O NOVO DILÚVIO – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

O meu nome é Fausto e não Noé, mas sou o único sobrevivente do segundo dilúvio do mundo. Ninguém veio me avisar que a haveria um dilúvio, mas sonhei que haveria, e acreditei. Sendo mais verdadeiro, nas primeiras trintas vezes que sonhei, achei que era para jogar no bicho, mas como nunca ganhava, tive que mudar a minha interpretação do sonho.

Não tive que construir arca nenhuma, porque como sou pescador, já possuía o meu próprio barco. Não é um barco grande como a arca de Noé, mas para mim dava. Como sou solteiro, não trouxe mulher, nem filhos para a minha viagem. Como no meu sonho ninguém mandava eu trazer animais, viajo sozinho.

A única coisa que meu deu trabalho foi ter que comprar alimentos e muitas outras coisas para a minha viagem de quarenta dias e quarenta noites. Eu sou pescador, mas não iria passar todo esse tempo só comendo peixe, até porque eu não sabia se ainda haveria peixe depois do dilúvio. O tempo pode ter passado, mas Deus continua com a mesma matemática dos quarenta.

Choveu muito, e tudo alagou. A minha cidade virou um rio gigantesco. Então eu fui navegando e vivendo como podia. Mas agora parou de chover. Se deu os quarenta dias previstos, não sei, isso é com Deus. Eu não fiquei contando os dias da minha navegação. Eu fui naquela da música do Paulinho da Viola: “Faça como um velho marinheiro/Que durante o nevoeiro/Leva o barco devagar”.

Fui levando o barco com toda a perícia que o tempo me deu, porque a chuva era forte, não era garoa, e porque as águas do rio ficaram turbulentas por muito tempo. Eu não sei por que eu fui escolhido para sobreviver ao segundo dilúvio, mas certamente o fato de eu ser marinheiro contou. Quem não soubesse navegar, iria afundar na primeira onda.

A chuva parou faz dez dias, e desde então procuro terra firme, como fez Noé. Só não tenho um pássaro para mandar por aí a procura de pedaço de folha ou graveto, a fim de saber se já existe terra em lugar. Antes eu estava mais tranquilo, mais toda carne acabou, e agora só como o que pesco.

Por outro lado, quando estava chovendo eu ficava sempre ocupado em pilotar o barco, para que ele não afundasse. Mas depois da tempestade veio a bonança, e ponha bonança nisso. Por isso fiquei sem ter muito o que fazer. Agora é tudo como aquela música do Martinho da Vila, que Deus o tenha: “É devagar/ É devagar/ É devagar é devagar devagarinho…

O que é que estou vendo ali!? É terra firme, graças a Deus! O senhor ouviu as minhas preces! É só maneira de falar porque não sou muito de reza, e não rezei para encontrar terra firme. Direciono o meu barco para aquele oásis no deserto. É também só maneira de falar também, porque água aqui é o que não falta. O que faltava era terra firme.

Cheguei na ilha, porque agora toda terra firme tem que ser uma ilha. Vejo que a ilha tem árvores, e árvores frutíferas. É um local belíssimo, onde a areia da praia é branca como a areia da praia de mar. Passo a explorar a ilha e vejo que existem pequenos animais, por isso caço logo um com o meu arpão para o jantar.

De repente, deparo-me com uma cabana. Aí a coisa ficou complicada na minha cabeça. Entro na cabana, mas não encontro ninguém lá. Só que é uma cabana que tem cama grande, mesa, uma cadeira, utensílios de barro ou madeira. Até forno de barro existe. Logo, alguém mora aqui. Preparo a minha janta e devoro a carne com o tamanho da fome de vários dias só comendo peixe. Estou muito cansado da longa viagem de barco. Por isso deito na cama e durmo.

Acordo no outro dia, e parece que estou no paraíso quando vejo uma mulher nua deitada ao meu lado. Mulher nua e linda. Levanto-me devagar e, como homem da casa, saio para caçar. Mato outro animal. Subo nas árvores para colher frutas também. Sou recebido pela mulher nua com abraços, beijos e carinho. Ela não disse nada, embora eu lhe fizesse muitas perguntas. Só fez sorrir para mim. Eu olho para o alto e digo: Obrigado, meu Deus, por atender as minhas preces! Dessa vez é verdade. Foi o único pedido que fiz para Deus durante a viagem: Que encontrasse uma mulher.

Durante os primeiros trinta dias fui vivendo aquela vida maravilhosa, com uma mulher que não conhecia e que não dizia nada. Para mim estaria tudo bem, se não fosse o fato da nossa união nunca se consumar. Ela era de uma santa ingenuidade. Foi então que tive uma ideia. Saí pela floresta e voltei com uma maça. Dei para ela. Foi tiro e queda. Ela começou a falar no mesmo instante. Também começou a me olhar diferente.

Eu estava enlouquecido de amor, e ela também. Assim, nos conhecemos biblicamente. Aquele mulher não poderia ser da terra, deveria ser do céu. Depois ela me disse que se chamava Eva, e eu lhe disse que me chamava Fausto. Seu semblante mudou. Ele perdeu o sorriso, deu-me um tapa no rosto e me chamou de cafajeste. Ela estava esperando alguém com o nome de Adão.

F L I P – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Flip… meu idoso cão, meu peralta cão… sobe as escadas na velocidade da luz, dividida por um bilionésimo de segundo.

Branco, pequeno, resmungão, ansioso, e afobado, dentro dos limites das suas artroses, parece comigo.

Veio cobrar a ausência dos sacos de lixo que revira quando eu o ponho para brincar na garagem, de onde sai todo sujo, de lixo orgânico que separo dos papéis, plásticos e demais sobras.

Resmunga na linguagem dos cães, refuga, remarca o seu território urinando aos quatro cantos da sala, que transformei em espaço mais importante da casa…

TV… Computador… Rádio… Pilha de Papéis Escritos a Mão, ou impressos, livros terminados e não publicados, monte de meias, cartas importantes e sombras desfiguradas pelos anos, que às vezes puxam a cauda do Flip, e ele reage grunindo em Dó Maior.

Mas hoje ele está emputecido, porque prevendo chuva a Noroeste, segundo o homem da meteorologia, vai chover metade do céu em Osasco.

Ele fica proibido de brincar na garagem.

Isso tudo eu explico para ele, que me olha e mexe as orelhas como se achasse um saco o lixo ser abandonado a sua sorte dentro de um caminhão que o tritura sem piedade.

Ele, Flip, não… o puxa delicadamente pelos buracos que faz no saco, e os empilha conforme o odor que espalham.

Um técnico em repartir podres.

Desce furioso, ouviu o som dos lixeiros, gritando pela rua, se aproximando, quanto mais perto, mais forte ele percebe o ruído da roda dianteira do lado da direita do caminhão, azedo ruído, é a roda que mais raspa de encontro com a calçada desnivelada em frente a nossa casa.

Pula no portão fechado, os lixeiros não temem, estão acostumados com o brabo Dog.

Às vezes lhe atiram pedaços de pão, que ele ignora, e passa dias urinando nele, para apodrecê-lo mais rapidamente, acho eu.

Hoje… não…

Vê os sacos de plástico escuro saírem do seu ângulo de visão, o cheiro, não, este fica com ele…

Até que eu o leve para o banho quinzenal no Pet Shop, duas quadras adiante.

CORNUCÓPIA DE DESEJOS – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Por querer expressar meu pensamento sobre as coisas em meu idioma, às vezes arrebato o próprio coração em sofridas angustiosidades e dissentimentos infaláveis. Por isso monologo no granito e lavo em água este contraste, esta antagonia de imprescindível falação que ponho em tua trompa de eustáquio para te martelar suavemente a dentro.

É o caso do amor ensolarado que sinto agora, neste mirífico momento. Um assunto ressoante, uma prosa-cornucópia (onde a abundância reina) a refratar-se sem a culpa do inexpressável parlar.

Não vejo como não ensopar-me de enluação neste conto de candura quase irrevelável, posto que o meu amor possa entender-me ou espumar-se para sempre para o inevitável espanto que a declaração enseja. Paresque um salto com vara numa olimpíada de abismos.

Assim eu declaro: a cobra norato, o boitatá e as luzes do fogo-fátuo se expiram na noite cadente. Oh, teus olhos não! Teus olhos ternuram a medida do dia, solfejam histórias e cantam paisagens inescrutáveis para os sonostortos dos mortais. Eu sou o arauto deste cenário-testamento a castigar retumbantemente o couro dos tambores; eu anuncio a sublime compreensão do “amooor” que ecoa em gargalhadas sobre as ondas do Amazonas, aqui na Beira-rio, sob um céu azul intensificado de lilás quando anoitece.

Eu declaro ainda: a pedra em sua bruta forma tem dentro de si os elementos primordiais que suprem tua sede de amar. Ora, Balance a pedra e sinta o gutigúti da sua oferenda. Lapide-a, pois ela provém da terra, e então perceberá o calor do fogo da paixão libertadora e o ar morno que movimentará o sangue pelas entranhas.

Num átimo, um áugure qualquer (que são muitos e banais) lerá tua sorte: dirá augúrios, claro. Um áuspice (que estão cada vez mais raros) dirá tua sina no raro voo dos louva-deuses. E te auspiciará de boas-novas e de valores inequívocos.

Ora, dizendo isso afirmo que sou aquele que nem sabe discursar suas dores, inda que saiba do futuro, pois habito o limiar do tempo. Eu sou a timidez em prosa e verso, aluno de poesia, mas prenhe de pecados, porque ingiro virtudes nos bares da noite e não sei segredar projetos inexequíveis. Não sei, juro pueril e ludicamente (mas com toda a sinceridade de uma parlenda) pela fé da mucura, torno a jurar pela fé do guará, torno a repetir pela fé do jabuti, que não sei mentir ao sabor do vento dos ventiladores que me sopram fumaça de charutos cubanos.

Descobri que sei de ti mais do sabes da pedra em teu caminho. Sou teu (adi)vinho incontestável, ad-mirador de tua trajetória. Por isso do alto da minha velada arrogância sei que tu também me amas.

Mas é de ti que quero o conteúdo dessa bilha onde Ianejar – aquele herói dos índios waiãpi – e seus pareceiros se abrigaram do fogo ardente e do dilúvio. É por ti que generalizo a farsa da criação sem pesadelos cosmogônicos. Eu me agonizo em mistérios. Eu eternizo o meu olhar nessa paixão. E me enleio como as borboletas que viajam ao paraíso pelo buraco sem-fundo do fim da terra.

Por isso eu sei que te amo.

Por isso vago ainda em fluidos imemoriais sempre presentes, antes do esquecimento das vitórias que juntos comemoramos.

Por isso a ternura há de ser o mais farto elemento da imensa cornucópia de desejos que realizamos juntos.

a última canção de susana san – Conto de Ronaldo Rodrigues

conto de ronaldo rodrigues

• ela está parada sentada na pedra em frente ao mar
• ela ouve o som do vento, do vento, do vento que entra pelo labirinto da concha de sua orelha
• ela e o violão antigo deixado de herança por um tio-avô excêntrico, esquisitão mesmo, que morava numa caverna
• ela, susana san, canta uma canção, um trecho ouvido no dia do enterro de sua mãe
• ela toca o violão e algumas gotas d’água (e de lágrima) chegam às suas pernas
• susana san sente a pedra afundar, ou melhor: o mar subir
• ela esquece a música, depois lembra, ela esquece o namorado que partiu pra guerra, depois lembra, ela esquece o pai, não poderia ser diferente, já que ele nunca voltou de uma viagem interminável
• ela esquece tudo, depois lembra, mas agora é tarde para lembranças e esquecimentos
• o mar já chega aos seus seios
• o violão vai ficando cheio d’água e ela perdeu a vontade de ir embora
• ela sabe que não adianta tentar se salvar, já que nada detém o mar (mas esquece)
• hoje sou eu que estou na pedra à beira do mar pensando ouvir a última canção de susana san trazida pelo mar, pelas gaivotas, pela lembrança daquele portão velho de madeira do fundo do quintal
• ouço a última canção de susana san e me despeço da pedra
• agora já é amanhã, ou seja: hoje
• retornei, sempre retorno na esperança de que o mar e o vento tenham aprendido a última canção de susana san para fazer o mundo aprender
• e se libertar

Depois do Fim – Conto de Gabriel Yared

Corram para os bunkers, as sirenes estão tocando!

Na Terceira Guerra Mundial, o Brasil foi o principal aliado dos EUA. Os adversários deram seu ultimato bombardeando o país. Como resultado do Apocalipse Nuclear, as matas tornaram-se paisagens devastadas. Quando tudo se torna um caos, pelo que vale a pena matar?

A duologia Depois do Fim apresenta mais de 50 contos de autores contemporâneos de todo o país, com narrativas eletrizantes sobre esse futuro distópico e desesperador – para o qual muitas vezes parece se encaminhar a humanidade.

Me chamo Gabriel Yared e sou um escritor amapaense. Em meu conto participante da antologia, “Bem-vindos à Amazônia”, um grupo de sobreviventes de Macapá luta pela vida. O Rio Amazonas tornou-se radioativo. Para piorar, um governo sulista chega em aeronaves para extrair água de aquíferos nas terras tucujus. Está na hora dos amapaenses revidarem!

Agradeço muito a quem puder compartilhar o vídeo pelas redes e com os amigos, pois há várias formas de ajudar!

O Catarse é primeira e mais confiável plataforma de financiamento coletivo para projetos artísticos do Brasil. A arrecadação do valor de nossa meta principal é que permitirá que a Cartola Editora produza e publique os exemplares físicos e digitais dos nossos livros.

A principal forma de apoiar o nosso projeto, que abrange a literatura nacional e regional, é adquirindo os dois livros no link abaixo!

O frete é grátis até amanhã!*

https://www.catarse.me/fim

Gabriel Yared – Autor – Foto: facebook do escritor.

Sobre o Conto do autor amapaense

Gente, como vocês sabem, a duologia Depois do Fim da Cartola Editora, da qual estou participando, acabou entrar em crowdfunding pelo Catarse.

Mas você pode estar se perguntando “Cartola Editora? Catarse? O que é isso?”

Vem comigo que eu vou te explicar!

O que é crowdfunding?

O crowdfunding (ou financiamento coletivo) consiste na obtenção de capital para iniciativas de interesse coletivo através da agregação de múltiplas fontes de financiamento, em geral pessoas físicas interessadas na iniciativa.

O Catarse é a primeira plataforma virtual brasileira de crowdfunding, que tem como objetivo permitir que projetos artísticos saiam do papel e se tornem produtos a quem mais se interessa por eles.

O que é a Cartola Editora?

A Cartola, por sua vez, é uma Editora independente, que tem como objetivo incentivar a literatura brasileira contemporânea em toda a sua pluralidade através da publicação de autores de todo o Brasil.

O mercado editorial brasileiro é pouco diversificado, por isso apenas as editoras maiores têm condições financeiras de lançar seus livros direto nas livrarias e lojas virtuais.

Por isso, a Cartola Editora conta com o seu apoio através do Catarse para que suas obras cheguem às suas mãos.

O que é a duologia Depois do Fim?

A duologia Depois do Fim tem como premissa um futuro pós-apocalipse nuclear em que o Brasil sofreu múltiplos ataques durante a Terceira Guerra Mundial. São mais de 50 contos de escritores de todo o país.

Meu conto se passa em Macapá. Nele, um grupo de sobreviventes tem de lutar contra um governo autoritário e explorador vindo do Sul. No fim do mundo, pelo que vale a pena matar?

Como apoiar?

A principal forma de apoiar nosso projeto é adquirindo os dois livros físicos por apenas R$ 80,00. É uma oferta imperdível!

Há ainda as opções de adquirir apenas um dos volumes por R$ 45,00. Ou o e-book dos dois volumes por apenas R$ 25,00 e ainda só apoiar sem escolher uma recompensa com o valor de R$ 15,00.

Outra forma de alavancar a ficção científica nacional e regional é compartilhando com seus amigos e familiares esta publicação!

Mundo cão – conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Vestiu-se de Maria, donzela desamparada, vestido de laço e flor no cabelo, para ver a Banda passar. Ninguém, nem o Batman, quando passou atrás do trio elétrico, alisando as flores de seu vestido com um olhar de sarjeta, suspeitou de que aquela fosse a identidade secreta da Mulher Gato.

Do meio da profusão das marchas do carnaval, o Superpateta encontrou o olhar I believe in angels de Maria, a donzela desamparada, e não soube jamais explicar por que, naquele instante ad infinitum, desejou ser um Negro Gato de arrepiar.

O Negro Gato passou no meio da Banda, entre Frajolas e Mandachuvas… grisalho, quase calvo, hipnotizado pelo pó e pelo único trio elétrico que se rebelava em Racionais MC´s. Um cara que é da noite, da madrugada – ele cantou, absorto, ao passar sem ver o olhar de fera livre que lhe lançava Maria.

De laço de fita e flor no cabelo, Maria, desamparada na terça-feira gorda, sentiu-se tentada a cair nos braços do Gato de Botas, de lhe entregar seu calor animal. Isto antes de perceber que, em plena avenida, ele lambia o pelo translúcido de uma Thundercat – muito mais bela, embora bipolar.

Naquele último dia de carnaval, quando a Banda passou de passar, Maria arrematou a última cachaça de um ambulante perdido entre serpentinas e restos mortais de canções, e virou a dose de um gole só, pensando sobre o mundo cão… que poderia ser salvo pelos gatos. Então sentiu o convite de uma garra pousando tigresa em seu ombro, e se virou devagar, slow motion em trilha imaginária, para gozar felina o olhar daquele a quem entregaria, antes do fim da noite, a sua identidade secreta.

*Conto do livro Gatos Pingados

O trombone invisível – Conto de Fernando Canto para Obdias Araújo

Conto de Fernando Canto para o poeta Obdias Araújo.

Ainda era muito cedo.

O rapaz de uns vinte e cinco anos vinha no meio da rua tocando um trombone de vara, marchando alegre e sem medo de ser atropelado pelos veículos pesados que se movimentavam para pegar a rodovia JK. Ele soprava e punha a mão na boca do instrumento, ajustando-o. O tipo de música executada se assemelhava a um dobrado, já que seus passos seguiam em perfeita cadência rítmica, como se desfilasse numa parada escolar. Devia puxar o pelotão de uma banda musical que talvez lhe seguisse após a desobstrução da via. De vez em quando olhava para trás, mas sem parar de marchar.

Dobrei meu caminhão para o acostamento e esperei que passasse por mim. Eu disse:

– Ei, amigo, não estou ouvindo direito essa música.

Ele me olhou meio de esguelha, com certo ar de desprezo e apontou o dedo para a boca do instrumento, lamentando minha ignorância, querendo dizer que tocava com a surdina, pensei.

Deixei-o passar e o acompanhei pelo retrovisor. Seguia cadencioso no meio da rua esburacada, naquela manhã de abril, sob um céu plástico e chuvoso do equador. Eu já ia embora quando ouvi o som nervoso da buzina de uma carreta atrás de mim e o baque surdo de um corpo caindo ao chão. O moço, seminu, trajava apenas uma cueca branca e rota. Não havia trombone, não havia banda, não havia música.

Os pássaros madrugadores da cidade pousados nos fios de alta tensão da Eletronorte assustaram-se e fugiram desesperados com o som da morte, para descrever no céu as notas de um réquiem ao trombonista atropelado.

O Pedido – Conto de Mauro Guilherme

Conto de Mauro Guilherme

Antes de nascer fiz um pedido a Deus: queria ser feliz no amor. Nasci, cresci, casei e era feliz. Mas a minha esposa não era. Andava sempre triste pela casa. Ela lhe perguntava por que ela estava assim, mas ela não sabia me dizer. Então, eu rezei a Deus para que ele desse uma luz sobre o problema. Aí tive um sonho com ele: vinha de barba branca, cabelos grisalhos, com um cetro na mão. Eu perguntei-lhe sobre o que me inquietava. Pedi que me dissesse por que eu era feliz no casamento, mas a minha esposa não.

Ele me respondeu com voz de trovão: “Quando antes de nascer pediste para ser feliz no amor, esqueceste que isso poderia influenciar a felicidade alheia. Para que fosses feliz no amor, tive que fazê-lo casar com a mulher que amavas. Mas a mulher que amavas, não te amava. Ela casou contigo e não pode se separar de ti, por força do teu pedido. Tu vais ser feliz para sempre, mas ela não”.

Acordei daquele sonho sem alegria. Eu amava uma mulher que não me amava. Por isso ela era infeliz. Eu também não poderia ser feliz assim. De noite, antes de dormir, pedi a Deus que anulasse o meu pedido. Quando amanheceu, ela havia partido. Eu envelheci e morri infeliz no amor. Mas ela casou-se de novo, e seu casamento durou a vida inteira. Agora vou nascer novamente. Deus veio até mim e perguntou-me se eu tinha algum novo pedido. Eu disse que tinha: queria ser feliz no amor, mas só se quem eu amasse, me amasse também. Deus sorriu, abençoou-me e partiu feliz para o céu.

*Do livro “Histórias de Desamor” (2012).

CONSTELAÇÃO BORDADA NO PEITO – Conto de Isabela Lima

Conto de Isabela Lima

Mamãe prepara mingau de macaxeira com leite. Sorri enquanto me conta do arroz queimado no almoço. A panela ficou com o fundo da cor-da-noite-na-amazônia. Mamãe não está com raiva. Ela ri. Faz tanto tempo que a vejo raivosa pela casa. Mas hoje, por algum evento cósmico, ela ri. Meus olhos marejam enquanto rio também. Marejam, marejam me levando pra um tempo onde a única coisa que corria era o rio lá pelas bandas do Guajará, no Pará.

Eu não fazia ideia do tempo do relógio, mas sei que quando o sol estivesse quase baixando já era aproximadamente cinco da tarde, a mãe dizia. Íamos de galera, os primos todos, pra pular no rio e brincar de “pira-mãe” ou fazer acrobacias na água. Certa vez, um vento medonho preencheu a paisagem e o céu mudou de azul pra cinza num segundo. Uns trovões se aproximavam e eu olhava do meio da ponte o horizonte. Um primo mais velho se aproximou contando que se eu batesse repetidas vezes, bem forte, os braços, era capaz de voar. Disse ainda: “mas tu tens que acreditar com força pra poder acontecer”. E saiu. Prontamente fechei os olhos e bati forte os braços em movimento de passarinho. O vento chacoalhava os cabelos e o corpo envergava feito o ingazeiro. Fiquei ali por um bom tempo, num devir-pássaro, até que uma voz familiar gritou: “— sai dessa chuva, menina! Daqui a pouco tu apanha uma doença e eu quero ver”.

O vento soprava a noite mais pra perto. No interior da casa o meu peito, agora, ardia junto ao fogão à lenha. A mãe com a tia assavam enormes tucunarés e amassavam a bacaba, enquanto as filhas mais crescidas arrumavam a mesa com a toalha de flor, farinha torrada, pratos e talheres. A pequena lamparina evitava que engolíssemos espinhas. Pronto! O pequeno milagre da vida acontecia.

Insurge os dezembros entre as memórias. As mesmas lamparinas com seus foguinhos-bailarinos iluminando as trilhas no mato e de repente estávamos na capela celebrando o nascimento do menino Jesus. Aos poucos, barcos e canoas atracavam no porto. Pelo barulho do motor já se sabia quem vinha adiante: é o compadre Dico com a Maria. Chegavam sempre anunciando aquilo que mais me fascina na vida: o renascimento e a partilha. É natal. Sim! Natal no meio do nada. E eu queria dizer que o nada muito me interessa já que as estrelas e vaga-lumes ainda piscam bonito pra caramba dentro do meu peito.

Distraidamente as lembranças chegam rompendo muros, embalando a enorme fotografia pendurada do lado de dentro. Consigo ouvir de relance ainda, lá fora, os rituais de pesca dos botos sob a luz da lua. Na cabeceira da ponte as histórias de visagens arregalavam olhos, enquanto um medinho vinha vindo até se agasalhar no colo de alguém. Ninho. Tela a céu aberto. Cheiro de tempo entranhado. Ou qualquer outra palavra-ponte que permita o fluxo dos instantes.

DESTEMPO – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Era a primeira vez em muitos anos que eu não via Florentino Ariza* sentado sob a acácia da praça, que eu não pensava em Florentino Ariza. A manhã havia parado de correr às oito horas, cristalizada em um tempo imóvel, no ar inerte, no súbito silêncio do trânsito e dos cachorros que suspenderam a travessia da faixa de pedestres para olhar em direção às nuvens, pressentindo a imobilidade do tempo. O mendigo errante, que naquele dia morava no canteiro, ouviu a tristeza das raízes das papoulas sob a terra há dois meses sem chuva. Uma menina que viera de longe para assistir ao sol dos trópicos, com sua pele morim e sua sombrinha floral, paralisou-se atenta ao céu, espremendo entre as pálpebras o azul juvenil das íris.

Pelo tempo que durou o destempo. Passaram-se minutos que podem ter sido horas, que podem ter sido dias, meses, qualquer medida oficial de tempo, quando a manhã voltou a correr. Mas os relógios nos pulsos, nos bolsos, nos painéis ofuscados pela claridade das oito horas marcavam ainda oito horas. Foi quando os cachorros prosseguiram a travessia, o mendigo moveu o silêncio em direção à menina de sombrinha floral, que por sua vez apressou o passo atrás das borboletas que sobrevoavam as papoulas. Somente Florentino Ariza não voltou a aparecer sob a acácia. Foi necessário o destempo para apagar minha lembrança de Florentino Ariza.

*Personagem de Gabriel García Márquez em “O amor nos tempos do cólera”
**Conto publicado no livro Gatos Pingados

O DUPLO-ESTRANHO SOU EU? – Conto de Isabela Lima

Conto de Isabela Lima

É que ninguém ouve o que diz uma garganta entupida na multidão. Os olhos queimando, ardendo, falando uns sinais. Ninguém. A gente meio que se volta para projeções espalhadas nas vitrines das lojas nas ruas. Não é vazio um corpo sem rosto, sem tom, sem voz? Os teus gritos ultrapassam os vidros à sua frente?

Aos oito anos de idade, passeando pela feira, toquei no seio de uma manequim. Eu não acreditava que aquela mulher estava ali por vontade própria na mesma posição há horas. Queria saber sua história: de onde viera, quem a produziu e o porquê estava lá. Queria? Não mais, pois um olhar masculino reprovou o meu jeito de transver o mundo.

Mas oh, o ser humano é todo capaz de abrir novamente as suas frestas e compreender o que se passa lá fora. E há momentos em que ninguém nos olha. Então você sai de você e vai ser estrangeiro no mundo. Ele é seu palco. Mas eu fui sendo atriz pra dentro. Bem lá no fundo. Ouvi dizer que se quisermos algum dia mudar o exterior precisamos despertar e recriar primeiro o que temos por dentro. Descer até os porões? Arrancar os segredos da própria pele? Nossos muros ameaçando romper a céu aberto. Seus pensamentos ficam a ponto de estilhaçar quando alguém vem olhar mais de perto?

Raimundo perguntou, certa vez, como era viver fora da própria pele. Se eu gostava do que via lá fora, quando ia lá fora. Assim, pergunta à queima-roupa. Calei como quem espera uma sinfonia passar pela rua. – A gente sente o peito rasgando, meu bem. E se você força um pouco mais o cordão rebenta e o mundo te engole. Mas assim, eu não saberia explicar se ele primeiro te seduz antes de mastigar, ou se espera as tuas cores explodirem sozinhas.

E o que entendo de olhos, de jeito, de timbre, de mundo… De sinfonia? É que tudo isso, despretensiosamente, transpassa as janelas e rebenta no peito. Há um silêncio entre a travessia e o estouro: volto na feira, aos oito anos, tocando no seio daquela mulher.

Sobre Palafitas e a Maré de ser gente – Conto de Jaci Rocha

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Conto de Jaci Rocha

Era um dia ensolarado, daqueles de doer nos olhos, quando o sol está no ‘cio’, aqui pelo Equador. A beira do rio, à foz da fortaleza, o Amazonas ardia e brilhava, a ponto de encandear o olhar.

Meu pai pescava com meus irmãos, em uma canoa embaixo de uma ponte, que unia as estradas entre Macapá e Santana.

Foto: Floriano Lima

Eu – a pequena que não conseguia parar quieta e em silêncio – fiquei ‘na terra’, brincando com a filha do vizinho, sob o olhar de meu pai. Brincávamos sobre as palafitas que encobriam a superfície, pois em tempo de maré baixa, abaixo das palafitas, o mundo era feito de argila, barro que adquiria um brilho dourado e espelhado. Gostava de contemplar aquele chão.

Foto: Floriano Lima

E nesse contemplar, tudo era belo e descoberta. Um peixinho em uma poça de água que a maré havia ‘deixado’, uma plantinha desconhecida…e foi assim que, por sobre as frestas da palafita, entre bonecas e panelinhas, meu olhar enxergou uma nota de um ‘alto’ valor – ao menos, para minha tenra infância, – repousada sobre o barro.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Eram tempos da moeda ‘cruzado’. Empolgada, iniciei uma grande expedição de resgate do ‘pequeno tesouro’. Planejei milimetricamente, fui até o início da palafita e, esgueirando o corpo – absolutamente longe dos olhos de meu pai – mergulhei naquele mar de lama. Peguei a tão sonhada nota e voltei, triunfante e suja até os cabelos.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Tomei banho e aguardei o pescador voltar com os frutos dos trabalhos do dia. Ele veio sorridente. Eu estava banhada e de cabelos trançados, balançando a nota, sorridente. A maré do Amazonas começava a subir e um vento brincava com o vestido rosa claro que usava. Eu estava feliz e orgulhosa da ‘conquista’.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Aqueles olhos que chegaram brilhando fecharam o tempo. Perguntaram onde encontrei a nota. Respondi que foi embaixo das palafitas. Ele disse: ” E por que você pegou? não é seu. Devolva”. Com a inocência de uma criança de sete anos, corri na direção da palafita e, entre as frestas, ensaiei jogar a nota de volta à lama.

Meu pai, interrompeu o ato e perguntou “Filha, mas foi assim que você pegou?”. Inocentemente (e até bastante empolgada e orgulhosa), contei-lhe os detalhes da grande aventura. Meu pai, na sua sabedoria filosófica, falou: “Agora, tenha o mesmo trabalho para devolver, meu bem”.

Foto: Manoel Raimundo Fonseca.

Entendi o que ele esperava, meio perplexa. Sob um sol que caía aterrorizante, vestida naquele vestido rosa clarinho, vergonhosamente em silêncio, mergulhei novamente por debaixo das palafitas, e vi a maré de perto, chegar e misturar à lama, à beleza do vestido, recém-perdida, ao estranho sentimento de que devia mesmo fazer aquilo. Assim, devolvi a nota, no mesmo exato lugar em que a peguei.

Ao voltar para casa, meu pai explicou o que eu precisava aprender, ao fazer aquilo: Que tudo que você subtrai de alguém, ainda que esta pessoa não saiba ou veja, faz com que você mergulhe na sujeira. E devolver é mergulhar nesta mesma lama, pedir desculpas e retornar, inteira. Tenho certeza que esta foi a minha primeira lição sobre integridade.

Foto: Floriano Lima

Ah! Antes de retornar, tomamos um banho gostoso naquele rio lindo. E lá, fui ensinada a lavar o dia e aperfeiçoar o aprendizado, em um rio limpo e abençoado, com as dádivas de Deus e as coisas todas minhas, que nada poderia comprar: como o riso de meu pai, que algum tempo depois, naquela mesma paisagem, me ensinou a nadar e a andar pelas palafitas da vida com meu próprio tamanho. A descobrir os espaços, com meu coração e sob os próprios pés.

O retrato – Conto de Manoel do Vale

Homem triste de terno [retrato de John Lakeman pronto e pronto]
Conto de Manoel do Vale

Rita riu, quando viu. No quadro só havia a moldura. O retrato do marido sumiu. Melhor assim, ele estava triste naquele retrato. Terno preto, olhar distante, gomalina no cabelo, nem um sorriso.

Que bom que ele se foi. Poderia agora por uma foto sua, sorridente, com um vestido florido azul para combinar com o rosa suave da sala.

Rita foi à feira. Sacola de pano de companhia. Feijão vermelho seu predileto. Poderia agora levar uns cogumelos, marido se foi até do retrato.

Alface, rúcula, queijo da região, alho. Finalmente iria fazer sua salada preferida. A boca do marido não estava mais para reclamar do ardume da rúcula,da força do alho, da intolerância à lactose.

Sem o marido, Rita ficou muito bem na foto.

Os aviões – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Amanhecia quando começaram a passar os aviões. E o primeiro a passar foi o primeiro avião da vida do lugar. Nunca antes houve outro que tivesse sobrevoado tão remoto povoado ao sopé de tão remota montanha, onde tudo o que se via no céu eram as neves do inverno e as nuvens baixas que escondiam os sóis e as luas.

Naquele dia, as nuvens abriram espaço aos aviões e todos correram para os campos com o olhar perplexo para ver passarem os grandes pássaros de aço com seus roncos de monstro desperto. Os rostos queimavam de felicidade ao insólito desfile de meia dúzia de aeroplanos que faziam cinematográficas acrobacias, inusitados desenhos no céu.

As crianças eram as mais encantadas, e se habituaram logo à névoa mágica despejada sobre o povoado, pois as cerrações dos seus invernos na montanha eram infinitamente mais densas. Os velhos deitavam-se de costas, uns ao lado dos outros, para ver o espetáculo, e nem eles nem as crianças sentiam passar o tempo, hipnotizados pelo milagre da descoberta de sua existência pelos homens que possuíam aviões.

Quando não havia mais ninguém dentro das casas, quando todos se encontravam deitados ou sentados na relva, os aviões despejaram a linda névoa vermelha que magicamente levou os velhos, os jovens e as crianças para o sono sem volta.