Desligando os aparelhos – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

“Eu – pensou o Pequeno Príncipe – se tivesse cinquenta e três minutos para gastar, iria caminhando calmamente em direção a uma fonte.” Antoine de Saint-Exupéry

Já me imaginei abrindo mão de toda essa parafernália eletrônica que nos rodeia, quase nos sufoca. Comecei deixando de assistir a noticiários na TV. Depois, passei a rejeitar novelas, jogos de futebol e realities shows. Por fim, desliguei a televisão e pretendo não retornar a ela. Rádio também já faz tempo que não coloco meus ouvidos na missão de captar suas ondas sonoras. Filmes e séries também foram deixados de lado. Logo depois vieram as redes sociais: adeus, Instagram e Facebook, que eram as únicas que eu tinha. Twitter e afins nunca cheguei a acessar. Sim, é uma volta (ou um avanço?) ao primitivo analógico, aquilo que ficou para trás, desprezado pela maioria ultraconectada da população, nessa correria que a vida moderna impõe, que muitos chamam de dinamismo e eu chamo apenas de pressa e afobação.

O WhatsApp está em processo de desligamento, mas esse vai ser bem aos poucos, pois tem coisas, como o trabalho, que precisam desse aplicativo. De alguns grupos, faço questão de não participar. Como sempre digo (ainda que ninguém preste atenção): posso ser burro sozinho.

E-mail já faz tempo que não me vê entre seus usuários, mas isso não é exclusividade minha. Há algum tempo ele vem sendo negligenciado em nome de outros artifícios de comunicação.

Mas, ao contrário das pessoas que têm seus aparelhos desligados para que cesse o sofrimento da vida, o meu desligamento pode significar uma retomada à velha e sempre nova vida real, a renúncia à necessidade de estar o tempo todo correndo para acompanhar as novidades do mundo moderno. Quem sabe seja outra forma de comunicação, para mim mais autêntica e mais valiosa.

Já me vejo andando descalço pela margem de um rio, cabelo ao vento, até chegar ao pé de uma árvore. Sentarei em suas raízes, ao abrigo de sua sombra, abrirei um livro e me ligarei a outras modalidades de conexão.

E a notícia que o mundo ouvirá será: “O escritor Ronaldo Rodrigues, que também é o cartunista Ronaldo Rony, já está respirando sem o auxílio de aparelhos”.

Não joga pedra na Geni – Conto de Ronaldo Rodrigues

 


“De tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto / ela já foi namorada”. Eu era um perdido no caos do porto da vida e ela me amava assim mesmo. Desconsiderava minhas feridas e lambia meu corpo inteiro. Me colocava pra dormir em sua cama de papelão, sob a marquise de alguma loja. Ou no chão de um banheiro imundo. Ela acolhia a todos os famintos e dava de comer. Os que tinham frio, ela aquecia entre seus seios. Eu era mais um em sua teia, mas cada um sabia que era único.

Ela nos fazia amados e preparados pra amar. Nos fazia crer que era possível continuar a sugar da vida tudo o que ela trazia de bom. O que era ruim já se conhecia tanto. Não devíamos desperdiçar energia em ofícios vãos, preocupações metafísicas, o segredo dos astros, a fofoca da esquina. Que vivêssemos! Vivêssemos! Vivêssemos! Só isso!

Ela não fraquejou nem quando a carruagem parou na entrada do beco. O Dono do Mundo desceu reclamando suas carícias. Ele desejava ter aquela mulher que tantos tinham. Ele começou oferecendo dinheiro, joias, roupas, viagens ao exterior. Ela disse não a um homem que não estava acostumado a ouvir essa palavra tão pequena na forma e tão grande em sua significação. Ele ofereceu toda a sua fortuna e ouviu outro não.

Por fim, ofereceu apenas o seu amor. Quando ela duvidou disso, ele passou à chantagem. Colocou todos nós, os mendigos, como reféns. Ele só queria uma noite de amor, senão mandaria nos matar. Ela olhou o Dono do Mundo por longo tempo. A limpeza de suas ricas roupas a enojava. Seu perfume caro causava náuseas. Seu sorriso com todos os dentes lhe dava repugnância. Ela nos olhou e sorriu. Aceitaria aquela tortura por nós. E nós, covardes, não fizemos um gesto de impedimento. Também podíamos tão pouco. Ele apenas anteciparia a matança.

“Ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira” e foi embora, nos deixando vivos. Ela nos abraçou e abençoou nosso cheiro azedo, nosso hálito de cachaça, tabaco e fome. Aquele homem que era dono de tudo não era nada perto de nós. E se a cidade toda quiser, um dia, apedrejá-la vai encontrá-la subindo aos seus céus, como uma santa, levando pelas mãos todos os perdidos.

Ronaldo Rodrigues

*Geni e o Zepelim – Letícia Sabatella (Chico Buarque):

Verdade seja dita – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sim, eu não sou o dono da verdade, pois a pessoa que me vendeu a verdade, em suaves prestações, mentiu pra mim. A verdade, na verdade, pertence a todo mundo que quiser ostentar o título de dono da verdade. A verdade tá pouco se lixando pra quem ainda a leva a sério, pra quem ainda dá importância a esse conceito volátil e volúvel.

No fim da negociação, antes que a pessoa que me vendeu a verdade partisse para suas férias num paraíso fiscal qualquer (deve ter vendido a mesma verdade pra muita gente e enriqueceu), compreendi que as prestações, que eu achava tão suaves, de suaves nada tinham. Eram massacrantes. Fui eu, euzinho, que fiquei inebriado pela ideia de ser o detentor da verdade, e agora tenho que pagar por isso infinitamente. Fui eu que me iludi achando o preço razoável. Eu me machuquei de verdade com aquela miragem que se dizia verdade. Depois, apareceu outro sujeito querendo me vender uma verdade de segunda mão, arranhada, meia-boca, mas ainda ostentando fumaças de grandeza, restos de um esplendor do fim do século XIX, quando ainda tinha algum valor no mercado, nem precisava de tantos documentos para que fosse comprovada. Aí eu disse não! Eu não precisava de ninguém para ter a verdade, eu mesmo invento a minha verdade, que, para existir, basta apenas que eu acredite.

O conceito atual da verdade foi caindo tanto que agora cada um tem a sua, é dono da sua verdade, como se fosse um pet, e dane-se se essa verdade tem a ver com qualquer resquício de coerência. Pode ser contrária a qualquer lógica, mas, se o sujeito quer acreditar mesmo, é capaz de criar todo um contexto em que sua verdade se encaixe e ganhe ares oficiais.

Outro dia vi um leilão online em que várias verdades estavam expostas. Nestes tempos em que a eleições se aproximam, como um círculo de tubarões cercando o náufrago à deriva no oceano, milhares de verdades estão à venda. Pode-se até alugar uma verdade pra usar em alguns momentos. Uma verdade – quase – absoluta é ótima para algumas situações.

Encontrei uma verdade perdida na rua e levei pra casa. Estou alimentando essa verdade com muitas mentiras e adestrando na base do ódio. Quando estiver bem grande e robusta, vou soltar a minha verdade em cima de qualquer um que venha com uma verdade que se pretenda mais verdadeira que a minha. Quando estiver cansado e insatisfeito, vou passar a verdade adiante ou sacrificá-la. Já estou de olho em outra verdade, uma bem tecnológica, o lançamento mais recente do mercado. Vou comprar pela internet direto da China. Os fabricantes me garantiram que nessa verdade eu posso acreditar, mas é bom ter um estoque de verdades de menor calibre para usar no dia a dia.

Vejo autoridades corruptas reivindicando sua verdade. Vejo pastores vendendo sua verdade. Vejo grupos armados defendendo sua verdade. Vejo marqueteiros maquiando sua verdade. Vejo candidatos espalhando sua verdade. Até sou capaz de ver a verdade, sim, a própria, a legítima, a única. Ela está deitada, dormindo tranquila, ao lado da minha cama.

Malhando os malhadores (Crônica muito porreta de Ronaldo Rodrigues)

Semana Santa. Sempre que chega esta data fico pensando no sentido de justiça de certas pessoas. Elas pegam Judas e fazem o diabo com ele. Malham o cara de todo jeito. Dizem que é a única forma de fazê-lo pagar pelo crime de ter traído Jesus. Isso é o que mais me preocupa. Se tudo já estava escrito, segundo a própria Bíblia, qual é a culpa de Judas? Se há culpa, é de quem escreveu.

Prefiro acreditar que Judas foi um elemento para que a história se cumprisse da forma que se cumpriu. Judas foi um aliado de Jesus e agiu daquela forma para que tudo saísse segundo o roteiro do Todo (Todo é como chamo o Todo-Poderoso na intimidade). Ora! Parem com esse negócio de associar o nome de Judas à traição. E parem de fazer essa justiça esquisita que comporta todo tipo de torpeza que vocês veem no cara, que condenam nos outros, mas que em vocês é aceitável.


Traidores são vocês! Traidores da palavra de Deus! (vocês são quem vestir a carapuça). Na verdade, sou a favor da reabilitação de todas as figuras malditas da Bíblia, pelo mesmo motivo: não foram elas responsáveis por seus destinos. Como dizem os árabes: maktub! (estava escrito!).

Portanto, Judas, Caim, Lúcifer, Barrabás, Pilatos, Herodes etc. devem ser vistos como personagens desempenhando seus papéis. Aí algumas pessoas dizem que há o livre-arbítrio, que esses personagens poderiam ter tomado outro caminho. E como ficaria a palavra do Todo?

Na verdade, os cristãos (a maior parte deles) confundem tudo. Esse papo de dizer que Jesus morreu para nos salvar acho exagero e injusto com o cara. Cada um tem que fazer por si, pela sua salvação, e não achar que está tudo bem, bastando ir à igreja rezar que – abracadabra – estamos salvos. Muito confortável, não acham?

Agora vou me despedir porque tem uma multidão de fanáticos correndo atrás de mim querendo me linchar. E olha que eles nem leram esta linhas. É que estou com barba e cabelo grandinhos e estão me confundido, claro, com Judas. Por que não me confundem com Jesus Cristo? Ah, daria no mesmo! Só que, em vez de me linchar, eles me colocariam na cruz. Ó my God!

Ronaldo Rodrigues

Como se não fosse para consolar – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

E esse tempo, mano? Que coisa doida.

É o jogador de futebol, craque no campo, perna de pau do lado de cá do jogo.

É a Madonna que vem fazer show. Mas isso não é um revival dos anos 1980?

É um tal de Partido Conservador recolhendo assinaturas para ser criado. Essas pessoas querem conservar o quê? A escravidão? O preconceito? Só pode. Elas fazem a defesa da família tradicional, aquela em que o marido tem três amantes, espanca a esposa e oprime os filhos.

É Jesus Cristo insultado cada vez que um pastor pilantra abre a boca em seu nome.

São stand-ups sem graça e podcasts previsíveis. O humor fuzilado no paredão, com suas vísceras expostas, com transmissão simultânea em todas as plataformas disponíveis.

São os reallity shows e seu lance de transformar nulidades em celebridades. Será a falta de assunto, que precisa ser preenchida?

São as mulheres assassinadas alimentando tristes estatísticas. São os injustiçados do mundo esperando a justiça, que tarda e falha.

É a guerra da guerra da guerra transmitida pela assessoria de imprensa da própria guerra. Só pra gente não perceber que a guerra está em toda parte, caso se tenha consciência.

É a Alexa, que faz tudo por nós. Liga a lâmpada, a TV, nos aconselha, dirige o carro e a nossa vida. Sim. Estamos prontos para a paralisia.

É o clima que está louco, mas compreensível, com tanta porrada que o planeta tem suportado.

É esse patriotismo torto, raso, doente, falsamente cristão, que defende tortura e apoia crimes.

São as ciclovias ocupadas por carros estacionados.

São as calçadas promovidas a estacionamentos privativos.

São os fios elétricos que despencam dos postes e ficam espalhados pela calçada.

É aquela família daqueles bandidos da politicagem federal, que sempre tentaram ser grandes mafiosos, mas não passam de batedores de carteira, ladrões de galinha.

É uma humanidade que matou um cara há 2.000 anos e se acha salva através da morte desse cara.

É esse tempo que a gente tá vivendo, mano. Mas escrevi esta crônica como se fosse para consolar. Sei não. Eu mesmo estou precisando de consolo agora. Mas nem tudo está perdido se as flores continuam nascendo e todo tempo ruim desaparecerá. Eu creio!

E se eu tivesse dublê? – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Seria legal, né? Eu não me preocuparia com tropeções, quedas, acidentes. É muita viagem da minha cabeça? Tudo bem. Estou aqui é para viajar mesmo. Se não puder soltar minha imaginação neste espaço, totalmente autoral, onde mais?

Aqui eu nem preciso de dublê. Aqui eu sou o dublê, sem deixar de ser o astro do filme. Posso me jogar de cima da montanha mais alta. Posso morrer numa cena e aparecer vivo em outra, sem um arranhão sequer. Mas na vida aí fora não é assim e é preciso tomar muito cuidado.

Fico vendo esses skatistas em suas manobras radicais. Se eu tivesse dublê, arriscaria umas manobras bem loucas. Qualquer escorregão mais fora do controle e eis o meu dublê caindo por mim. E nem precisaria me preocupar com ele, que seria um profissional supertreinado para me substituir nas cenas de perigo e usaria os equipamentos de proteção mais incrementados possíveis, aqueles que os dublês de Hollywood usam.

E poderia ir além do aspecto físico. O meu dublê estaria em condições de enfrentar qualquer situação em que eu me metesse. Fazer uma prova para um concurso público, por exemplo. No momento em que as questões ficassem complicadas de ser resolvidas, apareceria o dublê pronto para atuar em meu auxílio e responderia com total precisão.

Outras situações: se eu tivesse que ficar até tarde no trabalho, o dublê ficaria trabalhando no meu lugar enquanto eu iria me divertir na balada. Como ele seria onipresente, também iria comigo ao bar ou à boate. Se acontecesse de eu ficar muito bêbado a ponto de ir ao chão, a cada vez que eu caísse seria o dublê caindo, não eu. No dia seguinte, caso a ressaca tomasse conta, eu ficaria de boa, enquanto o dublê é que teria os incômodos.

Acho até que, em algumas ocasiões, esse dublê existe e se chama anjo da guarda. Só a existência de um ser assim pode explicar as vezes em que saio pela madrugada, enlouquecidamente bêbado, e chego em casa são e salvo de qualquer distúrbio que acontece na noite. Vai ver que é ele que toma o meu lugar quando a coisa fica feia.

Vou ficar atento ao aparecimento do meu dublê-anjo da guarda. Vou recebê-lo com todas as honras e fazê-lo crer que sua presença é indispensável mesmo nos momentos em que não há sinal de perigo.

A Moça do Tempo – Crônica de Ronaldo Rodrigues (com ilustração de Ronaldo Rony)

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Aos 19 anos, Mariana completou 30.

Sempre à frente de seu tempo, Mariana menstruou aos 70 e perdeu a virgindade aos três.

O tempo era seu passatempo. Seus banhos demoravam duas semanas, mas para comer cinco pizzas e três refrigerantes, dois segundos e meio bastavam.

Mariana se casou com seu avô, este com sete anos. Seu filho mais velho nasceu depois dos trigêmeos, que vieram ao mundo separadamente, em Estocolmo, Kingston e Bruxelas.

Seus netos a conheceram na festa de seu 15º aniversário, quando ela, já completamente senil, ainda não havia nascido.

Sempre que perguntada pelas horas, Mariana respondia que faltavam quinze dias para dois minutos, tempo em que viriam o calor infernal do inverno, as flores no outono, a primavera hostil e o verão glacial.

Mariana começou a escrever suas memórias antes dos 150 anos e as concluiu com apenas dois dias de nascida.

Seus pais começaram a namorar 20 anos antes de se conhecerem.

Depois do mestrado e doutorado, Mariana ingressou na alfabetização, onde aprendeu a ler todos os livros que ainda não haviam sido escritos. Foi quando Mariana pediu um tempo ao tempo……………………………………………………………

Então, todos os relógios do mundo marcaram a mesma hora. Quando seu primeiro ancestral iniciou sua proliferação, bem no começo de toda a existência, o tempo fechou para Mariana. As ampulhetas explodiram e os relógios, com seus ponteiros apontados para ela, gritaram numa só voz:

– Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou! Seu tempo acabou!

A fonte da velhice – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Como? Cinquenta e oito anos? Nem parece!
Ele ouvia sempre isso quando o assunto idade vinha à baila.
– Tem cara de 42, por aí.
Quando tinha 15 anos, achavam que ele tinha 9. Aos dois anos de idade:
– Nossa! Parece recém-nascido!
Era barrado constantemente em festas. Nem mostrando a carteira de identidade se livrava do estigma:
– Você não pode entrar! Essa carteira deve ser falsa! Vá embora já, senão vão te prender! Falsificação de documento é crime!
Quando tinha 25 anos quis namorar uma menina de 18. Ela foi categórica:
– Não namoro com garotos de 14 anos. Não insista!
Aquilo já estava se tornando paranoico. Aos 58 anos, sem rugas, sem um fio de cabelo branco e com muita disposição, ninguém poderia supor que ele já ultrapassou a marca de meio século. Nem a barba, que deixava crescer de vez em quando, conseguia conferir à sua aparência um pouco mais de idade.
Foi então que, ao contrário de Ponce de León, navegador espanhol que partiu pelo mundo à procura da Fonte da Juventude, ele começou uma jornada a fim de encontrar um meio de aparentar a idade madura que tinha, o que ele achava que poderia atrair mais respeito para a sua pessoa.
Eis que, passados alguns meses longe dos amigos, ele apareceu com um visual bem diferente do que o havia marcado até então, com muitas rugas ao redor dos olhos, na testa e nas mãos, e os cabelos completamente brancos. E foi logo explicando, diante dos olhares de espanto:
– Algumas vezes, na história e na literatura, pessoas reais ou personagens da ficção fizeram pacto para manter eternamente a juventude. Eu fiz um pacto ao contrário, para me tornar mais velho, ou, pelo menos, que minha aparência faça jus à idade que tenho. Procurei um cirurgião plástico. A princípio, ele estranhou alguém no mundo recorrendo a um cirurgião plástico com a intenção de envelhecer. A maioria, na verdade a totalidade das pessoas, quer rejuvenescer. Ele relutou em fazer a cirurgia e eu mostrei todos os argumentos e o principal deles era:
– Doutor! Eu estou de saco cheio de ouvir as pessoas falando que pareço ter menos idade do que realmente tenho!
Ele falou isso com as mãos agarradas ao colarinho do médico, que foi convencido a fazer a cirurgia graças a um bem-vindo reforço de capital, alguns reais acima do valor que ele costumava cobrar.
Foi então que o nosso personagem concebeu mais um mito em torno da questão do passar inexorável do tempo. Ele criou a Fonte da Velhice, uma fonte da qual ninguém quer chegar perto, mas todo mundo se encaminha para ela e há de encontrá-la um dia.

Iara – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

A madrugada toda foi de chuva. As ruas ficaram alagadas. Quase toda a cidade ficou paralisada, esperando as águas baixarem. Eu acordei cedo, como todas as manhãs, para ir ao trabalho, mas tive que esperar até 10 horas para poder sair. Quando abri a porta, vi um peixe enorme estirado no pátio. Revirando aquele peixe, vi que ele ainda estava vivo, se debatendo levemente. Examinando melhor, constatei que não se tratava de um peixe. Era uma sereia.

Levei a sereia para dentro, agasalhei-a, esquentei uma sopa e dei para ela que, muito debilitada, talvez pelo esforço de nadar entre a maresia que o temporal tinha provocado, sorveu bem devagar.

Ela foi, aos poucos, recobrando a consciência e perguntou onde se encontrava. Eu disse que ela estava numa cidade à beira de um grande rio, que ficou maior ainda por causa da chuva forte. Falei que eu precisava ir ao trabalho e que ela poderia ficar em casa, descansando. Na volta, nós pensaríamos numa maneira de devolvê-la ao rio.

Quando voltei, encontrei a sereia no sofá da sala, assistindo a uma novela na TV. Ela tinha varrido, espanado e arrumado a casa toda, que estava brilhando, muito diferente de quando eu saí. Ela disse que aquilo era um agradecimento pela forma como eu a tinha tratado.

E a sereia foi ficando, ficando. Depois de três dias, já dormíamos juntos, ela tomava conta da casa, fazia comida, tudo com muito esmero. Até que senti ameaçada a minha resolução de eterna solteirice. A convenci a voltar para a sua casa, fosse lá onde fosse, imagino que nos recônditos do imenso rio.

Ela compreendeu, se despediu, muito educadamente, e partiu. Mas, sempre que o temporal e a saudade vêm mais forte, ela me faz uma visita.

A ARCA DE NÃO É – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Depois do temporal fiquei olhando aquele mar sem fim que a chuvarada tinha plantado.

Eu tinha ficado só no mundo, depois do dilúvio.

Minha preguiça não me permitiu concluir o grande barco que a voz tinha dito para eu construir.

Era um sonho louco que eu tinha toda vez que chovia muito.

Uma voz me dizia para eu construir um barco imenso, onde coubessem muitas espécies de animais.

Uma dessas chuvas poderia demorar muito a passar, alagar e afogar todos os que não estivessem no barco.

Até comecei.

Pedi a um amigo construtor de barcos para desenhar um esquema que eu pudesse executar.

Ele esboçou uma arquitetura naval impressionante, bem mais avançada que as loucuras de Da Vinci e sem aquelas frescuras que Niemeyer adorava inventar.

Julio Verne não teria conseguido imaginar algo tão engenhoso.

Desenhou um barco que, se estivéssemos num filme, poderíamos batizá-lo de Titanic, tal sua imponência e capacidade de navegação.

Eu fiquei de comprar o material e construir o bruto do barco, do jeito que a voz mandou.

Mas dava uma preguiça danada pensar naquilo, aliada ao fato de que a inflação crescia e o dinheiro diminuía.

Sei que se tivesse me empenhado teria conseguido juntar a grana.
E não estaria agora só, no meio do mar.

Vou dormir e tentar sonhar com a voz. Quem sabe ela me diz o que fazer.

Uma crônica baseada em baseados reais – Crônica de Ronaldo Rodrigues

GinoflexForever

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Mais uma história verídica quase ficção do meu amigossauro Ginoflex Vinil.

Tocou o celular, eu atendi:

– Alô.
– Fala, Ronaldo!
– Fala, Gino. Qual é o papo?
– Tá rolando uma festinha aí na tua casa?
– Não é bem uma festa, só uns amigos reunidos. Fizemos aquela coleta básica e compramos umas latinhas.
– Eu posso ir praí?
– É… Pode! Mas olha lá, hein! Tu vais trazer algum amigo contigo?
– Vou. O senhor sabe que eu sempre levo alguém.
– Mas quantos tu vais trazer?
– Calma, Gabiru! Relaxa! Vou levar dois.
– Dois? Tá legal. Pode vir.

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Desliguei o celular e me reuni aos três amigos que conversavam e bebiam no pátio de casa, lá no bairro do Trem. Fiquei um pouco apreensivo porque eu sabia que o Ginoflex costumava SE convidar para as reuniões de farra e aproveitava para convidar muita gente. Eu estava pensando nisso quando o Ginoflex apareceu dentro de um carro com mais cinco pessoas. Ao lado, parou outro carro, este com seis pessoas dentro.

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Ginoflex e Ronaldo Rodrigues

O Ginoflex, com aquele jeito todo à vontade, foi logo me apresentando a galera. Na discreta, chamei o Ginoflex para o lado:

– Porra, Gino! Eu falei que não era uma farra grande e tu disseste que só ia trazer dois amigos!
– Calma, Gabiru! Eu falei que ia trazer dois! Dois carros!

Eu compreendi e sorri com mais uma do Gino. Já ia me recolher ao meu canto quando ele, abrindo um pacote de uma erva (que eu não vou dizer aqui), falou com a cara mais sem-vergonha deste meio do mundo:

– Mas eu trouxe outras coisas também, Gabiru!

Aí demos início ao ritual de boas-vindas. Se é que me entendem.

Rompi com o mundo SQN – Croniqueta meia-boca pós-Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Croniqueta meia-boca pós-Carnaval de Ronaldo Rodrigues

Tentei romper com o mundo, mas parece que foi sem sucesso. Parece, não! FOI sem sucesso! Ser ermitão na Idade Média deve ter sido mais fácil. Agora, com esse monte de recursos, a solidão e o isolamento parecem mais distantes.

Mas o que digo aqui trata-se de uma ruptura simbólica, ou vontade apenas. O fim do Carnaval traz para mim essa coisa de fim/começo de ciclo. Logo, vem a tal da reflexão sobre isso. Foi-se a folia, que virou cinza, e outra urgências se apresentam.

Já que não sinto ressaca (a não ser que sono possa ser chamado de ressaca), para me ocupar com alguma coisa, me restou partir para esta reflexão que ora coloco diante de vossos olhos.

Para muitos, o ano só começa depois do Carnaval. Para mim, é assim também, mas tem uma certa coerência. Vejamos: logo depois das farras de Natal e fim de ano, vêm as celebrações do meu aniversário em janeiro, que faço questão de comemorar, já que sempre pode ser o último (um dia será). Depois, engato no Carnaval, que não deixo escapar de jeito algum.

Pois bem, o Carnaval passou e me deixou esta reflexão que sabe-se lá irá servir para alguma coisa, tipo entender que, se não rompi com o mundo, é porque ele não merece toda essa atenção.

Pelo menos, rendeu esta croniqueta meia-boca. O Carnaval foi ótimo, veremos o resto. Bom ano a todos.

Bloco do Eu Sozinho – Crônica de carnaval de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sigo eu, sozinho, seguindo a mim mesmo, neste bloco de amigos e inimigos invisíveis, alguns inexistentes, sobras de outros carnavais. Pálidas lembranças de confetes e serpentinas. Fantasmas de pierrôs e arlequins. Saudade de colombinas.

Sigo cego, a esmo, sempre o mesmo, sob a chuva. Não a chuva de papel picado. A chuva, essa que vem devagarinho e fica por muito tempo, a desmanchar a maquiagem, a se misturar às lágrimas que caem da máscara, as lágrimas formando outra chuva.

Meu samba atravessa a avenida e eu atravesso o samba. Sou desclassificado, é lógico. A corte marcial do Rei Momo é implacável. Se ano que vem ainda existir carnaval, se houver ano que vem, devo desfilar no segundo grupo. Mas, como sei que não posso deixar o samba morrer, que não posso deixar o samba acabar, o jeito é me acabar no samba.

Sigo esse bloco, sou esse bloco, despido de fantasias, em choque com a realidade, e espero me recuperar da ressaca nas cinzas de outro carnaval. Quarta-feira há de chegar, a me cobrar responsabilidades de quem sobreviveu ao folguedo, e eu estarei preparado (estarei preparado?) para ir ao seu encontro.

Fantasia real – Crônica de carnaval do Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

No Carnaval, saí fantasiado de mim, de eu, de eu mesmo. Ninguém me reconheceu. Andei pelos lugares que frequento, pelo Caos, pelo Formigueiro, pelo Bar do Nego, pelo Underground. Nessa ordem. Eu estava com minha fantasia intitulada “Eu, Eu, Demasiadamente Eu, Absolutamente Eu” e ninguém sacou quem era aquela pessoa ali fantasiada. Quase cheguei ao ponto de gritar para aquela multidão de foliões:
– Ei! Sou eu que estou aqui!

Só não fiz isso porque achei que, mesmo assim, não se levantaria um cristão sequer a me apontar o dedo pra fazer a revelação que eu precisava, gritando no mesmo tom do meu grito:
– Olha só! Descobri quem está por trás dessa fantasia! É ele!

Acompanhei a Banda, na esperança quase desesperada de que alguém me descobrisse, e nada. Quando, finalmente, rasguei a fantasia, me desnudando totalmente, mesmo assim não ouvi o que tanto desejava há tantos Carnavais. Que alguém, se descobrindo, me descobrisse:
– Sou eu! É ele!

Ao fim do Carnaval, que se estendeu pra muito além do calendário, desisti da ideia de que me revelassem. Voltei pra casa, já quase em cinzas, e um cachorro de rua chegou a mim, retornando também de sua quadra carnavalesca. Tirando a fantasia de cachorro e ainda permanecendo cachorro, ele rosnou de uma forma que não sei se foi de raiva, carinho, surpresa ou alerta. Ou todas as respostas anteriores. Esse rosnado eu traduzi assim:
– Ei! Eu sei quem tu és!

Ele se calou, contrariando a minha vontade de que aquele cachorro fizesse um comentário mais longo, mais abrangente. Ficamos em silêncio e o nosso segredo se sagrou, sangrou, se cristalizou. Quem sabe se, no próximo Carnaval, a gente se revela…