Poema de agora: Beijo Divino – Graça Penafort

Beijo Divino

Manhã chuvosa
Lágrimas do céu caem sobre nós.
O coração desconhece a dor e a alegria.
Só os sentidos falam.
Entre o verde repousante,
bela, glamurosa, delicada,
abre-se à Luz a perfeição do Universo.
Limito-me a contemplá-la.
O impulso é devastador: arrasta-me!
Meus lábios tímidos procuram as pétalas molhadas.
Isso basta.
Um quase imperceptível perfume desperta-me à poesia.
É o beijo divino na minha boca profana.

Graça Penafort

Fonte: Blog da Alcinéa

Poema de agora:Bússola – (@cantigadeninar)

Bússola

Imagem de compass, vintage, and grunge
éramos felizes:
encontramo-nos por acaso.
porém, de uns tempos pra cá
começou um descompasso…
antes caminhávamos juntas,
combinando bem os passos.
agora tropeçamos:
meu pé direito, em direção ao futuro,
se atrapalha com teu pé esquerdo
emperrado
no passado.
e no desritmado compasso
estancamos no marasmo
dos desentendimentos estúpidos
no meio da Avenida FAB.
eu quase caí num bueiro,
tu desviaste de um buraco.
nem sei mais pra onde íamos,
tamanho o embaraço.
de tanto discutir em vão,
a fim de não perder o norte
[era para a praça da Bandeira,
Parque do Forte,
ou à orla da cidade?]
soltei de vez tua mão
e segui rumo à liberdade.

Lara Utzig

Poema de agora: (A) POETA DEUS – De Ori Fonseca para Pat Andrade

A poeta Pat Andrade – Foto Paulo Rocha.

(A) POETA DEUS

“Deus é bom! Obrigada”, disse a poeta
Deus se ri dela que acredita
Deus chora a me pedir que acredite.
A poesia é um jogo de crenças
Eu acredito em Pat
Pat acredita em Deus
Deus não acredita em ninguém
A poesia acredita em tudo
Eu, mudo, quero Pat em tudo
Pat, quer Deus, o orador mudo
A poesia quer a todos, eu escuto
Deus não quer ninguém.
Tá puto!

Ori Fonseca

Poema de agora: Acaso – (@cantigadeninar)

Acaso

Sorveterias sobrevivem de domingos.
Alfajores são vendidos a turistas.
Pet shops enriquecem com a tosa de poodles.
Cinemas encarecem ingressos para filmes 3D.

A parada do Dia de São Patrício desfila.
A fila do banco dá voltas no quarteirão.
O extrato aponta R$0,29 na conta corrente.
Livros emprestados são devolvidos com orelhas.

Carimbos dão ciência em papeladas burocráticas.
A caixa de entrada acumula spams “aumente seu pênis”.
A vida segue seu diário curso como sempre.
Minhas mãos criam rugas e a barriga aumenta.

Escadas rolantes levam à praça de alimentação.
Professores tecnológicos passam slides no datashow.
Carteirinhas estudantis concedem meia-entrada.
Bolsonaro propaga discursos de ódio.

O destino tsunami revolve as ondas da rotina.
Um arco-íris se ergue por detrás do outdoor.
A beleza se manifesta na Orla do Rio Amazonas.
Minha retina assiste a tudo com óculos de sol.

Lara Utzig

Poema de agora: Velho Balcão – Luiz Jorge Ferreira

Velho Balcão

E se sobre a pele dos caboclos o Sol desenhou tatuagens de outras paragens.
Nas suas fêmeas- riscou um Sol aceso, e uma lua apagada.
Já no meio da rua a noite cedeu a azulidade do céu para o breu.
Isso tudo eu escondo nas fotografias dentro da memória onde tenho as cédulas de identidade.

Na fotografia, o balcão da venda de Seu Bill.
Sofre de solidão, marcado dos sulcos deixados pelos cotovelos, e sobrevoado pelo vôo dos copos do balcão a boca.
É uma ilha.
Onde tropegas…sede e fome.
Dão as cartas.


Ele reflete o pôster de Rose de Primo, que estimula os desejos pregado na parede.
Na parede tem a cal que racha e fraqueja, repleta do odor nauseante de carne seca.
Tem a queda de cascas de tinta, e cada casca solitária, cai manchada do tempo que a colocou Ontem lá .


Tem o barulho do sino da igreja que desce pela laje, e cai no bueiro.
Tem a negritude inteira da Noite.
É ela que toma assento nos degraus, sopra ventos mais frios, e cutuca para dentro.
A cor negra que orgulhosamente transborda.No bairro negro do Laguinho.

Indiferente a esse episódio rotineiro.
Vão-se os Janeiros, um a um para detrás da Igreja.
E se eu retiro os cotovelos do horizonte e os acompanho como ordena a vida.
Eu sumo!

Luiz Jorge Ferreira

* Do livro “Nunca mais vou sair de mim, sem levar as Asas”.

Poesia que não se esgota (do poeta Fernando Canto)

A poesia não se esgota no pensamento porque ela é o esforço da linguagem para fazer um mundo mais doce, mais puro em sua essência;

A poesia procura tocar o inacessível e conhecer o incognoscível na medida em que articula e conecta palavras e significados;

Cada imagem representada, projetada pelo sonho, pela imaginação ou pela realidade, é um símbolo que marca o que sabemos da vida e seus desdobramentos, às vezes fugidios.

Mas nem sempre é o poeta o autor dessa representação, pois tudo o que surge tem base social e comunitária, depende da vivência de realidade de quem propõe a linguagem e a criação poética.

Quando isso ocorre estamos diante da autenticidade do texto poético. E todos somos poetas, embora nem sempre saibamos disso. E ainda que nem tentemos sê-lo.

Fernando Canto

Poema de agora: MORMAÇO – Poetas Azuis (com participação da @rebeccabraga)

MORMAÇO – (Pedro Stkls/ Igor de Oliveira) – Com participação de Rebecca Braga

Você plantou em mim uma saudade
Dessas de raízes fortes
Que vão pro fundo da terra
E não sabem voltar

Tanta coisa linda pra viver
Tanta chuva pra se aproveitar
E nós dois aqui nessa distância
De lembranças e remendos

Hoje vou pegar o meu barco
E do meio do mar
Eu vou cantar aquela canção
Sobre a roseira
E debaixo do sol sob o mormaço
Vou lembrar que um dia
Eu te transformei em poesia

Poema de agora: Bailarina de Louça – Luiz Jorge Ferreira

Bailarina de Louça

Deus te rasgue o peito com a harmonia leve de um Bolero.
O som é de um hino militar.
Dois pés em Amsterdam, dois passos sobre a Babilônia, dois dedos sujos de poeira lilás, e silêncio sobre a bailarina de louça, de voz rouca que segura o ventre proeminente de ais.


No desenho do perfil abstrato, cheiro de sabonete de tartaruga, e duas verrugas azuis sob o pomo de Adão.
Na parede ilustrada, um verão em Salinas, e duas almas gêmeas semi cegas, concubinas, simplesmente, dão as mãos.

Teu coração ainda menina… palpita…do pé entre os chinelos, ao fio mais externo de cabelo…
Teu vestido de chita…tua meia elástica repuxada, tua boca Carmim…teu olhar ensaiado…vais onde eu irei…ou vais onde ficas.

Deus te dê…dois generais para governar o país.
Um cavalo cego para te levar as ribanceiras…e dois valentes crioulos com o chicote de couro, para açoita-los por demais.


Dois violões afinados em lá, e um memorial…terra e lama.
Na calada entranha sob um sol dourado … cheirando a Macapá.


Um amor na gaveta na página de uma revista careta, e duas pílulas de matar bebê.
Uma estampilha de mulher…uma gorda, outra magra, duas escravas de cara branca pó de arroz.
Risonha e farta de seios, Nossa Senhora de Guadalupe, e um lume azul da estrela mais vadia.


O rosto de Guernica, e a foz antiga do Marajó.
Uma chuva fina da Patagônia, e um Bolero saindo de uma vitrola Philips desafinada de um vizinho chileno em um sábado inútil de Janeiro.

Hoje eu te adivinho deitada… curtindo a sombra de teus seios na parede.
Eu te adivinho escrava dos cabelos,
penteando-os com os dedos.


Alisando-os no espelho embaçado do quarto.
Eu te adivinho sonolenta, arfante, subindo e descendo os peitos.
O coração descompassado, a língua em um bailado entredentes, molhada de saliva.

E se eu chegasse, correndo, assustado…
Dançaríamos, um Bolero, ou cantaríamos um Fado.

Luiz Jorge Ferreira