vendo a sua cara torta. Te vira, seu porcaria… Eu ia era rir. Hum, ele não teria mais aquele riso indecente cheio de dentes de ouro nem os olhos miudinhos que brilham tal quando conta o lucro que o nosso trabalho dá. Disse ao sinhô queu ‘stimava a figura do patrão, mas ora já penso certo, acho que ele não merece queu pense dessa maneira.

“Muitas vezes ouvi no rádio que o Brasil era gigante, acho que é isso mesmo, devido ter viajado, conhecido muitas terras só aqui na região. Isso me faz pensar nas coisas deste mundão onde tudo é muito grande, mas os homens são sempre pequenos. Ninguém segura essa terra, disseram também no rádio, e largaram ela pruns homens de fala e de corpos estranhos. Era pra gente ir frente que a vida ia melhorar, mas só nós, os que navegam, nunca melhoram na merda desta vida, nem seguro dela tem, ganham salário mínimo, o menor, eu acho sempre, pois não dá nem-nem pra sacanagem nos puteiros de Belém, inda mais se, por exemplo, eu tivesse uma família pra assustentar por aí.

“Sim sinhô, me apustemo de trabalho, só vejo trapiche e cais nas margens que descarrego de um lado e doutro do rio. Tô ficando aporrinhado, tô me sentindo um ladrão querendo roubar as coisas, mas preso porque não roubou. Não digo que matei gente, mas minha vontade é enorme de arrancar os dentes todos do ‘stimado patrão. Égua! Égua! Se aguento tudo isso é porque não tenho estudo nem registro e a carteira da Capitania dos Portos. Não tive oportunidade nem incentivo pra essas coisas do ‘stimado patrão, que ganha nas nossas custas tudo aquilo que queremos pra gente viver um pouquinho sem depender de ninguém.

“Não tenho inveja, agaranto, e quero que me adesculpe se falo assim do patrão. Minha sina está nas águas deste rio que bem conheço, que é meu amigo bacana, mas-porém que é traiçoeiro quando a gente nem espera… Hum. Minha sina está com ele, o rio de toda uma vida, a única coisa viva que mais arrespeito e amo, meu calmante dessas horas de aporrinhação.

“Meu parente, eu falei muito das coisas que tanto vi, como da lua minguante que ora ilumina a nós e da figura ‘stimada do proprietário do barco que a gente navega aqui. Antes de acabar meu turno, antes de ir descansar, quero apenas lhe dizer que a minha vida é assim mesmo, paresque noite vergada, com vento e luar minguando, se acabando para o dia que vem chegando benzinho, trazendo o sol que só engelha o resto da dor da gente”.

PORCA – Conto de Fernando Canto

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Conto de Fernando Canto

Eu insistia com ela todas as noites de lua cheia.

– Para com essa história de se transformar em porca, mulher. Não aguento mais esse cheiro de lama.

Era um segredo nosso que tive de aceitar por pura dependência financeira, desde que nos casamos. Mas ela não parava. Queria porque queria parecer melhdownloador que a Velha Xambica, do sítio do seu Ladislau, vizinho ao nosso, que tinha o mesmo fado dela e se transfigurava em Matinta. As duas concorriam para ver quem assustava mais as pessoas desprevenidas nas noites enluaradas da minha cidadezinha.

Um dia eu estava num couro doido, numa pindaíba roxíssima. Era meu aniversário e eu vivia sempre cobrado pelos meus amigos do boteco da Waldirene Boca de Tambor.

– Quando é o churrasco, porra? Perguntavam o tempo todo, me pressionando pra valer.

Eu dizia que quporca-dente-de-ouro-480x788e ia depender da indenização que estava para receber do frigorífico que fui botado injustamente pra fora, sem justa causa. O processo estava tramitando há tempos, sempre acompanhado de perto pelo iminente causídico Dr. Robário Paladino, que me garantiu o recebimento para logo, antes do fim do mês.

Na véspera do aniversário eu não aguentei mais o fedor da minha galega. Ela havia voltado de um Passeio de Assustamento da lua cheia e estava no quintal grunhindo e chafurdando na lama do chiqueiro, antes de voltar a ser mulher. Ela dizia sempre que a transformação era um processo doloroso, mas que tinha prazer em fazer sempre, pois se achava renovada toda vez que isso acontecia.

Ela estava lá. Tinha acabado de chegar. Eu fiquei pensando, pensando, pensando… Peguei a peixeira e a enterrei no pescoço dela por trás. A porca revirou os olhos e o sangue esguichou com tanta força que me sujou toporcamortado. Estrebuchou e deu três longos e desesperados grunhidos. Enrolei a boca e o focinho com uma corda até ela parar de se debater. Depois coloquei o corpo em um camburão de água fervente para raspar os pelos, e, como bom açougueiro, comecei a preparar o corpo do animal para fazer um belo churrasco. Os raios do dia chegaram com uma intensidade que me feriu os olhos.

Fui ao boteco da Waldirene Boca de Tambor e convidei a rapaziada malandra pro churrasco. E ainda churrasco-widedizia, brincando:

– Levem um presente, seus vadios. Cheguem perto do meio-dia pra me ajudarem a assar.

Cada um se servia como podia. Eu havia trocado os miúdos da porca por cachaça e farinha com a Wal. Todo mundo se refestelou e ficou de bucho cheio. Tomaram cachaça à beça, arranjaram uns tambores e o batuque correu o dia todo. Quem chegava pro churrasco também trazia uma bebida. Mas eu não tive coragem de comer nenhum pedaço de carne, talvez em respeito à minha falecida mulher.

Já era quase meia noite e todo mundo já estava “calibrado”, tomando cachaça e dançando uns sambas de cacete. Ninguém notou a ausência da minha galegcartaz-a-matinta-perera-1998uinha, só o Ambrósio, saliente que só ele. E eu lhe disse que ela tinha ido à casa da mãe doente lá em Mazagão.

A lua rompeu uma nuvem escura e iluminou mais ainda o terreiro da festa. E o batuque ensurdecia e ecoava em toda a área.

Mas tudo parou de repente quando uma mulher idosa com bico de pássaro surgiu perto da mata onde ficava o chiqueiro da minha esposa.

– Quero tabaco, ela dizia. Quero tabaco pra levar pra minha comadre.

porcosOs convidados se entreolharam e o medo tomou conta de todos. Atônitos viram seus ventres se mexerem involuntariamente e em todos eles uma voz dizia:

– Onde está minha costela? Cadê minhas coxas? Quede meu peito?..

A lua parecia descer do céu de tão grande, naquele momento de desespero dos imagesconvivas. E todos eles saíram correndo para o mato se transformando a cada passo em caititus, porcos-do-mato, queixadas e javalis.

A velha Matinta me olhou de soslaio, cuspiu pelo bico de pássaro um cuspo negro de quem masca tabaco. Eu caí de costas no chão e tive que sustentar com os braços até de manhã a lua quase cheia que parecia ter caído em cima de mim.

O trombone invisível – Conto de Fernando Canto para Obdias Araújo.

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Conto de Fernando Canto para o poeta Obdias Araújo.

Ainda era muito cedo.

O rapaz de uns vinte e cinco anos vinha no meio da rua tocando um trombone de vara, marchando alegre e sem medo de ser atropelado pelos veículos pesados que se movimentavam para pegar a rodovia JK. Ele soprava e punha a mão na boca do instrumento, ajustando-o. O tipo de música executada se assemelhava a um dobrado, já que seus passos seguiam em perfeita cadência rítmica, como se desfilasse numa parada escolar. Devia puxar o pelotão de uma banda musical que talvez lhe seguisse após a desobstrução da via. De vez em quando olhava para trás, mas sem parar de marchar.trobone1

Dobrei meu caminhão para o acostamento e esperei que passasse por mim. Eu disse:

– Ei, amigo, não estou ouvindo direito essa música.

Ele me olhou meio de esguelha, com certo ar de desprezo e apontou o dedo para a boca do instrumento, lamentando mtrobrone123inha ignorância, querendo dizer que tocava com a surdina, pensei.

Deixei-o passar e o acompanhei pelo retrovisor. Seguia cadencioso no meio da rua esburacada, naquela manhã de abril, sob um céu plástico e chuvoso do equador. Eu já ia embora quando ouvi o som nervoso da buzina de uma carreta atrás de mim e o baque surdo de um corpo caindo ao chão. O moço, seminu, trajava apenas uma cueca branca e rota. Não havia trombone, não havia banda, não havia música.

Os pássaros madrugadores da cidade pousados nos fios de alta tensão da Eletronorte assustaram-se e fugiram desesperados com o som da morte, para descrever no céu as notas de um réquiem ao trombonista atropelado.

Causo do carnaval – Sucuriju? Não tem (Por @alcinea)

Eu, Rei Momo dos bloco “Nada me Imprensa”, dos jornalistas do Amapá e o Rei Momo do Carnaval Amapaense, Sucuriju – Foto: Patrick Bitencourt

O pauteiro de uma emissora de televisão chamou o cinegrafista e disse:

– Vai lá no Sambódromo e filma o Sucuriju. Tô precisando dessa imagem pra jogar um flash daqui a pouco no ar.

O cinegrafista pegou a câmera e se mandou pro Sambódromo. Uma hora depois ele voltou avisando que a pauta furou.

– Mas como a pauta furou? Perguntou irritado o pauteiro.

Candidamente o cinegrafista respondeu:

– Procurei em todos os cantos do Sambódromo e não vi nenhuma cobra. Lá

só tinha gente. Muita gente sambando e cantando.Era a maior animação, até o Rei Momo tava lá. Mas cobra não tinha nenhuma. Nem sucuriju, nem jiboia, nem nada.

P.S – Sucuriju é o Rei Momo de Macapá.

Alcinéa Cavalcante