Bloco do Eu Sozinho – Crônica de Ronaldo Rodrigues

BlocoSozinho

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sigo eu, sozinho, seguindo a mim mesmo, neste bloco de amigos e inimigos invisíveis, alguns inexistentes, sobras de outros carnavais. Pálidas lembranças de confetes e serpentinas. Fantasmas de pierrôs e arlequins. Saudade de colombinas.

Sigo cego, a esmo, sempre o mesmo, sob a chuva. Não a chuva de papel picado. A chuva, essa que vem devagarinho e fica por muito tempo, a desmanchar a maquiagem, a se misturar às lágrimas que caem da máscara, as lágrimas formando outra chuva.

Meu samba atravessa a avenida e eu atravesso o samba. Sou desclassificado, é lógico. A corte marcial do Rei Momo é implacável. Se ano que vem ainda existir carnaval, se houver ano que vem, devo desfilar no segundo grupo. Mas, como sei que não posso deixar o samba morrer, que não posso deixar o samba acabar, o jeito é me acabar no samba.

Sigo esse bloco, sou esse bloco, despido de fantasias, em choque com a realidade, e espero me recuperar da ressaca nas cinzas de outro carnaval. Quarta-feira há de chegar, a me cobrar responsabilidades de quem sobreviveu ao folguedo, e eu estarei preparado (estarei preparado?) para ir ao seu encontro.

C a f a r n a u m

Crônica de Ronaldo Rodrigues
 
Trechos de uma entrevista de Elias Cafarnaum, filósofo que, segundo o próprio, jamais existiu.
 
Assim falou Cafarnaum:
 
• Nascemos nus. É a gloriosa mecânica da vida. Nascemos nus para que venham o Estado, a Igreja e a sociedade nos obrigar a vestir roupas, valores, credos, ideologias…
 
• Acredito que, em vez de acumular coisas, as pessoas deveriam ir, ao longo do caminho, se despojando das coisas que já possui.
 
• Comecei a fumar aos 14 anos. Mas, profissionalmente, somente aos 19.
 
• Certa vez fui à farmácia comprar camisinha. A atendente perguntou se eu queria uma camisinha com mais ou menos lubrificante, com esse ou aquele odor, e muitas dessas pirotecnias aí. Respondi que bastava uma camisinha, uma simples camisinha. Os efeitos especiais ficariam por minha conta.
 
• Desconfio de qualquer comida que, por um motivo ou outro, não se pode colocar farinha.
 
• Quem nunca se viciou que atire a primeira pedra. De crack.
 
• Não é difícil acreditar na existência de Deus, mas é impossível acreditar em sua bondade. Só uma mente pérfida e uma total falta de sentimentos poderiam criar algo tão repugnante quanto o ser humano.
 
• O artista é antes de tudo um forte. Um forte candidato ao anonimato e à frustração.
 
• Quando a morte se apresentar não quero ter um centavo sequer no bolso.
 
• Você acorda de um sonho magnífico, se levanta no maior astral, toma o seu banho com imenso prazer e sai disposto a partilhar sua fraternidade com o mundo. Aí vem um serzinho qualquer e estraga tudo. Que merda!
 
• Uma vez li a frase ama-te a ti mesmo, de Sócrates. Achei que se tratava de masturbação. Estou nessa até hoje.
 
• Sou imune à decepção. Ninguém me prometeu nada e eu não espero nada de ninguém.
 
• O que eu acho das pessoas? Quando eu conhecer alguma eu digo.
 
Cafarnaum virou esta crônica, mas é também um vídeo experimental que tem a seguinte ficha técnica:
 
Roteiro/texto: Ronaldo Rodrigues
Imagens: Alexandre Brito / Tuto Pessoa
Edição: Tuto Pessoa
Direção: Alexandre Brito / Ronaldo Rony
Elias Cafarnaum foi interpretado por Aldo Cefer

De como fui fuzilado e não crucificado como a mídia afirma

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

– Fogo!!
Ao comando do grito, os gatilhos são acionados. As balas vêm cantando em minha direção. Depressa. As balas estão com muita pressa. E vêm cantando em minha direção. As balas, duas delas, atingem meu peito à altura do coração. Outra me acerta no queixo. A mais cruel delas me perfura o crânio. Entre os olhos. Foi assim que eu morri.

Ressuscitei no terceiro dia e permaneço vivo até hoje. Por segurança, me mantenho incógnito. Assim como Osama, Hitler e Elvis. Do meu esconderijo hiper-mega-max-power-ultrassecreto, assisto a todos os filmes que fazem sobre a minha vida, paixão e morte. Nunca vi um filme sequer, dos milhares que existem, que fale a verdadeira verdade. Também nunca li nada que desfizesse esse equívoco. Creio mesmo que alguém sabe que minha morte se deu por fuzilamento e não por crucificação, mas jamais revelará esse segredo, já que todo o aparato da Igreja repousa sobre essa ilusão. Não é a cruz o símbolo do Cristianismo? Seria uma mão de obra imensa trocar a cruz por outro símbolo. Teriam que mudar todo o design, o papel timbrado, reescrever o Novo Testamento, refazer esculturas e pinturas de um Jesus pendurado na cruz. Melhor deixar do jeito que está.

Mas daqui do meu ninho, no meu Big Brother particular, onde assisto a todos os movimentos dos seres humanos, seus segredos mais íntimos e suas falhas mais descaradas, fico pensando numa possível revelação. Um dia aparecerei para alguém para contar a verdadeira história da minha morte. E esse alguém dirá a todos que Jesus Cristo foi fuzilado e não crucificado como a mídia afirma. Que toda a história, pelo menos o desfecho, está errada. Melhor não. Esse alguém poderá ser crucificado por semelhante blasfêmia. E uma distorção a mais sobre a minha existência, sobre a minha missão, a esta altura não faz a menor diferença.

Só me resta permanecer aqui mesmo, escondido, sonhando com um mundo melhor e acordando assustado com o pesadelo que quase toda noite de desperta. É quando ouço o grito do comandante do pelotão:
– Fogo!!
E as balas vindo cantando em minha direção.

Escritos de insônia (textos-dropes de Ronaldo Rodrigues)

Chegará o dia em que você, saindo de casa, já no jardim, se dirigindo à garagem, dará por falta das chaves do carro.
Aí será tarde demais.
Você terá que prosseguir a pé todo o seu caminho.
 
O espelho se recusou a me olhar de frente.
Pior pra ele.
O cinzeiro o acertou em cheio.
Ficaram os estilhaços do meu rosto 
espalhados/espelhados pelo chão.

 

Os ossos dos meus ancestrais andam junto comigo.
Fazem parte do meu esqueleto.
Dividem comigo os rangidos e gemidos do meu reumatismo.
 
Existe um momento da vida em que você é o mocinho do filme que tem que desarmar uma bomba, salvar a humanidade e beijar a mocinha.

Para isso você só precisa cortar um fiozinho vermelho ou um fiozinho azul.
Quando esse momento chegar, largue tudo e vá tomar uma cerveja.

 

O ventilador oscilando pra lá oscilando pra cá pra lá pra cá pra lá pra cá acaba de me hipnotizar.
 
Mulheres são amantes e mães.
Às vezes nos confundimos e ficamos entre seus seios.
Tentando descobrir qual deles sugar com volúpia.
Qual deles sorver com paixão.

 

Quando nascemos viemos nus.
É a gloriosa mecânica da vida.
Viemos nus pra que venham a Família, a Sociedade, 
o Estado e a Religião nos cobrir de roupas, ideias, comportamentos, dogmas…
E fazer alguns de nós pensar que é possível lutar contra tudo isso.
 
Ronaldo Rodrigues

Duas crônicas sem muito o que dizer

Crônica de Ronaldo Rodrigues

É sempre assim quando vou gozar. Olho para a parede cinza do meu quarto e fico pensando no que ela significa para mim. Ela, a que me refiro, não é a parede cinza. É a mulher com quem transo.

Finalmente, chego ao gozo e a mulher, a quem dediquei minha melhor performance, volta para seu lugar, embaixo da cama. Não. Não é uma revista de nus femininos. Nem uma boneca inflável. É uma mulher mesmo.

Volto a olhar para a parede cinza. Volto a pensar no que ela, a mulher, significa para mim. No que as mulheres significam para mim. Estendo o pensamento para uma aranha, que faz sua teia na antena da televisão. O que essa aranha significa para mim? O que eu significo para a aranha? O que eu significo para mim? O que, finalmente, a vida significa para mim?clube da luta (11)

Poderia ficar aqui pensando essas coisas, infinita e indefinidamente, mas, neste momento, meu organismo já se recuperou da trepada e quer mais sexo. Puxo a mulher do seu lugar, embaixo da cama, e agora reconheço: ela significa tudo para mim.

*** *** *** *** *** *** ***

Do fundo do baú, a vida me acena. Estive com ela há alguns dias. Ela estava bem, apesar da tosse insistente. Naquela ocasião, convidei a vida para um passeio. Me vesti da vida e saí pela cidade a esmo, como sempre. Vi pessoas que não me viram, cumprimentei alguns conhecidos e fiquei com a mão no ar, esperando que alguém a apertasse.

Minha vida sorriu e me olhou assim de soslaio. Isso queria dizer que ela não estava satisfeita. Argumentei que a coisa iria melhorar. Era só ir ao lugar certo, encontrar as pessoas certas.

Minha vida olhou novamente aquele seu olhar que diz saber que eu era um sonhador, que não adiantava ficar jogando pérolas aos porcos.

Voltei com minha vida e a devolvi ao baú, de onde ela me acena agora. Fecho o baú e vou embora. Quem sabe um dia eu dê mais sorte e ofereça à minha vida um pouco mais de diversão…

A noite dos peixes

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Conto de Ronaldo Rodrigues

A Assembleia Extraordinária convocada pela Grande Ordem dos Peixes não foi atravancada por discursos prolixos ou questões de ordem burocrática. Terminou em poucos minutos, com os Peixes optando por uma firme tomada de decisão frente aos atos praticados pelos Pescadores.

Foi elaborado um manifesto em que os Peixes reclamavam da violação de um antigo pacto firmado pelos ancestrais de Peixes e Pescadores. O pacto celebrava a harmonia entre ambos os lados e determinava a proibição da pesca de filhotes pequenos e de fêmeas grávidas.

Em seu manifesto, os Peixes sugeriam vários caminhos para a conciliação, mas deixavam clara a intenção de invadir a aldeia, caso os Pescadores não fizessem valer os itens do pacto.

Na tarde daquele mesmo dia, o mar levou até a praia o envelope timbrado da Grande Ordem dos Peixes. O Chefe dos Pescadores, obrigado a interromper a sesta para ler o manifesto, ficou com o humor ainda mais azedo.peixes2

O manifesto foi lido entre um bocejo e outro e logo o Chefe dos Pescadores desatou a rir estrepitosamente. As gargalhadas se multiplicavam à medida que os outros Pescadores tomavam conhecimento do teor do manifesto.

Em meio à onda de zombaria, sem conter as gargalhadas, o Chefe dos Pescadores enfiou o manifesto no envelope, escreveu displicentemente que Peixes não escrevem manifestos, e o devolveu ao mar.

**** **** *****

No dia seguinte, os Pescadores voltaram a violar o pacto. Ao retornarem da pescaria, trouxeram em suas redes
, entre os Peixes adultos, que era lícito pescar, uma grande quantidade de filhotes pequenos e fêmeas grávidas.

Os Peixes ficaram convencidos de que não adiantaria qualquer esforço para evitar o confronto. Reuniram-se rapidamente, formando um numeroso exército, e conceberam um plchuva-de-peixeano de ataque para aquela noite.

**** **** *****

Na aldeia, os Pescadores faziam uma grande festa, comemorando o sucesso da pescaria, e não perceberam um estranho rumor se elevando pouco a pouco. Os Pescadores só puderam ouvir quando o rumor se transformou num barulho ensurdecedor, que ultrapassou as ondas sonoras lançadas pelos alto-falantes que animavam a festa.

Os Peixes vieram navegando pelos ares e o atrito de seus corpos com o vento era o que produzia aquele barulho, anunciando um trágico desfecho.

Os Peixes continuaram sua marcha, investindo contra tudo e todos, derrubando portas, destroçando paredes, derrubando casas.

Enredados pela violenta tempestade de Peixes, os Pescadores corriam de um lado a outro da aldeia, na vã tentativa de defender suas famílias e propriedades.

Após alguns minutos de ataque, que aos Pescadores pareceram horas, os Peixes voltaram ao mar, deixando na aldeia uma trilha de sangue e destruição, onde se retorciam corpos agonizantes.

**** **** *****

Ainda hoje, decorridos muitos anos, se escuta na aldeia-fantasma o lamento de dor que os Pescadores deixavam escapar, tentando salvar seus filhos pequenos e suas fêmeas grávidas.

Algo assim como memória

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Me levanto decidido da c10866799_4928482907480_309457484_nama e me sento no sofá imundo, cheio de garrafas vazias e pontas de cigarro. Depois, pego um papel velho e passo a escrever. Já fui queimado na Idade Média, sabia? Por que isso sempre me vem à mente? Também já fui roubado em Las Vegas, num daqueles cassinos superluxuosos. É outra coisa que sempre me vem à cabeça. Por que essa insistência de uma possível memória? Será que já vivi outras vidas? Será que estou realmente vivendo está vida aqui? Ou será só uma condenação se repetindo à exaustão, com o único propósito de me deixar cada vez mais pra baixo?

Sei que estou sendo obervado. Sei que há câmeras por toda parte. É como se eu fosse um micróbio observado através de um microscópio. Mas não vou dar a quem me observa o prazer de ler estas palavras. A não ser que uma câmera tenha sido instalada em meus olhos. Eles são capazes de tudo e, agora, a tecnologia permite mais coisas, mais formas de você ficar exposto.10866919_4928483947506_257949853_n

Me levanto do sofá, tusso, disfarço, passo a mão nos cabelos. Me olho no espelho tentando descobrir algo novo, além das rugas e da barba cada vez mais branca. Sei que tem um sinal escondido no meu olhar, esse olhar que minha imagem me lança do espelho. Constato, tardiamente e para sempre, que não sou mais um menino e jamais voltarei a ser.10866649_4928484347516_1913451682_n

Olho para a ampulheta. Ela ainda vai demorar muito a completar o ciclo. Sinto a areia me sufocando, soterrando os meus dias, sem redenção para as minhas noites. Não vou ficar aqui lamentando ou deixando pra lá, dando de ombros, num autodesprezo que não convence ninguém.

Quebro a vidraça da janela, pulo, saio correndo. Não sou mais ágil, talvez nunca tenha sido, e eles me capturam. Eles estão encapuzados. Eles me levam novamente para o quarto, para a fogueira. A ampulheta é virada e começa uma nova/velha contagem. Estou outra vez em Las Vegas.

A história que eu não quero contar

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Crônica de Ronaldo Rodrigues

Ligo a televisão e dou de cara com um telejornal mundo cão, esses noticiosos horrorosos que espirram sangue na sala, sujam o tapete e mancham o resto do dia. Uma moça conta a história de seu irmão, uma história que eu não quero contar. A história, essa que não quero contar, é mais ou menos assim:

A moça falando ao repórter:
– Meu irmão voltou do trabalho mais cedo, pois tinha recebido uma grande notícia. O chefe chamou meu irmão para conversar na sala da diretoria. Meu irmão ficou apreensivo, claro. O chefe só chamava alguém em particular para passar sermão, dar esporro, essas coisas. Meu irmão revirou a memória e não conseguiu lembrar nada que pudesse ter feito de errado. Meu irmão se preocupou à toa. O chefe fez vários elogios, dizendo que meu irmão tinha um futuro grandioso e que toda a diretoria estava muito satisfeita com o seu desempenho.

O chefe falou assim: – Você mostrou em pouco tempo que pode crescer muito na nossa empresa. Seu trabalho tem sido avaliado e admirado por todos nós. Temos certeza de que você vai chegar ao topo num tempo muito curto. Resolvemos aproveitar o seu trabalho num posto mais elevado. Amanhã mesmo você assume sua nova função, como chefe do seu setor. Claro que o seu salário também vai aumentar, como contrapartida das responsabilidades que você vai ter de agora em diante. Em nome da diretoria, eu lhe parabenizo. São quatro da tarde, tire o resto do dia de folga, vá comemorar com a sua família, com a sua namorada, como você quiser. Ou vá descansar para começar amanhã sua nova função com toda a energia.

Meu irmão ficou radiante de felicidade, assim como nós, da família, quando soubemos do seu sucesso. Minha mãe começou a fazer um bolo para comemorar e meu irmão foi ao mercadinho da esquina comprar uma coisa de que ele gosta muito: uma maçã. Ainda saiu dizendo assim: – Acho que eu mereço uma maçã!

Se eu tivesse aproveitado esse momento para desligar a televisão ou mudar de canal, a história seria perfeita. Mas eu continuei e aí está a hRR11istória que eu não quero contar.
A moça falando ao repórter:

– Pois é. Meu irmão foi ao mercadinho comprar a tal maçã e aconteceu…
A moça passa a chorar. A câmera fecha no rosto angustiado dela, como sempre acontece nesses programas. O repórter instiga, quer saber o final da história, a história que eu não quero contar.

A moça:

– Veio um homem, sabe-se lá de onde, e deu dois tiros no meu irmão. Ninguém sabe o motivo, ninguém sabe de nada. O homem fugiu e ninguém sabe dizer que era ele. Quando levaram meu irmão para o hospital, ele já estava morto…

Anacrônica crônica (Ronaldo Rodrigues)

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A vida é uma merda. Algumas pessoas, como tu, devem pensar isso, de vez em quando. Ainda mais neste clima de fim de ano, de promessa de fim do mundo.

Concordo contigo, amigo, amiga, camaradas. A vida é uma merda. Mas imagina-te sofrendo um acidente daqueles bem escrotos, de moto ou carro. Ou uma bala perdida achada na tua coluna vertebral. Ficarás tetraplégico e fodeu-se. Tu vais pensar então:

– Porra! Não é que a vida nem estava tão ruim assim?

Tudo isso pra dizer que tudo isso é um grande mistério. Mas isso o quê? Do que estávamos falando mesmo? Coisa terrível é essa coisa que um dia se chamou memória. Ainda mais agora que os insetos do inverno estão chegando. O inverno, propriamente dito, nem sinal de chegar. Enquanto isso, vou fritando meu cérebro a 36 graus à sombra.HEEADER2

Dentro do meu aquário de segurança máxima vou apascentando minhas ovelhas negras, alimentando minha fome de justiça e saciando minha sede de vingança. Fome de justiça e sede de vingança. Eis um bom tema. Fica registrado, portanto, para ser desenvolvido em futuras crônicas.

Procuro um canal de TV, um canal de esgoto, um canal arterial. Sei lá o que a madrugada comporta. É preciso estar prevenido: camisinhas, cigarros, cerveja. Ou algo assimviva_la_vida. Drogas ilícitas no cardápio.

Preciso também mudar de figurino. Não fica nada bem andar assim com esses trapos, a afirmar aos jornais especializados que essa é a minha moda. Que a minha moda não segue moda. A minha moda é assim. A minha moda é foda.

Bobagens gratuitas na tela. Manchetes espirrando sangue. Quando foi que tudo isso começou? No dia em que o primeiro ser deu o primeiro suspiro? Pode ser. Aliás, tudo pode ser. Inclusive usar a palavra inclusive quando não há muito o que dizer. Pra ganhar tempo. Parece aquele tipo de gente que está falando muito bem e de repente enfia um a nível de… Que merda!

Por isso vou escrevendo. Tem gente que lê essas coisas que escrevo, sabias? Tem gente pra tudo neste mundo. Gente capaz de ler um poema, gente capaz de escrever um poema. E gente capaz de entrar numa escola e sair atirando a esmo. Loucura esse mundo, louca essa gente.

Ah, sim! Lembrei do que estava falando no início deste texto. A vida é uma merda, mas nem está tão mal assim. Merda serve pra adubar o terreno. Quem sabe outras flores brotarão?

E a Eu uso óculos

Crônica de Ronaldo Rodrigues

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Quando morrer, quero ser sepultado de óculos. Preciso ver o que há (se há) do outro lado da vida/da morte. Fernando Pessoa, que era muito mais sábio que eu (que tu e que todo mundo), pediu os óculos antes de morrer. Suas últimas palavras foram exatamente essas: “Dá-me os óculos!”. Não acredita? Taí o cantor/compositor Sergio Salles que não me deixa mentir. Ele compôs uma bela canção sobre esse fato.

Mas o que eu quero dizer (e o que é que eu quero dizer?) é que quero ir para o outro lado da morte/da vida usando óculos, para ver com clareza tudo o que imagino existir do outro lado. Se bem que, às vezes (como agora), imagino que tudo o que se revelar depois da morte estará totalmente fora de qualquer especulação que se possa ter feito aqui, em vida. Será 974766_4841996305369_104740260_num desafio a qualquer imaginação. O delírio mais desvairado será incapaz de ser tão alucinado quanto a verdade que a morte vai nos trazer.

Pensando bem, neste momento, digo que não! Não quero óculos! Em alguns momentos (como agora), achei que os óculos eram demais na vida. Será do mesmo jeito depois da vida. Deixem-me míope também na morte. Deixem que minha visão fique turva para toda a eternidade. Na morte, não precisarei nem dos olhos. Sempre acreditei que tudo o que veio comigo nesta vida é emprestado. As mãos, a língua, as orelhas, os cabelos, o sexo… Que retornem à terra, pois, se vim dela, devolverei a ela tudo que usei. Portanto, nada de óculos! Pelo menos enquanto não mudo de ideia. Ou de óculos.

Se arrependimento matasse… (conto de Ronaldo Rodrigues)

Conto de Ronaldo Rodrigues

– Você vem sempre aqui?
Cantada velha, mas ela esta a fim de ser apanhada em qualquer cantada.
– Sim. Eu sempre venho aqui na esperança de ouvir uma cantada original. Mas essa serve. Vamos para sua casa?
Ele recua. Não está acostumado com essa facilidade. A cantada é sempre a mesma, a única que ele tem, mas nunca funciona. É apenas um protocolo que cumpre nos bares. Ele precisa disso para comprovar sua ideia de que todo homem bêbado precisa de uma mulher para findar a noite.
– Vamos ou não para sua casa? Ou prefere um motel? É casado?
Ele recua mais ainda. Está quase arrependido de ter iniciado a conversa. Além do mais, nem está tão bêbado assim.
– Vai responder ou não? Se não está a fim, diga logo. Não quero voltar pra casa hoje sem ter transado.
Ele não recua mais porque já tinha recuado muito.
– Vamos conversar mais um pouco.
– Sei. Você é das antigas. Mas não quero intimidades. Pra que conversar se amanhã ninguém se lembrará de nada mesmo? Aliás, é melhor assim, sem criar laços.
Ele permanece mais um tempo calado, depois fala, sem muita convicção:
– Tudo bem. Vamos a um motel aqui perto.
– Ótimo.

Chegam ao motel e ela logo fica nua. Deita-se na cama, enquanto ele vai ao banheiro. Quando volta, ela dispara:
– Ainda está de roupa? Você é muito vagaroso.
– É que eu não estou acostumado com essa… essa… 
– Essa o quê?
– Sei lá! Você tem razão. Sou mesmo das antigas. Preciso de um estímulo maior.
– Vou dar o estímulo que você precisa.
Liga as palavras aos gestos. Levanta-se e o joga na cama. Arranca sua camisa, abre o cinto, puxa a calça, tira a cueca e se joga em cima dele, que fica imóvel e não consegue corresponder às carícias cada vez mais quentes. Ela busca todo o seu arsenal de jogos eróticos, até que, finalmente, consegue que o corpo dele tenha uma reação.

Depois de alguns minutos, os dois fumam, quando batem na porta. Ela permanece calma, enquanto ele pula da cama:
– Quem será?
– Só abrindo a porta pra saber.
– Você tem alguma coisa a ver com isso? Qual é o plano? Me assaltar?
Ela vai até a porta, falando entre um sorriso sem graça:
– Que onda…

Ela abre a porta e atende à funcionária do motel, que lhe entrega um bilhete e se retira.
– É só um bilhete. E é pra você.
– Um bilhete? Pra mim? Aqui? Quem poderia saber que estou aqui? E quem mandaria um bilhete pra mim?
– Só vai saber se ler o bilhete.
– Eu vou ler, mas essa história está muito esquisita. Aposto que você tem alguma coisa a ver com isso!
– Deixa de paranoia e lê logo a merda desse bilhete!
Ele abre o bilhete e o lê várias vezes, em silêncio. Ela perde a paciência e arranca o bilhete de sua mão.
– “Cuidado! Você está em perigo!”. O que significa isso?
– E eu sei? Você deve saber! Tenho certeza de que está metida nisso!
– Escuta aqui, cara! Você já não é bem grandinho pra inventar essas histórias? Pra quê que eu ia armar pra cima de ti? A gente se encontrou por acaso na merda daquele bar. Se arrependimento matasse…
Ela não termina a frase. A funcionária do motel abre a porta novamente e dispara três tiros. Ela, com um resto de vida, ainda têm tempo para perguntar:
– O… que é… isso?
Ele, agora abraçado à funcionária do motel, sorri entre baforadas de cigarro:
– O bilhete não é pra mim. É pra você. É o tal do arrependimento. Como você pode ver, arrependimento mata…

Microcontos de Ronaldo Rodrigues


MINHA VIDA É UM MAR DE ROSAS
Disse Elvira se afogando mais uma vez.

ONANISMO
(ou está tudo acabado entre nós)
Ao deceparem minhas mãos
dissolveram meu harém.

CAPITÃO GANCHO TAMBÉM AMA
Numa dessas ainda leva Sininho pro navio.

E SE EU ESCALASSE ESSA MONTANHA?
Pensou a aranha pouco antes de aceitar a missão.

AI, MEU FÍGADO…
Você ainda me mata do coração!

QUERIDO DIÁRIO
Vou rasgar-te, queimar-te, perder-te…
Apagar-me.

MEMORANDO DE DEUS PARA LÚCIFER
Considere-se demitido!

ORELHÃO QUEBRADO NO MEIO DA MADRUGADA
– Caraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalho!

OVERDOSE
Depois do pó
o pós.

BANDA SEM FUTURO
Aqui jazz
(esta teve colaboração de Marconi Lima)

A FLOR
Despetala para despertá-la.

COM A MORTE
– Enfim, sós…

Ronaldo Rodrigues

BUROCRACIA É O FIM

– Vim falar com Deus.
– Tem hora marcada?

MUDARAM AS ESTAÇÕES
No outono, no inverno,
minha prima Vera vira verão.

BLÁ-BLÁ-BLÁ
Quando faltar assunto, fique em silêncio.

CUIDADO – FRÁGIL
Quebrei meus olhos nas plumas do caminho.

BALA PERDIDA NÃO EXISTE
Todo coração tem endereço fixo.

MATOU A SAUDADE
Deu um tiro no peito.

GANGORRA
– Olha como eu toco no chão!
– Olha como eu toco no céu!

BASEADO BLUES
Fumaça colorida no ar de Barcelona.

FOLHA DE PAPEL A ME DESAFIAR
Te risco.
Me arrisco.

NO PAÍS DO CARNAVAL
Na quarta-feira, deparou com as cinzas do pierrô.

PÁSSARO NA GAIOLA
Só a ilusão conseguiu fugir.

ME DEIXASTE!
Me vingo te amando mais.

EM BRANCAS NUVENS
Lá vai a vida assim
sem saber se foi bom ou ruim.

MUDARAM AS ESTAÇÕES
A flor e a folha mudaram de ramo

MINHA VIDA É UM MAR DE ROSAS
Disse Elvira se afogando mais uma vez.

ONANISMO
(ou está tudo acabado entre nós)
Ao deceparem minhas mãos
dissolveram meu harém.

CAPITÃO GANCHO TAMBÉM AMA
Numa dessas ainda leva Sininho pro navio.

E SE EU ESCALASSE ESSA MONTANHA?
Pensou a aranha pouco antes de aceitar a missão.

AI, MEU FÍGADO…
Você ainda me mata do coração!

QUERIDO DIÁRIO
Vou rasgar-te, queimar-te, perder-te…
Apagar-me.

MEMORANDO DE DEUS PARA LÚCIFER
Considere-se demitido!

ORELHÃO QUEBRADO NO MEIO DA MADRUGADA
– Caraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalho!

OVERDOSE
Depois do pó
o pós.

BANDA SEM FUTURO
Aqui jazz
(esta teve colaboração de Marconi Lima)

A FLOR
Despetala para despertá-la.

COM A MORTE
– Enfim, sós…

Ronaldo Rodrigues

Três bebedeiras memoráveis

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Bebedeiras fazem parte da vida de um escritor. Tá, tudo bem! Nem de todo escritor. Eu, que me sinto escritor (às vezes) e beberrão (sempre), curto a embriaguez de ser um escritor beberrão. Muitos sabem que gosto de me sentir Charles Bukowski. Quer dizer: poucos sabem e quase ninguém se importa, mas sempre que leio Bukowski recebo a entidade Bukowski e as únicas coisas que me interessam nesses momentos são uma garrafa de cerveja ou vinho barato, um cigarro mais barato ainda e uma puta bem puta mesmo.

Gosto do mito que se cria em torno de um escritor. O mito de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, que não dão entrevistas e não frequentam os lugares. O mito de J. D. Salinger, que não se deixava fotografar. O mito de Paulo Leminski e Jack Kerouac, que viviam uma espécie de convulsão da literatura. E por aí vai, mas voltemos ao título. Que título? O título da crônica, caralho!

As três bebedeiras memoráveis que menciono no título são aquelas que consigo lembrar, claro, já que são memoráveis. Uma delas se deu numa passagem de ano. Era no século passado e eu ainda morava em Belém. A bebida era champanhe e eu não era (e ainda não sou) muito fã de champanhe, pois achava muito fraca. E era aí que estava o erro. Aconteceu aquilo que dizem de champanhe. Ela veio cercando devagarinho e quando me toquei já não me tocava de mais nada e toquei a fazer besteira. Atravessei a Marambaia inteira sob o efeito da champanhe, tirando onda com todo mundo, cantando alto e feliz da vida. E até hoje não sei se é A champanhe ou O champanhe.

Outra bebedeira legal foi na abertura de uma exposição (ou vernissage, como queiram). Não sei como está hoje, já que vivo longe (mas bem perto) de Belém há 17 anos, mas, no final dos anos 80, Belém fervilhava de vernissages. Eu e minha galera da época íamos a uns quatro vernissages por semana. E sempre regados a bons vinhos brancos e outras bebidas. Pois bem: dentro do quesito outras bebidas, certo dia encontrei uma sangria muito doida. Depois de sangrar toda aquela sangria, fiz uma porção de loucuras na galeria até que alguém mais sensato me pediu, educadamente, pra dar o FOOOOOOORA DAQUI, SEU MARGINAAAAAAAAL, ANTES QUE EU FAÇA UMA SANGRIA NA TUA CAAAAAAARA!

A terceira e última bebedeira louca (terceira e última para as finalidades desta crônica, que fique esclarecido!) foi na casa de um amigo, já aqui em Macapá. Depois de um bolo de maconha, muitos baseados e muitas cervejas, apareceu uma garrafa de absinto. Aí, mano, imagine o que aconteceu. Se conseguir imaginar, me diz aí, por que eu, até agora, estou vendo gnomos.

Até a próxima bebedeira ou até a próxima crônica. O que vier primeiro. Saúde!