Poema de agora: Flor de Metal – Romano e Pat Andrade

FLOR DE METAL

tua beleza pinta na retina
o sabor do amor
tão forte é a dor de se carregar
sua alma no pote d’água

existe uma longínqua caminhada
até a aprovação
o mundo precisa de voz
e uma linda canção

mas para ouvir canções
é preciso ter coração de escutar
encurtar as distâncias
entre o sentir e o olhar
é preciso compreender as auroras
e colecionar luares

eu os trago desenhados
na palma da mão esquerda
deixo a direita livre
pra tocar suavemente
a flor da tua alma

Romano e Pat Andrade

Breve resenha do livro O Centauro e as Amazonas, de Fernando Canto – Por Elton Tavares (para @fernando__canto)

Por Elton Tavares

Em “O Centauro e as Amazonas”, Fernando Canto, dono de um realismo fantástico peculiar, cria narrativas que prendem a atenção do leitor ávido para o desfecho do causo. Os contos deste livro  misturam um pouco do folclore e lendas nortistas, cotidiano amazônida e saberes da floresta, temperados com hilários personagens em sua maioria. Noutros, o autor beira à confissão sobre sua vivência e sua jornada.

O escritor, que é estudioso observador do seu mundo, nos apresenta personagens criados em seu multiverso para saltar do surreal para a nossa realidade. Bons exemplos são o Ditirambo, Pira e Versiculorum, entre outros surreais chegam a ser irônicos dentro de suas estórias.

Além disso, a obra possui uma variedade literária que promove um charmoso contraste do humor com a delicadeza e sabedoria de, por exemplo, “Caminhada”, “Tu a minha Espera” e “Poesia que não se Esgota”. Assim é Fernando Canto, um contador de estórias surreais dentro de contextos cotidianos, tudo isso com sua literária que é a surpresa, o final do conto, no que vai dar o en-Canto.

Acostumado a surpreender positivamente, vide seus outros quatro livros de contos anteriores, Fernando Canto segue eclético em “O Centauro e as Amazonas”, sempre como ficcionista de alto nível que usa a região amazônica como matéria prima. É isso.

Poema de agora: Sentimento de novos e usados – @juliomiragaia

Sentimento de novos e usados

I
Sentimento de urubu
Sentimento de lixo virado
Sentimento de jogo do bicho
Sentimento de poste apagado

Sentimento carcaça de gato
Sentimento calor do caralho
Sentimento terreno baldio
Sentimento de praça com mato

Sentimento de tábua frouxa
Sentimento poeira no asfalto
Sentimento de feira vazia
Sentimento de novos e usados

Júlio Miragáia

A tradição dos Ilhéus no Amapá – Crônica de Fernando Canto

Foto: Gabriel Penha

Crônica de Fernando Canto

Apenas para complementar o meu artigo anterior, denominado “A Presença Açoriana em Macapá”, é que deixo a julgamento dos leitores a necessidade de incluir na programação dos 250 anos de fundação de Macapá a participação das autoridades madeirenses e açorianas nas comemorações de 04 de fevereiro de 2008. É uma opinião que acalento há alguns anos e vejo como positivo e saudável, a exemplo do que o Governo amapaense fez ao inaugurar o monumento em Mazagão Velho depois das descobertas de ossadas humanas, quando das prospecções arqueológicas nas ruínas da velha igreja local.

Pelo lado diplomático acho procedente a inclusão dos descendentes dos povoadores ultramarinhos nesse processo, pois assim pela primeira vez teremos oportunidade de manter uma relação diplomática e mais estreita com esses lusitanos insulares. A sua participação, poderia, inclusive, ser ponto de partida para futuros projetos de cunho sócio-cultural, quem sabe através da Fundação Galouste-Gulbekian, do Centro de Estudos de História do Atlântico e de tantos outros órgãos afins existentes em Lisboa, Coimbra, Funchal, Machico, Faial, Graciosa, etc., e ainda no Brasil como em Santa Catarina, que também foi colonizada na mesma época por esses mesmos povos.

Antiga Vila de São José de Macapá. Imagem encontrada no site “Meu Mapa na História”.

Desde que os bravos emigrantes aqui aportaram em 1752 ficou o Amapá para sempre marcado pelos seus fazeres, notadamente no aspecto religioso, administrativo e cultural. Para o historiador José Manuel de Azevedo Silva, da Universidade de Coimbra, muitos desses ilhéus ficaram marcados como pessoas bem sucedidas ao explorarem as sesmarias que lhes foram concedidas e que em pouco tempo puderam provar que pelo trabalho da terra foi-lhes permitido ganhar fortuna e status. “Alguns deles passaram a integrar o rol dos homens-bons e a saírem nos pelouros de eleições dos oficiais das câmaras municipais. É o caso da família dos Picansos, naturais da ilha da Graciosa dos Açores. Concretamente, na eleição dos oficiais da câmara da vila de São José do Macapá para o triênio de 1762, 1763 e 1764, saíram eleitos nos pelouros Antonio José Picanso como juiz e André Correia Picanso como procurador. E um tal Sebastião Correia Picanso era então procurador das dependências dos moradores de Macapá e, com o intuito de impedir que fosse transferir para outra localidade, como pretendia o governador do Pará, alegou junto do rei os prejuízos que daí lhe adviriam, nomeadamente pelo facto de aí ter dois filhos a estudar: um deles, Manuel Correia Picanso, estudava gramática, latim e retórica; o outro, Tomás Nogueira Picanso, aprendia latim e gramática”.

A festa do Divino Espírito Santo, conforme aponto em A Água Benta e o Diabo, instituída pela rainha Santa Isabel de Aragão e El-Rei Dom Diniz, no século XI, “irradiou-se por todo o território português e instalou-se com raízes profanas no arquipélago de Açores”. Mas ela também é realizada nas freguesias de Porto Santo, Caniçal e Machico, localidades da ilha da Madeira. É muito semelhante aos rituais intrínsecos a festa do Divino realizada em Mazagão em agosto e no Marabaixo de Macapá. São recolhidas as ofertas e escolhidos os festeiros. Em alguns locais era costume se organizar romarias nas igrejas levando novas ofertas para a festa. Após a missa era organizada a “Mesa dos Pobres”, quando se reuniam os doze habitantes mais pobres da região e lhes era oferecida uma refeição. Essa prática foi extinta, pois era pouco recomendável a exposição da pobreza. Então foi substituída pela oferta de alimentos ou dinheiro a esses mesmos doze pobres. Há bandeiras, coroas e insígnias do Espírito Santo e a figura do imperador, uma tradição mantida por lá e perdida em Macapá. Em setembro é realizada a festa de Nossa Senhora da Piedade na freguesia do Caniçal, na Madeira. A imagem no alto de um morro é reverenciada pelos pescadores em procissões no mar, em barcos enfeitados com bandeiras que também lembram de alguma forma a bela procissão da meia lua ocorrente no Igarapé do Lago, Carvão e Mazagão Velho, em julho.

(*) Do livro “Adoradores do Sol – Textuário do Meio do Mundo, Scortecci, São Paulo, 2010.

Sonhar vivendo – Crônica de Telma Miranda – @telmamiranda

Crônica de Telma Miranda

A maioria das pessoas, e durante muito tempo eu me incluí nisso, na vida adulta, se deixa engolir pela rotina, compromissos, boletos, problemas, trabalho, ambições e segue como se os dias fizessem parte de uma grande gincana onde cada minuto é vital para cumprir as tarefas e chegar.

Mas aí quando paramos e nos questionamos: “chegar onde?”, surgem as crises existenciais aos que se permitem. Outros sequer param, pois a urgência e importância dos afazeres estão em lugar privilegiado no ranking de prioridades, pouco sobrando para pensar em si mesmo.

Uma vez participei de um evento onde a palestrante contava sua experiência com crianças de comunidades carentes no sertão, que em seu projeto recebiam a oportunidade de participar de aulas de reforço na alfabetização, teatro, pintura, desenho, música, com o objetivo de fortalecer o lado lúdico e alimentar o sonho dos pequeninos que ali residiam, já tão maltratados pela seca, ausência de energia elétrica, água encanada e outras dificuldades que somos sabedores.

Ocorre que em seu relato, o que mais me chamou atenção foi quando ela falou que em um momento de intervalo, quando todos estavam lanchando, perguntou aos infantes quais eram os sonhos deles e as respostas foram das mais variadas: alguns sonhavam em tomar banho de chuveiro, estudar em escola melhor, ter um sapato, tomar uma Coca-Cola sem dividir com ninguém, e pasmem!, a grande maioria, crianças entre sete e nove anos, afirmou não ter sonho algum.

E eu, na plateia da palestra, tocada pelas respostas que para mim são atividades rotineiras, passei a me perguntar qual era o meu sonho, e depois de muito pensar cheguei a triste conclusão de que minha vida estava tão triste e automática que eu sequer me permitia sonhar.

Se por um lado me sentia privilegiada por ter acesso a maioria dos “sonhos” elencados sem qualquer dificuldade, por outro me senti miserável por não ter um sonho, e isso me incomodou, gerando uma mudança de comportamento que me trouxe grandes benefícios pessoais.

Decidi a partir daquele momento, que seria mais generosa e amorosa comigo mesma. Que me permitiria o ócio, eu que sempre fui uma máquina de trabalhar, sem dia ou hora, e tal ócio me permitiu grandes descobertas. Passei a viver o momento, sentir os cheiros, gostos, sensações e um tomar um banho, ler um livro, gargalhar com os meus, tomar um sorvete, passaram a ser experiências muito mais deliciosas.

Não quero de forma alguma instigar ninguém a achar sua vida ruim, pelo contrário, mas justamente achar a beleza que se esconde todos os dias de olhos ocupados e distraídos. Encontrar satisfação, realização, relevância e sentido. Encontrei meus sonhos justamente aí: nos detalhes e na simplicidade. E hoje posso dizer que os tenho, os vivo diariamente e estou aberta e ter cada vez mais novos sonhos. Experimenta aí! Vale muito.

Telma Miranda

* Telma Miranda é advogada, fã de literatura, música e amiga deste editor.

 

Sinto falta!! – Crônica de Elton Tavares

Arte: Hellen Cortezolli (sinto falta também de ter esse rosto da foto)

Quem me lê, sabe: sou um incorrigível nostálgico.

Pior (ou melhor, depende do ponto de vista), quando começo a devanear sobre as coisas que me fazem falta, saudades de pessoas, situações e épocas, aí a “emoção se conecta ao pensamento e ao sentimento” (como diria Vinicius de Moraes). É quando discorro sobre grandes e pequenas carências do cotidiano.

Sinto falta do meu pai, a maior falta da minha vida. Do meu irmão que mora em Belém (PA), que me brinda de tempos em tempos com sua presença. Sinto falta de conviver com minha sobrinha linda, de apenas sete anos de vida.

Sinto falta dos velhos amigos, os que me distanciei por conta de pedras em minhas mãos e dos que não tenho contato hoje em dia por conta dos afazeres da vida.

Sinto falta do cotidiano frenético de redações. Sinto falta de poder comer porcaria sem receio de ficar maior do que estou ou de afetar minha saúde. Sinto falta dos tempos que bebia muito e não tinha ressaca e de quando eu podia beber. Sinto falta dos meus velhos vinis, fitas cassetes e CD’s de Rock, pois agora só tenho arquivos em MP3.

Sinto falta de tremer ao entregar um boletim de notas escolares. Sinto falta de promover festas de rock e de viajar com frequência.

Sinto falta do tempo que era mais bonito (ou menos feio), mais ingênuo, mais empolgado, menos duro, desconfiado e cético em relação ao mundo (e quase todos que nele vivem).

Sinto falta de passar horas jogando videogame e falando merda. Também sinto falta de uma boa briga. Sim, sinto saudade da infância, da adolescência e dos 20 e poucos anos.

Sinto falta da velha rapaziada, do mau comportamento e das más companhias (risos). Sinto falta de escrever algo realmente bom, pois a correria tira totalmente a minha inspiração. Sinto falta do passado, não todo, somente da parte feliz e de tudo que ficou lá.

Sinto falta mesmo é de não ter ficado mais tempo com algumas das fantásticas mulheres que passaram pela minha vida. E sinto uma falta absurda da minha avó, assim como todos os outroas meus que viraram saudades. Essas ausências me fazem muita falta. E como fazem!

Disse uma vez o sábio Drummond:  “Sentimos saudade de certos momentos da nossa vida e de certos momentos de pessoas que passaram por ela”. É isso!

Elton Tavares

Só vale se for intenso (e completo!) – Por Telma Miranda – @telmamiranda

Imagem encontrada no site “Olhe os Muros”, no endereço: https://olheosmuros.com.br

Leminski já falava que devemos deixar de lero lero, pois não existe sexo sem amor se todo tesão é sincero e essa é uma discussão que há tempos divide as pessoas.

Até concordo com Leminski sob certos aspectos, mas claro que falo por mim, pois para que eu chegue às vias de fato, o processo normal é gradativo, de conhecimento, diálogo, envolvimento, confiança, mas quando se chega é a perfeição.

Quando se tem química, claro, pois não adianta todo envolvimento e afinidade intelectual se a carne não pegar fogo, se não der choque quando a pele encosta e se as borboletas no estômago não deixarem sem ar, leve e certa do que se quer.

Não vamos negar a existência dos casos do tesão isolado, do instinto puro de simples satisfação que é até bom, mas não completa. Lembrando que me refiro ao meu sentir, leitores que não concordem com a premissa. Em uma simples visão seria mais ou menos reconhecer que satisfazer o corpo e a carne é bom, sim, como negar!? Mas satisfazer a carne, o corpo e a mente?! Isso SIM é a plenitude.

Intercalar sexo com uma boa conversa, ver um filme abraçadinho, discutir o cenário político, transar de novo, falar sobre tudo sem ter que procurar palavras, simplesmente ser, estar e fazer. Por isso o processo é lindo, pois quando tudo isso acontece comigo (e acredito que com qualquer pessoa!), a conexão mental, somada a reação química da junção dos corpos torna qualquer encontro o melhor de todos.

Não existiu ninguém antes e nem existirá depois que te complete tanto, que te satisfaça tanto, que te alimente e hidrate corpo e alma com tanto sucesso.

Sentir tudo isso é ganhar na loteria num mundo tão líquido, de pessoas tão rasas, que na maioria estão mais preocupadas com quantidade ao invés de qualidade, mas se vc conseguiu firmar vínculo com alguém e sentir algo pelo menos parecido com o que descrevi, saiba que você é um privilegiado, pois você, como eu, SENTE! E sentir hoje é raro, não importa o formato ou nomenclatura, desde que nos faça felizes.

Mesmo que o preço do sentir muito seja depois sentir falta, viva a sua experiência da forma mais plena que puder, pois mesmo quando você estiver com saudade, ou quando chorar no seu travesseiro pelo pé na bunda, lembremos e fiquemos com o que sentimos, com o que essa experiência nos fez melhor e crescer e com a consciência de que tudo realmente passa, seja bom ou ruim, mas já que é para passar, que seja vivido da melhor forma. Sem arrependimentos. Viver é isso.

Telma Miranda

* Telma Miranda é advogada, fã de literatura, música e amiga deste editor.

Nunca fui…(uma crônica megalomaníaca de Elton Tavares)

Ilustração de Ronaldo Rony

Crônica megalomaníaca de Elton Tavares

Nunca fui sonhador de só esperar algo acontecer. Sou de fazer acontecer. Não sou e nunca serei um anjo. Não procuro confusão, mas não corro dela, nunca!

Nunca fui de pedir autorização pra nada, nem pra família, nem para amigos. No máximo para chefes, mas só na vida profissional.

Nunca fui estudioso, mas me dei melhor que muitos “super safos” que conheci no colégio. Nunca fui prego, talvez um pouco besta na adolescência.

Nunca fui safado, cagueta ou traíra, mesmo que alguns se esforcem em me pintar com essas cores.

Nunca fui metido a merda, boçal ou elitista, só não gosto de música ruim, pessoas idiotas (sejam elas pobres ou ricas) e reuniões com falsa brodagem.

Nunca fui “pegador”, nem quis. É verdade que tive vários relacionamentos, mas cada um a seu tempo. Nunca fui puxa-saco ou efusivo, somente defendi os trampos por onde passei, com o devido respeito para com colegas e superiores.

Nunca fui exemplo. Também nunca quis ser. Nunca fui sonso, falso ou hipócrita, quem me conhece sabe.

Nunca fui calmo, tranquilo ou sereno. Só que também nunca fui covarde, injusto ou traiçoeiro.

Nunca fui só mais um. Sempre marquei presença e, muitas vezes, fiz a diferença. A verdade é que nunca fui convencional, daqueles que fazem sentido. E quer saber, gosto e me orgulho disso. E quem convive comigo sabe disso.

Elton Tavares

Sou assim por causa do meu avô – Por Telma Miranda – @telmamiranda

Telma e sua filha Laís, com Seu Miranda, na Foz do Mazagão (AP), na casa de Dalva, mãe dela e filha do ilustre personagem deste texto. Foto: Arquivo familiar.

Todos que tivemos a feliz experiência de conviver com nossos avós e com absoluta certeza guardamos lembranças. Eu tive a felicidade de conhecer meus quatro avós, paternos e maternos, mas o amor da minha vida é o Seu Miranda.

Seu Miranda nasceu Sebastião Miranda, forte, curto e prático até no nome. Meu avô materno, pai da Dalva, um homem rústico e sábio, que ama abraçar filhos e netos, gargalhar, dançar agarrado dando pulinhos e levantando um dos pés e dizer para as netas que elas são lindas e maravilhosas, além, claro, de ensinar todo tipo de saliência pros netos.

Meu avô, apesar de ser um homem pequeno em estatura, possui uma alma enorme. Cabelos branquinhos e cortados bem curtos, desde sempre, cheiroso, vaidoso, alegre e colorido, sempre me foi a personificação do amor, colo e proteção.

Não quero dizer com isso que é perfeito, pois realmente não é. Como qualquer humano, tem suas fraquezas, e a dele, que nunca fumou, bebeu ou tolerou qualquer tipo de jogo, sempre foi mulher. Mas isso não tira meu encanto, amor ou respeito por ele, pelo contrário! Rende histórias hilárias, gargalhadas e grandes lições.

Um exemplo de quem é o meu avô foi quando eu engravidei adolescente, 17 anos, terminando o ensino médio, o pesadelo da minha mãe, que ligou pra ele, morador do município de Ferreira Gomes à época, para contar pessoalmente uma grande desgraça, segundo ela. Chegando lá meu avô preocupado pergunta que grande desgraça era essa e ela responde:

⁃ A Telma tá grávida!
⁃ Mas isso é uma felicidade, minha filha! Sinal que ela gosta de macho, e gosta de f$&@! Desgraça seria se o Thiago tivesse dando o rabo! – responde meu avô com grande tranquilidade, se referindo ao meu irmão em tempos nada politicamente corretos, me abraçando e desarmando minha mãe, que voltou pra casa com outro espírito depois da visita.

Pois essa figura é o meu avô!

Poderia contar inúmeras histórias dele, citar frases como “puta só, ladrão só!”, “o melhor estado civil é a felicidade”, “todo mundo quer ir pro céu, mas ninguém quer morrer”, etc. Ele é material pra uma série de inúmeras temporadas, mas o objetivo aqui é tentar externar pelo menos um pouco desse amor enorme que sinto por ele e explicar porque ele é a causa de eu ser assim.

Ele nunca fumou, só o tabacão carinhosamente chamado de “porronca” e não suportava bebida alcoólica, como eu. Ele diz que eu e ele já nascemos doidos e que não precisamos de desculpa pra aprontar. É verdade!

Outro traço em comum é a praticidade e leveza com que ele sempre administra as piores crises. Uma herança que faço muito uso. Ele me chama de “água de Maria”, uma alusão ao banho-maria, se referindo ao fato de eu sempre tentar compor, dialogar, negociar, sem embate. E soltando aqui e ali uma piada, uma graça, falando uma bobagem pra quebrar o gelo e pra lembrar que as cargas existem, mas precisamos ser leves.

Meu avô é e será sempre o amor da minha vida. Pega no meu pé, mas me diz que sou linda, maravilhosa, cheirosa e gostosa, sempre elevando minha autoestima e alimentando minha alma. Aprendi com o Seu Miranda que amar é falar, fazer e sentir. E esse homem que pescava e caçava, que pintou o barco antes chamado de São José de preto e rebatizou de Diabo pra ninguém mais pedir emprestado e devolver quebrado, aprendi a ser intensa, direta, verdadeira e conhecer meu tamanho e meu valor.

Gratidão, meu amor, e mesmo com esse ano inteiro sem mais te ter no plano terrestre, não há um dia que eu não me lembre, cite ou sinta você em mim. Gratidão por tudo, AVÔ da minha vida, amor da minha vida.

Telma Miranda

* Telma Miranda é advogada, fã de literatura, música e amiga deste editor.

Poema de agora: A imprecisão das horas – Rafael Masim

A imprecisão das horas

São agora 19 horas
e o relógio atrás da porta
marca 11.

na sala do apartamento,
as janelas fechadas
me impedem de olhar o tempo lá fora.
e o relógio desajustado
me dá a impressão de um tempo
que não é o verdadeiro.

ouço grilos e outros insetos
que ajudam a definir
a escuridão que certamente
se faz neste instante lá fora.

nossa vaga percepção do tempo
é ditada frequentemente por um objeto circular
e seus ponteiros preguiçosos
dependentes da energia de uma pilha.

a invalidez temporária
dos ponteiros deste relógio a minha frente,
me faz imaginar Cronos
sendo impedido de devorar o tempo
de forma linear e cronológica.

a confusão do tempo,
a ilusão das horas,
a brevidade da vida
e o relógio agora inútil
fazem pensar na repetição dos nossos dias,
muitas vezes vagos.

como os ponteiros do relógio
andamos em círculo
dia após dia.
semana após semana.
meses e anos.

nossa vida é um tic tac quase eterno.
finita e incerta.
impossível definir nosso tempo aqui na terra.

então
penso em Kairós
e percebo a necessidade
de aproveitar o tempo
da melhor forma possível.

neste instante
enquanto escrevo,
os ponteiros deslocam-se
com dificuldade
em posições pré definidas
e passageiras.

nós,
por outro lado,
mudamos de posição
quase que constantemente.

nosso tempo, mesmo que incerto,
talvez seja o mesmo
dos ponteiros do relógio.

nossa localização e destino final
é que são imprecisos.

Rafael Masim

Poema de agora: Recompensa – Pat Andrade

RECOMPENSA

o dia seguinte
se pendura no ponteiro
como se fosse
se atirar do precipício

de dentro do quarto
ouço o outono
chegando
silenciosamente

o sol desaba no poente
no mesmo instante
em que a cigana
lê a minha mão

para ver estrelas
subo as escadas
como se fossem
montanhas

antes da alvorada
alguém me tira
pra dançar pelas galáxias
desleixada
perco as sandálias
no espaço

minha recompensa
é perceber que toda a poesia
foi feita pra bordar
de alegria e amor
os meus dias tristes

Pat Andrade

Futebol e Emoções – Crônica de Marcelo Guido

Crônica de Marcelo Guido

O maior e mais verdadeiro catalisador de emoções é o futebol. Incrível como o poder do solo gramado, restrito a quatro linhas, dividido ao meio, consegue exercer sobre os meros mortais como nós.

A pelota gira, passa por pés, singra por caminhos inimagináveis construídos por sonhos e inspirações, ela morre dentro das redes e transforma-se em memórias.

Quantas histórias de amor, ódio,  desespero, alegria são construídas em estádios? Quantas figuras vão de heróis a vilões em minutos ? O quanto é enriquecedor para brio humano.

A cada ano, a cada rodada, a cada quarta feira ou qualquer feira inimaginável noção de escolha para cada fim de semana.

Cada taça levantada, cada ponto perdido, um sorriso ou lágrimas , tudo tem dois lados. São iguais unificados pelo mesmo sentido, sentimento. Oposto que se atrai e se trai.

Não importa a agremiação que se torça, ou que se rogue a praga com força. Os torcedores são iguais.

A torcida é  um misto de emoções, confusões e fé . Todos iguais na paixão, amor e lembrança. A cada ano heróis são construídos com lembranças, fé  se renova sempre e a certeza que o melhor está sempre por vir.

Eu só posso ter pena de quem ainda diz que o futebol é só um jogo.

*Marcelo Guido é jornalista, pai do Bento e da Lanna, além de maridão da Bia.

Poesia de agora: Tinturas e Texturas – Lara Utzig – (@cantigadeninar)

 

Tinturas e Texturas

Conheci no meio do caos
as madeixas da cor do sol
que afastaram espíritos maus
e todo o agouro da volta do anzol.
Vi em meio à biblioteca
as mesmas madeixas solitárias
e hoje minha sorte não seca:
ocupa mil hectares e áreas.
As madeixas agora são acobreadas
e as vejo sempre espalhadas pela minha memória
como se cada fio fosse uma linha deixada
para manter-me ebriamente sóbria.
Ela possui todas as cores
e nos olhos uma imensidão
que afasta todas as dores
e se infinita em meu coração.

Lara Utzig

Poesia de agora: A Maiakovski. Poeta Russo – Luiz Jorge Ferreira

A Maiakovski. Poeta Russo

Um dia eles nem chegam!
Já estão escondidos nas sombras que nos acompanham, por todos os lugares.
E nós não vimos, nem sentimos seus cheiros podres, nem sentimos suas mãos nos pescoços.

Simplesmente porque ainda fazem isto só com os outros.

Certo dia em que estamos comprando ovos da Páscoa.
Eles entregam armas aos moleques sem cor dos aglomerados.
Mas com medo neste momento levantamos do sofá, e desligamos a Televisão para não saber mais disto.

Uma noite eleito por nós mesmos, eles se reúnem, e criam facilidades para o domínio.
Empilham placas na rua,
para que indefesos andemos a mercê dos sádicos.

Criam leis para retirar nossas armas, e facilitam a liberdade dos ladrões, e assassinos.

Mas como o domínio ainda nos permite ir a praia – Não protestamos.

Certo dia acordamos com eles em nossas casas, em nossas mesas, em nossas camas, em nossas almas.

Nesse dia, sentiremos seus cheiros podres, seus dentes podres, seus gestos bruscos, e seus torniquetes no pescoços.

Seremos proibidos de ir a praia, caminhar sob o sol, e inocentemente tomar sorvete.

Ansiosos vamos procurar reunir todos para criar uma saída.

Mas então! – Todos serão ninguém, e eternamente!
Será muito tarde.

Luiz Jorge Ferreira

 

* Do livro Tybum.