Poema de agora: Roldão – Lara Utzig (@cantigadeninar)

Roldão

este é um poema torto
ou, quem sabe, um poema sem forma
este poema é dedicado a todas as coisas
que nunca consegui organizar
dentro de mim

este poema é um quarto bagunçado
em visível caos
mas que, apesar da desordem,
encontro às cegas aquilo que preciso

este poema é sobre a (não) necessidade de arrumar
o que quer que seja
para ninguém além de nós mesmos
[quem quiser nos visitar que se acostume com a baderna]
também é sobre se aquerenciar
com os quadros enviesados na parede

este poema é uma ode à balbúrdia
à algazarra que me habita
e à indolência que me circunda:
a limpeza para terceiros.

este poema é sobre o alheio
sobre o estranho, sobre o outro
cuja anarquia também é própria
e não me diz respeito

este poema é, enfim, barulho;
uma confissão em tons de tumulto:
este poema é sobre sinônimos
que refletem nossa confusão interior.

Lara Utzig

Poema de agora: Lundu – Luiz Jorge Ferreira

Pintura Danza Africana – Ivey Haies

Lundu

Macapá não é um lugar de morrer…Nunca ninguém morre em Macapá.
Ou desaparece, ou se encanta ou dobra as esquinas
Ou aparece um dia em forma de praça, grupo escolar, letra de samba,
Apelido ou uma rua qualquer resolvesse se chamar com o seu nome
Ou é visto de terno branco e peito em festa, espalhando sorrisos, em Paramaribo.

Cadê Pedro? Cadê Alípio? Cadê Fernando? Cadê Joca? Cadê “Lua”? Cadê Ipojucam? Cadê Oníria? Cadê Chembenga? Cadê Orlandina? Cadê Graça? Cadê Del? Cadê Oniria? Cadê Luiza? Cadê mestre Lauro Chaves? Cadê mestra Eulalie Brown? Cadê mestra Annie Vianna?

Zé Domingos, Maiãbuko, Querubins Blacks, Bilhas D’água vazias de tudo e cheias de nada. Puraqué sem luz, acastanhado, ladainha em Latim no Morro do Sapo.

Cadê? Cadê Sussuarana? Cadê Paulino? Cadê o bloco de meninos “Os Caçulas do Laguinho”? Cadê Lelé? Cadê Quelé? Cadê Biló? Cadê Seu Rô? Cadê Faustina? Cadê a noite na esquina e as louras do Curral das Éguas?

No Outono os cachorros latem atrás da sombra da lua, latem Samaracá.
A igreja ajoelha de manhã todos os dias.
Já cansou-se de rezar.

Os carapanãs bebem água da pia batismal
As libélulas sujas de sal, adoçam o sol

Cadê Munhoz? Cadê Zé Queiroz? Cadê Silva Luz? Cadê Sacuça? Cadê Sacaca?
Cadê Quincas? Cadê “Nossa Amizade”? Cadê “Morra a mãe”? Cadê Avulu? Cadê Mucuim? Cadê eu em mim e tu em nós?

Cadê os sóis desenhados no asfalto?
Cadê as mangas embrulhadas na saudade?
Cadê o Marabaixo? Mar a Baixo, sola de passos.

Cadê o vento com pitiú de peixe, de olhos arregalados, nus nos balcões do mercado? .
Cadê eu? Cadê tu? Franzinos feito meninos correndo desenfreados a galope atrás de pipas, também sem destinos…

Os dentes de leite marcando a trilha, os passarinhos trocando as penas, o Lóide como um urubu rugindo seus motores. A chuva banhando as flores.

E Deus lá na Fortaleza, com a face molhada pelos respingos d´água que o vento lhe atira, retirados do rio. Ri!

O tempo conversa em aramaico com a vida, talvez sobre lendas, talvez sobre vidas. Talvez sobre trovões roucos e relâmpagos azuis.

Eu converso comigo sobre mim. Um tapuio, um azougue, um espermatozoide afoito, um óvulo ímpar anão. Não sei de nada, não crio nada, não refaço nada, não planto mais que lágrimas, não colho mais que saudades.

Macapá não é paragem para alguém brincar de morrer. Anabu bubu, quem sai é nenhum!

Luiz Jorge Ferreira

*Luiz Jorge Ferreira é poeta e médico Macapaense criado no Laguinho, que atua em São Paulo. Ele também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de escritores Médicos (Sobrames).

**Contribuição do amigo Fernando Canto.

Poema de agora: Pedalando no Domingo de Páscoa – Ronaldo Rodrigues

Pedalando no Domingo de Páscoa – Ronaldo Rodrigues

Recentes estudos afirmam que a utilização
de bicicleta concentra o maior número
de energia positiva ao seu redor.
As bicicletas são responsáveis
pela emissão de eflúvios
de agradável aroma,
excelente fragrância,
que adornam, confortam
e embelezam a tarde.
Vamos fazer um pedal
neste Domingo de Páscoa.
Eu já estou ao léu
e sei que estou no céu.
De bicicleta eu vou.
De bicicleta eu voo.
Cada um
na sua nave,
na sua arte
que é parte
da nave-mãe.
Até amanhã.
De manhã
pela manhãe.

Poema de agora: Marabaião – (@cantigadeninar)

 
Marabaião
 
Vim embora do sertão,
Onde faz uma seca danada,
Mas não há seca pior 
Que a ausência da amada…
 
Lá deixei meu coração,
Não aguentei o clima forte
Mas a minha solidão
Agravou-se sem meu norte.
 
Sem meu norte eu vim pro Norte,
Que fica mais pro Oeste,
Pouco antes do Oiapoque,
Dei adeus para o Nordeste.
 
Nessa saga viajei milhas
Em busca de redenção,
Quando cheguei, mil maravilhas:
Era água em imensidão.
 
Meu Deus do céu, que rio bonito
Outro assim eu nunca vi…
Achava que era apenas um mito
Que a gente ouve por aí.
 
Fixei-me nesta terra
Acostumei com o calor,
Mas ainda era uma guerra
Sobreviver sem um amor.
 
Pensava no meu Nordeste,
A saudade era um açoite,
Pra completar, o meu agreste
Era dormir sozinha à noite.
 
Chegou a Páscoa em um domingo,
Começou um novo ciclo:
Fui pro bairro do Laguinho
Na missa de São Benedito…
 
Nos dias subsequentes,
Muita festa e gengibirra,
Marabaixo, cachaça quente
Pra despertar alguma alegria.
 
Eu só na base do mé
Avistei uma saia rodada
E confesso que sou ré
Por olhar para a moça errada.
 
A timidez tomou de conta
Porque eu não sabia bailar
E considero uma afronta
Se inxerir sem sequer dançar.
 
Com umas doses na cabeça,
Consegui me soltar devagar,
Pensei: “antes que amanheça
Essa dama vou abordar”.
 
Já um pouco alterada,
Aproximei-me da menina.
Ela estava acompanhada,
Seu nome era Catarina.
 
Catarina namorava
Um brucutu metido a besta
Que chiava e não gostava
Que ela dançasse em qualquer festa.
 
Cada vez que ela rodava,
O mundo se rendia aos seus pés
E o ogro com a cara amarrada
A levava embora de revés.
 
No fim do ciclo os dois brigaram
E ele quis bater em Catarina
Os donos da casa apartaram
Quase às 6 da matina.
 
Ofereci-lhe uma carona
Assim que o porre passou.
Não pode vir nunca à tona
Aquilo que depois rolou.
 
Hoje aqui eu já me encaixo
E fiquei com minha nega.
Em noites de Marabaixo
A gente gira e se aconchega.
 
Ainda sinto falta do Nordeste
Mas o Norte virou paixão:
No tambor que se aquece
Entoo mais um ladrão.
 
Os triângulos e as sanfonas
Deram lugar ao batuque
Enquanto o Amazonas
Pororoca sem ter truques.
 
Lara Utzig

Poema de agora: Introspecção (Ode à preservação da arborização e memória urbana à cidade de Macapá) – Maria Ester

Centenária Faveira no centro de Macapá e condenada à morte (mas o corte foi adiado) – Foto encontrada no blog da Alcinéa

Introspecção

Ode à preservação da arborização e memória urbana à cidade de Macapá.

Diga para mim o que te faz bem?
Diga para mim o que te faz sonhar?
a Vida
a Luz
a Brisa
Amar ?
contemplando encantados as belezas do lugar
Ah! Talvez o mundo e suas histórias que me faz lembrar
Faveira de outrora que há tempo me faz sonhar,
a linda Faveira de Macapá.
Lá as chuvas de folhas me faz imaginar:
bonito são as árvores da minha infância enfeitando as memórias
que não podem se calar,
através dos tempos amenizando o calor de Macapá,
a Faveira da rua Iracema Carvão Nunes
ouvir à sombra pássaros a cantar e juntos a Ela contar histórias do lugar.
Oh! Anjo!
Não temos coração de pedra para deixar te derrubar.

Mensagem de Luz.

Maria Ester

Amputada, mas ainda de pé – Foto: Blog da Alcinéa

Poema de agora: Varal Colorido – Luiz Jorge Ferreira

Varal Colorido

No Outono os cães ladram menos.
Eu continuo a criar Poemas para minha mãe.
Recolho do chão entre folhas repletas do odor de peras podres, sílabas proparoxítonas, como serpentes coloridas.
As estendo entre o trópico de câncer e o trópico de capricórnio.
Atravesso o quintal onde a lua acende o olhar de mamãe em direção ao Grupo Escolar Azevedo Costa, que nem de costas está, nem de Carnaval gosta.

Outono tem o Aniversário do Jurista Câmara Alves …que nunca esteve em Macapá.
Hoje sentado em volta de uma mesa…
Satisfeito com a nobreza da luz dançando com as suas retinas.
Inaugura o ano de 92 em sua vida.

Os cães ladram em surdina…e em Jerusalém o tataraneto do jumentinho que carregou Cristo em direção ao início do seu Calvário.
Observa que as aves de arribação vieram todas do Norte.
Ela gorjeiam para o Outono, e saltitam entre suas próprias sombras todas cônicas.

Queria eu perguntar por Deus.
Mas os cães abafam meus gritos, latindo.
Eu me satisfaço em completar o desenho da Lua Nova no chão, no meio das folhas podres, com cheiro de peras podres.

Mãe…Mãe…não adormeça…é Outono.
Os cães já não latem…uivam para Vênus…mas o carro do lixo..
atabalhoadamente…nos arrasta!
Estranhamente ele carrega o Poema, os Poetas,a calçada, o quintal, o olhar, o cheiro de peras podres, que a memória guarda, e quando desaparece na esquina.
Sobram os cães, então eu posso começar a me aproximar, desde que a sede me acompanhe.

Luiz Jorge Ferreira

 

* Do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as Asas”.