Poema de agora: Black Bird que pousou no jardim – Jaci Rocha

Black Bird que pousou no jardim

Pássaro negro
Sobre meu jardim
A madrugada não quer sair
Entranha-se, junto às chuvas que caem…

-Sobre mim-

(Ainda assim, é bom saber que sou teu lar)

A chuva cai

Me perco nessa solidão mansa
Do dia que ainda não nasceu
E sinto que sou parte mistério
Dessa calmaria que abraça encontros

Dos amantes que se beijam
Do farfalhar das folhas que se desprendem
E o som das pedras que recebem gotas de água
Minha insônia pede que eu sinta o instante…

Os ventos do norte trazem mensagens de calma …

Paira no ar a confissão não dita
Sou parte da concreta mobilidade
Gente que sendo gente
Se expande, agora …

O cheiro da noite invade
Acaricia e acalma
Mistura-se às uvas do meu paladar
O tic tac do relógio não assusta:

No presente momento
O tempo não existe
Existe apenas eu, a madrugada
Este poema

E o Black bird que pousou no jardim.

Jaci Rocha

Poema de agora: Falta de Bom Censo – Lara Utzig (@cantigadeninar)

Falta de Bom Censo

“gente morre todo dia
mas agora tudo é covid
racismo
trans e homofobia
ninguém morre mais
de morte morrida”

a troco de nada
tantas estatísticas
não são números
são vidas
APAGADAS
nomes
não-registrados
no abecedário
do negacionismo
reacionário

não apenas cêpêefes
corações pulsantes
de sonhos
com o peito arfante
sem ar
jamais serão esquecidos por nós
ou afogados
nesse mar
de desespero
e lodo
onde estamos todos
tentando nadar

Lara Utzig

Lançamento virtual: Artesã Camila Karina lança Planner Literário e conversa sobre autores amapaenses com a escritora Lara Utzig (@cantigadeninar)

Hoje (27), às 19h, vai rolar  o lançamento virtual do Planner Literário (uma espécie de agenda para anotações para quem ama livros) produzido pela artesã Camila Karina. Durante o evento on-line, que será transmitido pela rede social Instagram, a artista conversará com a escritora Lara Utzig sobre a tag #Leia autores locais, que também também estou incluso na parceria.

Entre os parceiros estão também: Tiago Quingosta, Rod Mergulhão e Kiara Guedes. A ideia segundo Camila, é de incentivar o público a conhecer e adquirir livros de autores locais. O papo também será sobre arte, literatura e planejamento.

Planner Literário

O Planner Literário serve para quem está procurando bons motivos para se organizar melhor. Ele é uma ferramenta de planejamento, anotações do dia a dia. Também é muito utilizado para quem produz conteúdo. Um hábito de boa parte dos leitores é anotar as partes favoritas dos livros, as já conhecidas quotes. Ele está disponível para compra pelo valor de R$ 75,00. E se você desejar o kit completo, somente R$ 80,00. Contato via instagram de Camila Karina.

Serviço:

Pré-lançamento virtual do Planner Literário produzido pela artesã Camila Karina.
Data: 27/03/2021
Hora: 19h
Transmissão pelo perfil do instagram  @CAMILA_KARINA (clique no QR Code e vai direto para o seu instagram)

Poema de agora: Extra – Marcelo Abreu

Extra

Ouço o noticiário:
O lúgubre da manchete,
Do colapso funerário.
Do lucro da farmácia,
Que se foda o operário.
Do descaso com a saúde,
Do infarto do ordenado.
Da metástase corrosiva.
Da indigência do pirralho.
Do lugar que ainda não veio,
O socorro desejado.
Da promessa mentirosa,
Do messias endemoniado.
Do amor e seu escasso,
Da carência do bastardo.
Na súplica de um povo,
Que não aguenta ser roubado.

Marcelo Abreu

*Contribuição de Patrícia Andrade.

Thiago Soeiro gira a roda da vida. Feliz aniversário, amigo poeta (@ThiagoSoeiro)

Com Pedro e Thiago, encontro no barzinho, em 2016.

Tenho alguns companheiros (brothers e brodas) com quem mantenho uma relação de amizade e respeito, mesmo a gente com pouco contato. É o caso do jornalista e poeta Thiago Soeiro, que gira a roda da vida neste vigésimo sexto dia de março e lhe rendo homenagens!

Além de talentoso poeteiro e competente profissional da imprensa, Thiago é um declamador brilhante e divertido (excelente artista da poesia) e um cara muito gente boa.

Soeiro é também o filho amoroso da dona Raimunda, escritor de cartas, trovador do amor, produtor da TV Equinócio (Record AP), e também atua como assessor de comunicação, blogueiro, cantor e marido do Pedro Stkls.

Com o aniversariante (do meu lado direito), poetas Jaci Rocha e Pedro Stkls, além do músico Igo de Oliveira (agachado), após um show dos Poetas Azuis, em 2015.

Juntamente com Pedro Stkls, Thiago forma o sensacional Poetas Azuis, que traz uma linda poesia musicada, da qual sou fã, divulgo e acompanho. Sempre digo que essa galera ainda será descoberta pelo Brasil. Eles são nossos “queridinhos cults”.

Thiago possui fino trato, inteligência, talento e muita paideguice. É um figura gentil, gente boa demais e que chega aos 32 anos feliz com sua arte. O cara já me emocionou algumas vezes durante as apresentações dos Poetas Azuis, quase estraga minha imagem de bruto (risos). A ti, amigo, rendo homenagens hoje.

Soeiro, tu és brother. Que teu novo ciclo seja ainda mais firmeza. Que sigas com sabedoria, com doses exageradas de equilíbrio e a coragem para seguir pisando forte em busca de seus objetivos. Que tudo que couber no teu conceito de sucesso se realize. Que a Força esteja contigo. Saúde e sucesso, sempre. Parabéns pelo teu dia, Thiago. Feliz aniversário!

*Soeiro, precisamos de novas fotos juntos.

Elton Tavares 

Poema de agora: A dança acrobática das marés – Marven Junius Franklin

Embarcações às margens do Rio Oiapoque – Foto: Marven Junius Franklin

A dança acrobática das marés

I
Por entre as cores descoradas do entardecer
& o burburinho que o cais do porto produz
– andorinhas-de-bando testemunham
a dança acrobática das marés;
(tsunâmicos pores do sol
esboçam ondas intermitentes de apatia
– tristes-vidas ancorados no trapiche
pressentem os rumores do acaso).
Navegando em catraias diáfanas
– grávidos de espaçosos nevoeiros,
Quixotes amazônidas zanzam panemas
por fragrância de peixes putrefatos
& anfibológicas pretensões de seguir
(cobiçam lograr infortúnios
sob varandas de nuvens cianóticas).

II
Asas titânicas de indiferença
tracejam aborrecíveis incursões
na corcunda esfomeada do ocaso;
(lamparinas inflamam ais & desalentos
– mães d’água parem anjos rosáceos
sob lágrimas caudalosas de abril).
Dilúculos macilentos desabam
– avoengos ensimesmados voejam
pr’os lados do Mercado Municipal;
(a calmaria do rio pressagia desditas
enquanto o cotidiano abocanha decências
& nutre a existência ribeirinha
de jururus tardes de domingo & naufrágios).

Marven Junius Franklin

Poema de agora: RELEITURA – Luiz Jorge Ferreira

RELEITURA

Faço uma releitura.
Arrasto a lua pela sala, e a largo perto do Aquário.
Onde o amor e o ódio, mergulhados em nada, sobrenadam, separadamente, de mãos dadas.
Afino o assobio com uma das Estações de Vivaldi.
Apelido você de minha, e apelido a mim de quase seu.
As sobras das palavras que nem falei, nem escrevi.

Derramo no Jardim, atrás do por do sol.
Imaginei sair correndo de dentro do meu interior.
Imaginei entrar em ti, gritando:- Ô de casa!
Não mude nada.
Não quero me sentir estranho, onde por muitos anos, perambulei feliz.

Luiz Jorge Ferreira

Os cães do Campus da Unifap – Crônica porreta de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Aproximadamente dez cães moram no campus da Universidade. São vira-latas que dormem durante o dia e à noite se tornam verdadeiros vigias. Rosnam para os desconhecidos que se aventuram por lá de forma suspeita, mas reconhecem os vigilantes pela farda que usam e alguns professores mais antigos, talvez pelo cheiro de livros velhos.

Deitam pelos corredores sem que ninguém lhes incomode, pois descansam após o trabalho de uma noite inteira, em que seus argutos olhares e latidos alarmistas com certeza foram úteis. São cães fortes, uns completamente negros e outros com manchas marrons. Às vezes se levantam com o forte cheiro das queimadas no cerrado do campus, mostrando-se impotentes diante dessas devastações tão próprias dos seres humanos.

No meio do mundo os cães trabalham na noite como se revigorassem a missão permanente do ancestral Cérbero, o demônio do abismo da mitologia grega, com suas três, cinqüenta ou cem cabeças, que vigiava as almas no Inferno. Para amansá-lo, os mortos tinham que oferecer-lhe um bolo de mel, acrescentando o óbolo destinado ao pastor Caronte. Cérbero devorava sem piedade todos aqueles que tentavam forçar a porta do Inferno: atacou Pirito e Teseu que queriam levar Perséfone de volta; foi enfeitiçado pela lira de Orfeu quando o mesmo foi reclamar Eurídice; deixou passar Eneu, que lhe deu o bolo de mel preparado pela Sibila. Mas foi derrotado e acorrentado por Héracles (Hércules), que o levou a Trezena antes de levá-lo de volta ao Inferno.

Não há dúvida, afirmam os mitólogos, que mitologia alguma não tenha associado o cão à morte, aos infernos subterrâneos e aos impérios invisíveis regidos pelas divindades ctonianas ou selênicas. Sua primeira função mítica, universalmente atestada é a do “psicopompo”, guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida. O cão emprestou seu rosto a todos os grandes guias de almas, em todos os escalões de nossa história cultural ocidental.

Ele existe em todo o universo e aparece em todas as culturas, com variantes que enriquecem esse simbolismo fundamental, como os cinocéfalos (macacos de cabeças semelhantes a do cão), da iconografia egípcia, que têm por missão aprisionar ou destruir os inimigos da luz e guardar as Portas dos locais sagrados. Na mitologia Romana a loba que amamentou Rômulo e Remo, bem como outros canídeos, são heróis civilizadores e estão sempre ligados à instauração do ciclo agrário.

Apesar de a sua fidelidade ser louvada pelos muçulmanos, o Islã faz do cão a imagem daquilo que a criação comporta de mais vil. È o símbolo da avidez e da gula. Sua carne é utilizada como remédio contra a esterilidade, a má sorte, etc. Segundo uma tradição do Profeta, este declarou que um recipiente no qual tiver bebido um cão deve ser lavado sete vezes, sendo que a primeira lavagem deverá ser feita com terra. Diz-se que o Profeta proibia matar os cães, salvo os cães negros que tivessem duas manchas brancas por cima dos olhos, pois essa espécie de cão era uma encarnação do diabo. Já os monges dominicanos eram os cães do Senhor, aqueles que protegem a Casa pela voz ou os arautos da palavra de Deus.

Os cães do campus também trazem o seu simbolismo. São alimentados carinhosa e diariamente pela dona Nilza. E como Cérbero protegem a entrada da Universidade daqueles que nele querem entrar sem merecerem. O conhecimento e a luz estão lá, protegidos pelas trevas do desconhecido, envolvidos pela mão de muitos Lucíferes. Aqueles que quiserem o saber terão que dar aos guardiões o bolo de mel e o óbolo de Caronte nessa travessia que não terá retorno.

Poema de agora: CAMINHOS – Patrícia Andrade

CAMINHOS

aquele anjo
caído e desvairado
me ofereceu
o veludo da noite…

descansei os olhos
no escuro do céu

subitamente pude ver
os sentimentos estreitos
que te levam até
o labirinto da solidão
os gestos sórdidos
que te jogam
no limbo da maldade

nessa realidade
não há perdão
nem há virtude

só o caminho
do amor faz atalho
para a plenitude

Patrícia Andrade

Poema de agora: Arde no Qua (coa) ra dor?! – Jorge Herberth

Arde no Qua (coa) ra dor?!

Arde
No quara (dor)
Coarador
O queijo
O amor
A saia
O beijo

O quebranto
Amor(dan çado)
Facão
Da vossador

O cor(te)
Certeiro
Da navalha
Na flor

No cora(dor)
Quara(dor)?
Ressecam prantos
De mim
De minhamãe

Lágrimas
Enxutas
Como sol
Qua (coa) ra dor

No coa (qua) rador
Limpam
Teus caminhos
Teus dias
E minha alma
Solidão

Vosso qua (coara) dor
É arca dor
Vos livra
De dilúvios
Dos sujos

Das manchas
Da ferrugem má
Secular
De vossafome

Só tua mãe
Sábia
Sabe os segredos
Do que limpou

No quara dor, coa rador
Teu verão
Meu inverno
Estiagem da saudade

Onde só
Coarador, quara dor
Não arde
O vossoinferno
Nem vosso
Fel
Nem quara estrela
Do céu
Clara dor, coara

Quara
Veneno
Dor
De corações

No coarador
Das constelações
Qua (ra) tanta
Dor?!

Jorge Herberth

Poema de agora: Das coisas que eu vim fazer aqui – Jaci Rocha

Das coisas que eu vim fazer aqui

A gente está aqui para aprender a voar no fim de tarde
Barcos de papel marché em busca do horizonte
Ao sabor de um ardente sol…

E sabemos tão pouco
Do tanto, do gesto
Do multiverso que abriga cada um…

A gente está aqui, sem dublê
E tudo é movimento, vida, ação
E a alma se bate toda no imenso labirinto
enquanto quixoteia moinhos de vento…

Parece que a gente devia ter vindo
Com manual de instruções
Quiçá, bula de contra-indicações
Com tarja de aviso: “Advertência: risco de dano severo às emoções”

E no reverso, a gente se faz de grande navegador
E descobre um mundo novo a cada abrir de olhos
E corre a vida só para não cair na apatia
De ir com a maré…

A gente veio ao mundo
Desinventar de ter medo
E aprender com a aerodinâmica sutil da borboleta!

E no meio do caminho, a gente prova-vida:
Manga, suor, sorvete: Existir é um banquete
Cada um se serve como pode.

A gente veio ao mundo se espantar
Cair de amores pelo pôr do sol!
Encher os olhos d´agua de ler um Pessoa
Vibrar numa matriz particular (Ou simplesmente mergulhar n´uma lagoa)

Só não vale não se apaixonar
Não experimentar, não mover com força o próprio coração
Não se encantar, não arriscar, não se vestir de luz e cor
Só não vale não ser , falar,sentir, doar…

AMOR!

Jaci Rocha

Onde Deus possa me ouvir – Escrito de insônia de Ronaldo Rodrigues

Escrito de insônia de Ronaldo Rodrigues

Quando encontramos uma música que fala o que precisamos escutar dá um alívio tremendo. Foi o que senti ao deparar com Onde Deus possa me ouvir. Quando se está de saco cheio de pessoas e situações e opiniões e falta de perspectivas, eis que vem pelas ondas da internet uma música para dizer que não estamos sozinhos contra a indiferença, a ignorância e a falta de refinamento no pensar, tão flagrantes em nossos dias.

Coisa boa deve ser compartilhada e foi o que fiz, lançando, no oceano da madrugada solitária, a minha garrafa de náufrago, cuja única mensagem era essa pérola. Uma mensagem de socorro, mas também de alento, de tentativa de compreensão do mundo, para quem possa necessitar de atenção e afago neste nosso labirinto de madrugadas insones, por vezes ásperas. Enviei para alguns companheiros de jornada com os quais compartilho aflições e compensações de viver na mesma época em que, a todo momento, palavras cruéis ferem nossos ouvidos e corações e mentes.

Há tempos que não me sentia tocado por uma música e dei graças ao fato de que minha sensibilidade ainda resista à tentação de seguir a manada e se tornar estéril ou mesmo inexistente. E quando gosto de uma música, gosto de pensar que outras pessoas também poderão gostar e me faço mensageiro dessa música, cuja força pode até salvar o mundo de alguém.

A música que me deixou em transe e que volto a compartilhar agora com vocês é de Vander Lee gravada na voz de Gal Costa. E como disse Jesus Cristo (e nas primeira vezes que li essas palavras achei que Jesus estava sendo redundante): – Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Onde Deus possa me ouvir – Gal Costa – Composição: Vander Lee

Sabe o que eu queria agora, meu bem?
Sair, chegar lá fora e encontrar alguém
Que não me dissesse nada
Não me perguntasse nada também

Que me oferecesse um colo ou um ombro
Onde eu desaguasse todo o desengano
Mas a vida anda louca
As pessoas andam tristes
Meus amigos são amigos de ninguém

Sabe o que eu mais quero agora, meu amor?
Morar no interior do meu interior
Pra entender porque se agridem
Se empurram pro abismo
Se debatem, se combatem sem saber

Meu amor, deixa eu chorar até cansar
Me leve pra qualquer lugar
Aonde Deus possa me ouvir

Minha dor eu não consigo compreender
Eu quero algo pra beber
Me deixe aqui, pode sair
Adeus

Poesia de agora: Sei lá onde foi parar Meu último poema – Jaci Rocha

Sei lá onde foi parar meu último poema

Sei lá

Sei lá onde foi parar
Meu último poema

Ainda ontem o vi, adormecido
Nas paralelas da Leopoldo com a Mendonça Furtado
Silencioso e tímido entre o trânsito abafado.

Depois, penso que se escondeu
No ronco contínuo e macio do ar condicionado.
Nas colunas de concreto
Onde, comodamente, cultivam-se cactos

– E só habitam coisas plásticas
que não carecem de cuidados –

Eu sei, tu sabes
É só por amor às rosas
Que sentimos o verso de outros mundos
E a dor de ser e expandir…

Pode ser, poeta,
Que entre letras e verbos
Onde tudo pede os devidos contrapontos
Ande a esquecer de anotar encantamentos

E estender poesia no varal,
Após as chuvas que caem no quintal…

É que, neste mundo acelerado e moderno
É preciso ser atento
Não desistir de ver o céu, a lua
E a vida bem de perto.

Longe das telas e das correções
De cor, de som ou ortográficas
Neste mundo high tec
Onde não cabem as coisas imperfeitas e falhas

É preciso ter cá um pouco de coragem
E uma sutil falha de conexão
Para esquecer do clica-curte
Mergulhar num rio ou apenas dar as mãos…

Sei lá onde foi parar
meu último poema.

Jaci Rocha

Poema de agora: In Miragem – Luiz Jorge Ferreira

In Miragem

Desperto… pés molhados… há muitos anos vive em mim um rio.
Serpenteia, Saculeija, rola seixos… afoga queixas, se espreguiça, nós nús a preamar, vida imita a chuva, ser chuva em mim, se salga, me salga, percorre em mim léguas… e eu do lugar que estou, cá dentro do corpo, não saio.
Hoje ele senta ali, doutro lado da vida, e eu daqui desse lado… colecionando momentos.
Ele arrasta consigo tantas lembranças, tal qual um cardume de peixes translúcidos atravessando minha alma de um jeito íntimo.
Como se outrora houvessem comungado esses instantes em paz.
Como se em mim, suas lembranças fossem minhas e as minhas fossem resíduos de décadas que sobrevivi fugindo de submergir nas noites em que sonho me pôr a nadar infinitamente rumo ao outro lado, que imagino ser do outro lado, que faz sempre de contas que me espera no entanto se afasta…


Como se fosse miragem…
Mas amo não ser parte de nenhum lugar e ser apenas uma ilha de carne, ossos, pelos, pensamentos, diagonais e perpendiculares agrupadas nas mãos com que empilho instantes. E raramente falo, quando falo… grito nas línguas que lembro, as que aprendi na sala de aula olhando a professora de inglês e o professor de francês escreverem os alfabetos em consoantes coloridas.
Lembro que ao lado da sala de aula, no corredor, estava o rio, era apenas um riacho, que se escorava entre um sol que plantava bananeira e uns tralhotos que como meninos apedrejavam a lua pálida que gemia… abafando o clamor de liberdade das vozes dos mortos do Cemitério Municipal, próximo a antiga Escola Normal de Educação do Território Federal do Amapá.
Sabe… ando querendo ser rio… me arrasto cabisbaixo debaixo de recordações ácidas que se avolumam em cirandas sobre minhas expressões de rugas na face.
O rio me olha cabisbaixo, tem inveja de mim, eu tenho dele, lamenta tanto lixo espalhado em seu leito.


Lamento tanto lixo espalhado em meu peito.
Perdeu o viço.
Perdi o senso.
Ambos clamamos por chuva…
Eu com a voz entremeada de porquês e comos.
Ele… reticências anômalas… na forma aleatória de poças secas.

Luiz Jorge Ferreira

*20/03/2021. Osasco – Sp.