Sou uma anamorfose ambulante!

Certa noite de 2010, por sinal muito divertida, eu e alguns amigos conversávamos no Bar Norte das Águas, sobre sermos as “ovelhas negras” de nossas respectivas famílias. Em um momento brilhante, minha amiga e mestra em Psicologia, Janisse Carvalho, disse: “Nós somos anamorfoses”. Claro que nenhum de nós entendeu o significado do termo. Leiam o texto:

Sou uma anamorfose ambulante!

Eu e Janisse, em 2013, durante uma de nossas divertidas reuniões etílicas

Por Janisse Carvalho (*)

Uma anamorfose (do grego anamorphosis) é uma imagem deformada que aparece em sua verdadeira forma quando visto em alguns “não convencionais” caminhos. É a representação de uma figura (objeto, cena, etc.) de maneira que observada frontalmente parece distorcida ou mesmo irreconhecível, tornando-se legível quando vista de um determinado ângulo, a certa distância, ou ainda com o uso de lentes especiais ou de um espelho curvo.

As anamorfoses sociais têm sido estudadas pela psicologia social, o professor Antonio da Costa Ciampa, da Universidade de São Paulo (USP), compara o conceito que vem das artes visuais com as chamadas personas non gratas de nossa sociedade, os marginais. Aqueles que burlam as regras!

Uma anamorfose se diferencia do comportamento corrupto, pois este é carregado de mau-caratismo e se caracteriza em querer se dar bem em cima dos outros. As anamorfoses são almas transgressoras que, segundo o rabino Nilton Bonder, líder espiritual da Congregação Judaica do Brasil e autor do livro “Alma Imoral”, são necessárias para a evolução do mundo.

Em sua obra, Bonder compara o sujeito que deu o primeiro passo diante do Mar Vermelho como um transgressor. Ou seja, uma anamorfose é o sujeito que, por não concordar, consciente ou inconscientemente, com o que lhe é imposto, com aquilo que o oprime de alguma maneira, transgride!

Eu diria que pessoas consideradas “loucas” por muitos, em suas respectivas épocas, eram anamorfoses. Ícones como Van Gogh, Pablo Picasso, Raul Seixas, Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Freud, Chico Xavier, Nietzsche, Jesus, etc. O problema não está em cometer erros, está em não compreender os sentidos que estes mesmos erros podem alcançar e significar para a sociedade o que está por trás deles. Anamorfose é, no final das contas, outra forma de dizer a verdade! Por isso são, na sua grande maioria, incompreendidas.

Diante da explicação de Janis (como chamamos nossa ilustre e inteligente amiga), brindamos a nossa saúde, as ovelhas negras, ou melhor, anamorfoses. Daí, o resto da noite foi regado a dezenas de boêmias bem geladas e muitos outros assuntos interessantes, como sempre. É por essas e outras que adoro essa galera. “Mas louco é quem me diz que não é feliz…”

(*) Janisse Carvalho é psicóloga, militante da Cultura, professora universitária, atriz e professora de Teatro

Como foi que eu perdi você? – Crônica de Evandro Luiz

Foto: Nathalia Rodrigues

Crônica de Evandro Luiz

Paulo Fontenelle era de Guarapuava, no Paraná, que até os dias de hoje mostra através de construções espalhadas pela cidade a forte presença espanhola na região no século XDC ( século 19). Ele tinha 34 anos, era casado com a chilena Maria das Dores e pai de dois meninos: André, de seis anos de idade, e Pedro, de três. Os dois se conheceram nas Cataratas de Foz de Iguaçu. Foi paixão a primeira vista. Em menos de seis meses eles estavam casados.

Ele trabalhava em uma fábrica de automóveis no setor de reposição de peças e ela dava aula de espanhol em uma escola privada. Não levavam uma vida difícil, mas também não chegavam a fazer parte da classe média. No fim do mês, não sobrava muito, mas dava o suficiente para o lazer das crianças e até mesmo do casal. Não abriam mão do costume de levar os filhos ao parque, fazer um churrasco de costela de cordeiro e tomar um bom vinho nos fins de semana.

A demissão de 50 trabalhadores, férias coletivas para outros 50, e a redução na jornada de trabalho acendeu a luz de alerta do casal. Na casa de Paulo e Maria, o clima já não era tão bom como antes.

As notícias negativas e a violência na cidade crescia muito e ocupava um longo espaço na mídia local e isso de uma forma ou de outra contaminava a relação entre os dois. A instabilidade econômica do país, levava o casal a desconfiar que o pior ainda estava por vir.

Como milhares de brasileiros, eles se perguntavam: Mas como podia isso acontecer em um país rico, que tinha o povo mais hospitaleiro do mundo, solidário e que não desistia nunca de seus ideais, de sua vocação em ser a maior liderança da América do Sul? Como um país que, além de ter o melhor futebol do mundo, tem ainda o carnaval, a maior festa popular do país.

Nenhum outro lugar no mundo tem tantos feriados como aqui. Não tem terremotos, tsunami, vulcões em erupções. E de repente, o que o casal mais temia, aconteceu: Paulo Fontnelle foi demitido da empresa depois de dez anos de casa.

Paulo não quis perder tempo e saiu em busca de um outro trabalho. Mas as respostas eram sempre as mesmas: não havia vaga. Foi aí então que Paulo Fontenelle tomou a decisão de procurar trabalho em cidades vizinhas.

Maria não disse nada, apenas chorou na janela que dava pro quintal da casa e viu a araucária, árvore símbolo do estado do Paraná, sem nenhum fruto de pinhão. Antes de sumir na esquina, Paulo olhou pra trás e acenou para a mulher e os filhos. Foram 15 dias de busca, mas sem conseguir nada. Cabisbaixo, pensando como iria sustentar a família sentiu um vento enrolar em sua perna uma folha de jornal.

E lá esta a na manchete. “A última fronteira agrícola no norte do país será ocupada por paranaenses”. Paulo pegou o ônibus e voltou para Guarapuava. Ao dobrar a esquina, viu a casa toda fechada. Sentiu um aperto no coração e quando abriu a porta não havia nada mais que um silêncio dilacerante. Foi até a sala e encontrou um envelope debaixo de um vaso já com flores murchas. Maria tinha voltado para Santiago. Enquanto lia, as lágrimas derramavam sobre o peito dolorido pela ausência da família.

Na saída do comboio de caminhões, via no horizonte a incerteza de uma nova jornada, em um lugar distante onde teria que lutar por um pedaço de terra. Chegou sentindo o calor de 40 graus, viu as terras e teve a sensação era ali a sua nova morada: na terra do meio.

Teorias, teorias… – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Outro dia, pelas ondas desta onda chamada internet, encontrei um velho amigo (velho mesmo, já que o tempo está correndo mais que o Bolt, tanto para o amigo quanto para mim). Falamos sobre os desastres do momento: pandemia, nuvem de gafanhotos, gestão escrota. Aí ele me falou de mais uma teoria, das tantas que coleciona, e me saiu com esta:
– Os vírus existentes no mundo e todas as bactérias e fungos e tantos seres invisíveis são os legítimos habitantes deste planeta! Tô te dizendo!

– Sério? – respondi, sem muito o que dizer.

– Seríssimo! Veja bem: os vírus malignos mesmo, os que perpetram as maiores atrocidades, somos nós, os seres humanos! É o ser humano que toca fogo na mata, que joga lixo nos rios, que torna insuportável a vida na Terra. Aí, a natureza, que sabe muito bem o que faz, tem seus momentos de reação. E quando a natureza reage, mano, não tem ser humano que segure! E sabe como ela reage? Através de vírus, de praga de gafanhoto, de ciclone, de tsunami, de erupção vulcânica. É isso!

Pensei um pouco e vi que ali tinha um tanto do que acredito. Mas tentei argumentar:
– O problema é que, no meio de tanta gente ruim, morre muita gente legal…

Meu amigo estava com a corda toda:
– Sim, concordo! Mas olha só: os maus morrem por serem maus e os bons morrem por não conseguirem deter os maus! Não evitam, e aqui eu coloco eu e tu, que o planeta seja maltratado, não impedem a degradação da Terra!

A conversa me interessava, mas já estava me levando para uma certa deprê. Aí eu tentei fugir do assunto, porque, nestes tempos de pandemia, dar terreno para a depressão, definitivamente, é um péssimo negócio.

Nos despedimos e prometemos nos encontrar quando tudo passar:
– Por falar em quando tudo passar – disse meu amigo –, já viste essa galera que não sai da rua? Tem uma porção de gente saindo de casa sem necessidade alguma! E fazendo churrasco, tomando cerveja, se aglomerando, sem máscara, cuspindo perdigoto pra todo lado! Por que esse pessoal não faz que nem o Elton, que toma a cervejinha dele na casa dele, sem incomodar ninguém? Eu fico é mordido logo! Se essa galera, que é o verdadeiro vírus, ficar zanzando por aí, sem nada de importante pra fazer na rua, essa pandemia não vai passar nunca!

Antes que meu amigo desenrolasse mais uma teoria, e como eu estava propenso a concordar com ele (é um perigo: toda vez que concordo muito com ele, acabamos brigando rsrsrsrs), me despedi, alegando que estava na hora de assistir a alguma live.

Agora estou aqui, pensando que a teoria do meu amigo talvez não seja tão absurda: e se formos mesmo o vírus maligno deste planeta?

Se outro nome – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

E se um dia eu acordasse com meu nome sendo outro nome? Outro nome, outro codinome, outra vida, outras vidas, uma vida por dia, várias vidas ao mesmo tempo, no mesmo dia.

Se de repente eu percebesse que meu nome é Marco Polo, René Magritte, Clarice Lispector?

E se alguém perguntasse meu nome e, quando eu fosse dizer o nome que sempre me acompanhou, saísse outro nome: Arthur Antunes Coimbra, Theda Bara, José Mojica Marins.

E se eu acordasse Albert Sabin, Penélope, Humphrey Bogart? Se de manhã fosse Tim Maia, Pola Negri ou Pepe Mujica e, ao meio-dia, mudasse para Pancho Villa, Arthur Bispo do Rosário, Elvis Presley?

No café da manhã, seria Eden Pastora, James Cagney, Gerônimo. No almoço, Martha Medeiros, Shang-Chi, Suzana Flag. No jantar, Fernando Pessoa, Lex Luthor, Vladimir Maiakóvski.

Entraria no cinema e lá me transformaria em Fred Flintstone, Al Capone, Alec Guiness. Ao sair do cinema seria Mata Hari, Stuart Little, Wolfgang Amadeus Mozart.

Alguém entenderia se meu rosto fosse da Greta Garbo, na carteira de identidade aparecesse o nome Bono Vox e o nome que constasse na carteira de motorista fosse Eder Jofre?

Ser Bob Dylan, Kunta Kinte ou Charles Bukowski um pouco por dia, só de chinfra. Já pensou? Ser Chico Buarque por cinco minutos seria uma boa, hein?

Sempre que fosse dizer meu nome outro nome brotaria da minha boca: Mick Jagger, Bruce Lee, Roberto Rivellino.

Já na universidade seria Stephen Bantu Biko, Tex Willer, Jorge Luís Borges. Na vizinhança, meu nome seria Paulo Leminski, Vito Corleone, João do Pulo. Nos bares, emergeria o nome de Sônia Braga, Camilo Cienfuegos, Black Jack Tarr.

Há alguns nomes que acho de grande beleza: Florbela Espanca, Dalcídio Jurandir, Eneida de Moraes, Raimundo Fagner, Massimo Matioli, Álvaro Apocalypse, Pixinguinha, Carlos Drummond de Andrade.

Mas vou terminar esta crônica e esta vida com o nome que me foi dado lá no princípio de tudo. O nome que odiei, o nome que amei, o nome que me assinalou no meio de tantos nomes. Esse nome que é Ronaldo Rodrigues, que é Ronaldo Rony, que não é rima nem solução para o mundo, e que é também (por que não?) Djavan, Millôr Fernandes, Mauricio Babilonia, Berlim, Tom Zé, Doroteia Cabral, Lápis-Lazúli, Billy Podre, Sabino Navegante, Rita Lee Jones, Rasputin, Aureliano Buendía, Tereza Batista, Arnaldo Antunes, Virginia Woolf, Virgulino Ferreira, Capitão Nemo, Esmeralda Borges, Hermeto Pascoal, Lee Oswald, Bram Stoker, Muhammad Ali, Diego de la Vega, Jesse James, Charlie Chaplin, Bruce Benner, Jesus Cristo…

IMPORTAR – Por Vladimir Belmino

A palavra importar é da classe gramatical verbo do tipo regular, etimologicamente vem do Latim (importare: ‘trazer para dentro, importar’). Como verbo, pode ter vários significados, variáveis de acordo com sua flexão e com seu emprego, seja como verbo intransitivo, seja como verbo pronominal, seja como verbo transitivo direto e, finalmente, como verbo transitivo indireto.

Para efeito deste rápido trabalho, nos interessa o verbo pronominal, o que traduz ‘dar importância a’; ‘fazer caso de’, podendo ser utilizado como nas frases: “não se importa com nada” e “ele se importa com ela”.

Ainda como verbo, como todo e qualquer verbo, ele é ação em sua essência. Ou seja, o palavra-verbo importar implica um movimento; sendo da classe verbo às palavras que fazem a vida existir, a exemplo do famoso texto bíblico de João 1:1-4 “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”.

E esse pensamento é muito poderoso, uma chave de conhecimento, independente de sua contextualização religiosa. Em verdade, a mensagem que vem do texto bíblico transpassa a religiosidade ao se perceber que não é dado a ninguém, nem mesmo ao Deus, realizar sem ação, sem verbo.

Então, na frase “ele se importa com ela”, o que nos conta o verbo ‘importar’ na utilização pronominal? A qual movimento nos agita? A qual ação nos inspira? Ele nos diz que temos que nos importar com o outro, mas como se dá essa ação de se importar com o outro? É a compaixão, seria compreender o que o próximo está passando ou o colocar-se no lugar do outro? Refletindo sobre outro trabalho apresentado na sessão da Loja Zohar, de autoria de nosso irmão José Lobo Neto, cheguei a outra conclusão.

Se importar com o outro é o movimento de trazer o outro para dentro de si; como se fosse um ato de importar produto do estrangeiro para dentro de nosso pais. É mais que sentir compaixão, muito mais do que se colocar no lugar do outro, sentir na pele o que ele passa. Isso é só o começo do ‘se importar com o outro’.

No momento em que se realiza a dificuldade alheia, percebendo-a, foi dado o primeiro passo no complexo ato de ‘se importar’ com o outro, na sequencia vem a ação propriamente dita de tirar o outro de onde se encontra – ajudar a sair da dificuldade ou do sofrimento – trazendo-o para seu mundo onde esta vicissitude não existe, ou onde pode ser mais branda pelo compartilhamento da solidariedade.

Solidariedade é um ato de bondade com o próximo ou um sentimento, uma união de simpatias, interesses ou propósitos entre os membros de um grupo. Ao pé da letra, significa cooperação mútua entre duas ou mais pessoas, interdependência entre seres e coisas ou identidade de sentimentos, de ideias, de doutrinas. Alguém quer falar de sua etimologia? Pois ela não é verbo, mas rende bons pensamentos também.

Por fim, para que repouse em nossa mente algo de útil sobre o verbo e sobre agir, que demonstre a beleza de seu movimento e a pequenez de nossa mente, socorro-me e espalho o pensamento inquietantemente belo de Manoel de Barros, no poema VII de “Uma didática da invenção” (in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2011), deixando a quem deseje, criar a poesia IMPORTAR:

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Confrade Vladimir Belmino de Almeida, cadeira nº 31 Moacyr Arbex Dinamarco, em 12.02.2017.

ERA UMA VEZ – Crônica de Evandro Luiz

Foto: Maurício Paiva.

Crônica de Evandro Luiz

A cidade era tão pequena e distante dos grandes centros que passava despercebida do resto do país. A população, na maioria agricultores, estava profundamente enraizada com a terra. “daqui só saio para o cemitério’’ dizia Joaquim da Paixão, negro de um metro e oitenta, exímio batedor da caixa de marabaixo, forte como um búfalo, rápido que nem cobra sorrateira e liso que nem giju.

Veleiro no Rio Amazonas – Foto: Manoel Raimundo Fonseca

Com toda essa performance, ganhou fama e prestigio, mas também adversários. as marcas no corpo revelavam uma vida agitada. ainda assim, repetia sempre: “daqui não saio nunca, só morto”. O rio em frente da cidade parecia ser um obstáculo intransponível para quem tinha o desejo de sair do isolamento, tamanho a sua magnitude.

Foto: blog Amapá, minha terra amada.

Além do medo de ter que viajar em barcos que pareciam ser grandes gaiolas, por um período de três dias para se chegar a cidade mais próxima. Viajar de avião era impossível para quem vivia da agricultura de sub existência. então só lhes restavam viver com intensidade o que lhes foram destinados.

Folia Religiosa de São Sebastião, em Mazagão Novo, no Amapá (Foto: Iran Lima/Associação Amapaense de Folclore)

Líderes da comunidade cumpriam religiosamente o calendário dos santos preferidos e de datas importantes. Tradicionalmente se reuniam e faziam a festa do senhor em frente à igreja. Com a chegada de padres italianos os ânimos ficaram acirrados.

Foto: Márcia do Carmo

Os padres não queriam aqueles rituais envolvendo o senhor em frente do templo. Eles espalharam que os festeiros seriam amaldiçoados caso não mudassem a festa da santíssima trindade para outro lugar.

Foto: Chico Terra

Houve resistência foi aí então que a igreja usou do seu quinhão celestial contra os simples mortais. em reunião secreta entre os padres e governo, foi decidido que o centro da cidade seria urbanizada. assim os moradores que viviam em terras, fruto da herança de seus antepassados, estavam entre a desobediência e a cruz. Ainda assim, alguns tentaram ficar. Mas o medo de serem amaldiçoados e banidos do cristianismo falou mais forte.

Foto: Maurício Paiva.

Para enfraquecer o movimento veio o segundo golpe: as lideranças foram divididas e distribuas para lugares diferentes e longe do centro. contudo, o balé das senhoras com roupas coloridas persistiam. e mesmo com as dificuldades, a força e a vontade dos festeiros em preservar os costumes dos antepassados eram fortes. mMs com a fragmentação do movimento, reacende um sentimento incubado nas lideranças. O da disputa pela hegemonia do calendário profano da festa do senhor.

Foto: Maurício Paiva.

A festa da criação da cidade é realizada com toda estrutura governamental e participam do evento os grupos folclóricos em uma tentativa de agradar a todos. Porém, a disputa ficava mais evidente era na corrida de cavalo que os ânimos ficavam acirrados e justamente onde João da Paixão se destacava. Ganhando praticamente todas as provas. Um fazendeiro de São Paulo ficou tão admirado, que não pensou duas vezes: vou levar esse vaqueiro.

A notícia se espalhou rápido. No embarque para são paulo, João tremia que nem vara verde. Pela primeira vez ia entrar em um avião o que estava totalmente fora de seu controle, foram seis horas de muita agonia.

Dois meses depois da sua chegada veio o primeiro rodeio. João da Paixão nunca tinha visto tanta gente reunida. a prova consistia em derrubar um boi em pleno movimento. Prova fácil para o vaqueiro do norte que conquistava cada vez mais admiradores. Na realidade, João se preparava para o grande final que reunia os melhores peões do país. No dia da competição, o vaqueiro do norte entrou na arena sob gritos da multidão.

Foto: Maurício Paiva.

Para trás ficava em definitivo o batedor da caixa de marabaixo.

Uma lady – Crônica de Lulih Rojanski

Crônica de Lulih Rojanski

   Eu sou uma pessoa educada. Sem pretensão, sou educadíssima. Educada para resmungar palavrão ameno quando bato a canela ou o cotovelo na quina de um móvel, para gritar palavrão obsceno quando o motorista da frente dobra sem sinalizar – especialmente quando ela dobra à direita (que sempre me soa a nocivo) e para xingar o político ladrão.

   Meus pais me deram educação primorosa. Não tinha ainda sete anos quando me ensinaram a revidar humilhação, desrespeito e calúnia. Foi isto, inclusive, que me garantiu dar pedradas em quem me dava tapas na escola, a chamar de piolhento o menino que me tratava por polaca azeda. O preconceito contido em “polaca” era insondável.

   A questão de não levar desaforo pra casa é bastante filosófica. Levar desaforo ou devolvê-lo vai depender sempre da disciplina que se tem para, no instante da contenda, lembrar-se do Buda ou do diabo. Eu bem que tento cultivar atitudes de tolerância quando sou ofendida. O sujeito que tem o dobro do meu tamanho e não quis desviar de mim numa calçada estreita, por exemplo, quase recebeu uma ameaça de morte. Mas minha tolerância só chegou até aí. Olhei para aquele brucutu cheio de saúde e disposição e perguntei-lhe se tinha mãe.

   Sou educada o suficiente para acreditar que o limite da tolerância para uma ofensa depende da temperatura do seu sangue. O meu é lava. Sou descendente de judeus poloneses, meus avós escaparam por pouco do Holocausto. Não posso e não quero deixar nada barato.

   Já me deparei com gente que me achou com cara de mosca morta porque o revide não veio na hora. Mas a educação para responder à altura que eu trouxe do berço não passou da hora da sobremesa. Com toda a educação que me é inerente, matei a cobra e mostrei o pau, assim que meu ofensor se convenceu de que tinha feito 1×0.

   A educação que recebi também veio com palavras mágicas que despertam sorrisos, que estendem mãos, que abrem portas e que estimulam gentilezas. De todas elas, a que mais gosto é: obrigada! Demonstrar gratidão faz parte do pacote de educação que me deram. E a quem não sabe ser grato pelo que recebe, dedico outra expressão mágica que só os bem-educados sabem usar corretamente: foda-se!

   Fui educada para a paciência, para a solidariedade, para a generosidade e a humildade. Nem sempre é possível colocar tudo isso em prática, mas a paciência tem sido meu maior desafio. Perco a paciência comigo mesma quando percebo que ainda espero algo maior do ser humano. Ou quando me perco no labirinto do “tudo é sobre mim”. Mas também sou educada para sair de fininho e me recolher à significância dos que sabem se mancar e encontrar a saída do labirinto. Au revoir.

Se vivo, Raul Seixas faria 10.075 anos hoje! – Por Silvio Neto

Por Silvio Neto

Decifre as entrelinhas dos hieróglifos das pirâmides do Egito, do calendário Maia, das Itacoatiaras de Ingá. Leia os símbolos sagrados de Umbanda, as centúrias de Nostradamus e o Tarot de Crowley… Não importa qual seja o mistério, todos serão unânimes em lhe revelar: Existe um cometa errante; uma estrela bailarina que vaga no abismo do espaço sem fim flamejando um rock e um grito! Em sua jornada, ele só passa pelo nosso planeta a cada dez mil anos. É quando ele renasce e encarna como um Moleque Maravilhoso, trazendo ao mundo à sua volta mudanças profundas no seu pensar e no seu comportamento.

Sua derradeira passagem por aqui durou apenas 44 anos. Mas foi suficiente para que um país inteiro de dimensões continentais se tornasse menos careta. Há exatos 75 anos, quando ele chegou por aqui em mais uma de suas passagens, esse intrépido cometa trouxe em seu rastro a bomba atômica, em 1945, fechando um ciclo da Terra conhecido como velho Aeon e trazendo à luz o Novo Aeon materializado em forma de música.

Era o dia 28 de junho. Aquele, foi o dia em que a Terra parou. Mas antes disso, ele usou de seus artifícios alquímicos e conseguiu juntar as águas do rio São Francisco e do rio Mississipi, criando a fusão perfeita do rock’n’roll de Elvis Presley com o baião de Luiz Gonzaga e como um novo Macunaíma desvairado gritou em cima do palco do III Festival Internacional da Canção (1971) “Let me sing, let me sing (my rock’n’roll)”!

Seu nome é o contrário do luaR pois ele é um cometa iluminado. Em sua metamorfose ambulante pela Terra, se fez de maluco para revelar sua genialidade; brincou de cowboy para mostrar que preferia ser um fora-da-lei; acumulou riquezas e glórias por um tempo para mostrar que o ouro é para o tolo.

Esse ano, em agosto, já terão se passado 31 anos de sua última visita aqui no nosso planeta. Ainda assim, seu rastro é tão presente, tão vivo, que é como se ele ainda estivesse por aqui, cruzando o nosso céu.

E assim como as estrelas que vemos são muitas vezes apenas o reflexo de milhões de anos-luz de corpos celestes que ainda nos impressionam a visão, o cometa Raul Seixas, brilhará na mente e no coração de milhares de fãs por muitos e muitos anos até, quem sabe, sua próxima passagem há dez mil anos…

Meu comentário: grande Raulzito. Um artista sensacional que inspirou e inspira muitos de nós, fãs. Tanto pelo fascínio da linha tênue entre a feliz loucura da autenticidade, quanto pela sinceridade à bruta, sempre poetizada em um rock and roll dos bons. Viva Raul! (Elton Tavares).

P R I M H U S. – Conto Ficcional de Luiz Jorge Ferreira

Conto Ficcional de Luiz Jorge Ferreira

Ele mergulhou o pé caloso pelas inúmeras e frequentes caminhadas naquele terreno seco e pedregoso, e teve receio que as tiras ressecadas e praticamente a beira de se partirem, o fizessem…mas qual aguentaram firme e até relaxaram um pouco dando um leve descanso aos seus pés também repleto de cicatrizes …estava aflito…hoje o Primo viria ser batizado por ele…O Nazareno, como diziam…o que caminhava sobre as águas…o que apacentava as tempestades…dito isso para si mesmo, olhou o remanso que o movimento de balanço das suas pernas e pés dentro do riacho provocava…


O Rio Jordão estava quase transformado em um filete d’água se arrastando, uma seca se estendendo a muito tempo, queria beber de toda a sua água, já secará as Tamareiras e outros arbustos frutíferos por ali espalhados, sobrará aquele franzino ao seu lado que frutificava uns frutinhos escassos com textura de esponja e gosto de vinagre, que deixava um grude na boca, mas mesmo assim com eles ele enganava a fome, e quando um figurão da realeza mais por curiosidade que propriamente conversão vinha ter aqui trazendo consigo um servo mais afeiçoado pela família que desejava ser batizado, doavam-lhe um naco de pão preto, ou uma frasqueta de azeite de oliveira, o coração se alegrava…mas hoje seu Primo vinha, seu coração aguarda aos saltos.

Vinha porque os estudiosos das leis e dos livros Sagrados haviam escrito que um dia o Pastor de todas as as Tribos da Judéia, seria batizado nas águas de um riacho…as vezes ele fica a pensar, não seria detrás desses Montes, daquele outro, ou daquele mais longe, onde deverá ter um outro batizando, em nome de Deus?

Eu batizo aqui nesse lugar nem mesmo sei porque parei aqui e já se vão vários Equinócios….
Comecei a falar sobre o que vem na minha mente, e foram chegando pessoas, até mesmo de outras aldeias que não falam Aramaico, falam Grego, Latim, Hebreu, e outras , mas eu os entendo e se me perguntam se há um só Senhor do Céu e da Terra…eu respondo que sim …e lhes conto a Parábola do Bom Samaritano, e eles abençoam minhas palavras, e como foi que me entenderam, não sei…saem a dizer…Deus é um só, e seu filho está entre nós, para nós salvar.


Hosana!

A noite conto as estrelas, mas sempre as confundo com algum brilho de Pirilampos que se aproximam da lama das margens para umidecer suas bocas e piscam suas luzes de alegria quando encontram umidade, eu confundo os números, embora os tenha riscado na areia do chão…
Ele, dizem, sabe.


Como vou batizar ao Primo…se nao sou digno de lhe abotoar as sandalias, o que direi …se todos já dizem que ele é o filho de Deus entre nós…

Retirou os pés das águas do riacho e se encolheu medrosamente…estava amanhecendo…lá adiante uma carroça sem os animais jazia no chão como que desenhando contra os Montes um vulto de alguém de joelhos…prestou atenção e molhou os olhos com a água que escorria da sua mão…
Um dos que por lá pernoitara…se aproximou… João…João…beba e lhe deu uma caneca de chá cuja a fumaça subia dela formando uma branca espiral…

Tomou de um grande gole.
O Nazareno está chegando…
Tem certeza que é aqui, comigo, nesse riacho quase seco que ele vem ser batizado…?
Há outros que batizam atrás desses Montes cheios de Oliveiras…
Estas com medo João?
Perguntou o estranho.
Estou sim, respondeu…

O Monte Hermon, ali adiante, apontou, olhou ao redor, o estranho havia sumido.
Podia ouvir agora prestando mais atenção um barulho de vozes se aproximando, caminhando em sua direção , alguns da tribu de Jassé, que costumavam pernoitar com suas ovelhas por ali, perto da entrada da Gruta do Eco, assim chamada porque guardava consigo o segredo de provocar um eco até mesmo de uma pequena moeda e lhe multiplicar várias vezes, bastava que ela caísse ao chão na sua entrada.


Por isso eles cercavam a entrada dela com gravetos, para que as ovelhas lá não entrassem e provocassem um imenso bééééééééé….
Já despertos se aproximaram com suas fundas armadas com grandes pedregulhos.
Ele fez um sinal para que parassem e caminhou em direção ao grupo.
Reconheceu-o apesar dos muitos anos sem vê-lo., teve vontade de andar bem rápido e lhe abraçar…dizendo…

Que bom vê -lo…eu estou tão feliz…que agoro posso morrer…
Ao que o Primo, como que lendo seus pensamentos, pós a mão em seus ombros e disse…antes que faças qualquer coisa, cumpramos as profecias…me batize.


Dito isso, retirou a túnica descalçou as sandálias e entrou no Jordão, que perfumou-se de Alfazema, sem que houvesse nenhum arbusto dessa família por ali, a não ser o que frutificava pequenas frutinhos vermelhos ácidos e travosos, que depois que João voltou a si de tudo, seus pés, continuavam dependurados dentro do Rio Jordão, a silhueta da carroça havia desaparecido, nenhum balido de ovelhas, nem sinal da caneca de chá, e uma sensação estranha de silêncio interno, sentiu fome e esticou a mão em em direção ao arbusto de frutinhos azedos e travosos…
Mordeu… e atônito reparou que haviam se transformados em frutos a semelhança de uvas…e o que estava ali volumosa e carregada, era uma parreira.
Levantou-se, já chegava a noite…foi ao princípio da estradinha e viu marcas de muitos passos..haviam vindo muitos…
Abaixou-se a cheirar as pegadas, algumas delas cheiravam a um perfume que havia se diluído, mas não era de todo indiferente…
Pensou…teriam vindo…e ele dormirá?
Imaginava ter embebecido após tomar a caneca de chá de uma só vez, mas estava sedento.
Não havia ninguém…
As águas sabiam o que havia acontecido, mas as águas não falam…
Olhou o Rio Jordão…
Continuava ali…

Para o lado da caverna havia um barulho de vozes…lembrou -se dos pastores…
Foi caminhando…
Havia alguém falando mais alto que todos e o eco trazia as palavras até ele.
Aproximou-se reconheceu sua voz…que poderia estar falando…sim …pode ouvir com nitidez, estrondosamente, ele batizava o Nazareno. Prostrou-se ao chão…
Como um pesadelo, sonhou que sua cabeça jazia dentro de uma bandeja de prata e lhe chamava…
Venha João Batista.
Acordou sobressaltado…

O coração aos saltos…por acaso voltará a dormir, tão exausto que se encontrava.
O Rio Jordão quase moribundo, como por milagre recebia as primeiras chuvas.

* Osasco (SP) – 23.06.2020

Sou a favor – Crônica de Lulih Rojanski

Crônica de Lulih Rojanski

É uma pena que ser a favor não mude coisa alguma em lugar algum. Mas é confortante ser a favor… Sou a favor de desligar o rádio e a TV para ouvir a chuva; sou a favor da instalação de espreguiçadeiras nas beiras de rios, lagos e oceanos, e de um sistema de revezamento para usá-las que permita um tempo curto de espera para contemplar as paisagens, de pés descalços e com as mãos atrás da cabeça.

   Sou a favor da distribuição gratuita de picolés de limão pela prefeitura nos dias de calor; do direito de não aceitar governantes e de governar a própria vida do modo mais livre e não contemplado em nenhuma constituição; de fazer jardins em qualquer lugar onde haja terra desocupada; de andar nu pelas ruas, avenidas e logradouros, sem risco de execração; de vestir fantasias coloridas para ir ao trabalho… As cores têm a propriedade de transformar os sentimentos amargos em partículas de alegria.

    Sou a favor de orfanatos para animais abandonados; do aprendizado de instrumentos musicais desde o jardim de infância; da leitura dos clássicos da literatura todas as noites antes de dormir; da infinita acessibilidade aos livros; da liberdade de levar um edredom para o cinema; de chupar pirulito durante a aula, pois ele ajuda a manter a concentração; de repetir o prato sempre, seja do que for; de gritar ao ar livre para expulsar os demônios ou para acordar os anjos; de trocar o tapinha nas costas por uma pirueta; de encurtar os caminhos para tudo o que dê prazer; de colocar os varais de roupas floridas na frente da casa; de contar as estrelas apontando com o dedo, sem medo de verrugas; de dar às ruas nomes engraçados.

  Sou a favor de desligar a televisão na hora do jantar; do uso do guarda-chuva preto ou das sombrinhas coloridas em todas as ocasiões, porque a nostalgia é sempre bem-vinda; de água gelada nas torneiras públicas; do fim dos copos descartáveis; do barateamento dos chocolates; da anulação do ciúme e do reconhecimento da saudade como o mais belo sentimento; do uso universal dos colares artesanais de dois reais, dos vestidos florais, das sandálias de couro com túnicas brancas; do cultivo de ervas no quintal por quem aprecie os chás ou as poções.

  Sou a favor de tudo o que prolonga a vida; da alimentação natural e também dos churrascos dominicais; de taças generosas de vinho em todos os almoços; da venda de laranjas descascadas; das caminhadas que alcançam a noite; da extinção dos barbitúricos, ansiolíticos e analgésicos químicos que prometem combater a tristeza e a dor, mas instalam os vícios; de acender fogueiras nas noites de lua ou sem lua, para incentivar o florescer da alegria.

  Sou a favor de trocar o nome das coisas que têm nomes feios, como seborreia, cônjuge e fronha; de inventar palavras mais poéticas e gestos mais cordiais; da volta definitiva do vinil; da viagem no tempo, para que possamos todos voltar à infância e ver nossa própria doçura; da compreensão das gerações passadas; do conhecimento da história; das crianças ouvirem os velhos; da criação artística de toda natureza.

  Sou a favor das longas viagens por lugares distantes; de visitar os pais; de escrever cartas e enviá-las pelo correio; de conversar com os bichos e compreender sua resposta; dos shows gratuitos de música clássica; da entrada franca em cinemas, galerias e museus; do direito de dormir nos gramados das praças; de mudar o nome de batismo quando o nome que nos deram não nos cabe; da instalação de brinquedos para adultos nos parquinhos infantis.

E para concluir este apanhado de sonhos que nunca constarão dos textos massacrantes das leis, declaro que sou incondicionalmente a favor da desobediência civil, do amor natural e da crença na vida além da vida.

NO MEIO DO FIM DO MUNDO – Crônica de Evandro Luiz

Este editor, com o autor dessa crônica porreta, o jornalista Evandro Luiz. Foto de 2017, feita pela poeta Jaci Rocha, na casa da escritora Alcinéa Cavalcante.

Crônica de Evandro Luiz

Antônio Laranjeira sente pingos de chuvas nas costas. É como se fosse um aviso, o que faz aumentar o ritmo de trabalho. Sabe que tem pouco tempo para retirar a última safra de mandioca. Olha para cima e o que vê? São sinais que ele bem sabe interpretar. Nuvens escuras carregadas que expelem relâmpagos sempre acompanhados de trovões. São tão fortes que nem um pássaro se atreve a bailar no meio da floresta.

No rosto de Antônio, o suor e água se misturam e percorrem o mesmo caminho feito pela dureza do trabalho do campo. Início do mês de Março. Das cabeceiras dos rios Jari, Amapari e Araguari são despejados um volume de água imensurável. As chuvas esmagam as plantações agrícolas, nos lagos, igarapés e rios. O nível da água subiu tanto que os peixes desapareceram desses lugares.

É nesse cenário de alternância climática que Laranjeira vive há vinte anos com a mulher Izabel e o filho Lucas, de sete anos. Agora ele decidiu que viria para a cidade grande. Por enquanto, viria só. A mulher e o filho ficariam em casa de amigos. Viria buscá-los com o salário que deveria ganhar trabalhando. Na despedida nenhum choro, nenhum abraço, apenas olhos marejados de quem deixa pra trás apenas o dote da incerteza.

No meio do caminho, ouviu o grito dos vaqueiros tocando a boiada rumo as marombas, curral de madeira construído acima do nível do rio. Serão assim nos próximos 5 meses. O caminhão, um pau de arara velho, já carregado com frutas e legumes é o único meio de transporte para a chegar na cidade grande. Depois de uma viagem longa e dolorida, Antônio Larajeira, desembarca em uma estação rodoviária barulhenta, suja e muita gente correndo de um lado para outro.

O mototaxi foi a primeira novidade. Mostrou o endereço no bairro Zerão e, lá se foi Antônio Laranjeira com sua pequena bagagem na garupa de uma moto cortando as ruas e avenidas da cidade. Foi levado até uma área de ponte. Na frente da casa onde ia ficar, 4 crianças brincavam sem perceber o perigo que corriam se alguma delas caísse dentro do lago. Ele foi recebido por Dayse, de 15 anos de idade, sobrinha da esposa de Laranjeira. Ela vivia com José Gregório, conhecido na baixada como Faísca.

Corria pela boca pequena na comunidade, que Faísca era foragido da polícia. Acusação: ele tinha deletado o CPF de três homens em Bacabal, outro município do Maranhão. O barraco tinha apenas uma sala e dois quartos. Tudo dividido por cortinas de pano.

Nem bem chegou, e já queria sair atrás de emprego. Foi aconselhado a descansar e no outro dia sairia com Faísca em busca do emprego. Mas no meio da madrugada, foi acordado. Faísca disse que tinha um trabalho a fazer e que renderia um bom dinheiro. Deixou a pequena mochila em um canto onde fez dela o travesseiro.

De bicicleta os dois saíram, ninguém na rua, silêncio total. De longe avistou um estádio, sentiu no rosto o ar fresco da madrugada vindo do grande rio. Olhou para o outro lado e ouviu o som de tambores gemendo as dores dos antepassados. Faísca disse que ia faze rolé pra ver a situação. Antônio ficaria esperando. No meio da escuridão, Laranjeira pensou na família, nos tempos em que a pororoca atraia gente de vários lugares do mundo e sempre requisitado por conhecer bem a região.

O amanhecer chegava e as estrelas sumindo. O céu ia tomando cores avermelhadas e o azul do infinito se espalhava anunciando um novo dia. Antônio Laranjeira como que embriagado pela atmosfera flutuava em sonhos platônicos.

A volta a realidade foi tão dura quanto a vida que levou. O impacto por trás o levou a lembrar do ronco da pororoca chegando, anunciando a destruição que o fenômeno fazia ao encontrar o que tinha pela frente. Laranjeira foi arrastado por mais de cem metros deixando no asfalto sangue e a esperança que tanto sonhou. O carro sumiu deixando Antônio agonizando. Viu a vida passar como se fosse no vídeo tape.

Foto: Márcia do Carmo

Sentiu um calor suave no rosto. Era o exato momento do alinhamento do sol com a linha imaginária do equador. O som dos tambores diminuíam em sintonia com as batidas do coração do agricultor. Antônio Laranjeira deu o último suspiro e morreu no meio do mundo em pleno Equinócio das Águas.

Cartas Que recebi, Mas leio agora (parte III) – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

São Paulo
19.Junho.1944

Bonjour Monsieur, Francisco B. De Holanda.

Gracias, por ter respondido a carta que lhe encaminhei pelo Luiz Cláudio, excelente Músico, que por meio do nosso conhecimento há muito estabelecido, prestou-me esse favor.

Nesse período , em que plagiando você…’ A coisa aqui está preta’…eu em uma noite dessa ouvi…Beatriz…Sua e do Edu Lobo…inclusive frequentamos a mesma Sociedade…Escritores Médicos em São Paulo…eu e Sérgio Perazzo, ótimo Contista, que foi e o é, amigo do Edu, e com ele estudou desde as primeiras séries, até a conclusão do Segundo Grau, ambos jogando no time de Basquete do Colégio, que agora dele não me recordo o nome…era um time de ‘ pequenos ‘ grandes jogadores, assim ele relata…de maneiras que após ouvir Beatriz, fiquei instigado a criar perguntas de uma forma de poema, e lhe mandar, parece loucura que bolei isso, mas o fiz, não a giz, mas a caneta.

Ah…ah…ah… Obrigado. Já recebi Cartas de todos os lugares, todos pesares, e todos os algures…como diriam os Fadistas… Senhor Jorge Luiz… Desculpe…Luiz Jorge… Vinicius…O Cantuaria, homem de Zaga no time do Politheama…tem um primo Luiz Jorge…Inversão do invertido.

Mas , respondendo às suas colocações…

…Ela é triste porque é atriz. Ou porque as notas diminutas são lágrimas ocultas atrás do pedal do piano. Ela usa um vestido lilás, porque é a cor que a cena pede, ou porque realça mais o desenho do confete no apogeu da derradeira cena.

Ela corre para cair da escada, e tomar o rumo da história escrita a quatrocentos anos. Ou apenas ensaia um pulo repetido a tempos, e nada mais a acompanhará no fim. Nem a ela, nem a mim, que sei ser impossível entrar na sua vida.

Eu mesmo Chico…( rs..rs..rs) *Como poderia não ser eu… Não tenho por hábito fazer comentários sobre a parte do parceiro em nossas criações , porém ao ler o trecho de sua Carta em que chama a atenção para a sutileza Musical do Edu, ao usar bloco de quatro diminutas, em varias ocasiões do trecho melódico, e causar ao ouvinte, associada a parte da letra que insinua devaneio, devaneios, a semelhança de Litz, eu até mesmo aproveitei para imaginar Chopin.

Esse Comentário, não levei ao Edu, e talvez nunca com ele comente. Outrossim obrigado, por estar atento a presença da escola Provençal poética, ao caminho de Beatriz, o que é um caminho por mim…Chico, na confecção…um tecelão… ( rs…rs…rs)…você o disse.

Música para Peças Teatrais, são tecidas artisticamente e matematicamente coesas, com a cena, e os minutos do ator em cena. Agradeço tudo que exaltou em seu texto , e o trabalho que se deu, para faze-la chegar, até Luiz Cláudio,excelente Musico, que a mim entregou…

Quando voltarmos aqui em casa as ‘ peladas ‘ com bola (rs…rs…rs…) , um dia, será nosso convidado. Demais, e ademais, um abraço…recomendações a família.

Chico.

Noite sem trasladação – Por @juliomiragaia

Por Júlio Araújo (quem também é o Júlio Miragaia)

“Andando eles, ouvi o tatalar das suas asas, como o rugido de muitas águas, como a voz do Onipotente; ouvi o estrondo tumultuoso, como o tropel de um exército. Parando eles, baixavam as asas.” (Ezequiel. 1:24)

I

Sempre achei irônico o fato de o Cine Ópera ficar praticamente ao lado da Basílica de Nazaré. O único cinema pornô de Belém, por muito tempo, tão perto do principal símbolo religioso da cidade. Antes, ao lado do Ópera, funcionava o Cine Nazaré, sala de cinema comprada anos atrás pela Igreja Universal do Reino de Deus e tempos depois pela Lojas Americanas. Hoje, resta nessa quadra do bairro de Nazaré uma carga simbólica: entre a fé, a promiscuidade, a miséria dos mendigos e a padaria da esquina.

Há também uma série de hippies pela calçada, um ponto de táxi na esquina com a Generalíssimo Deodoro e uma loja ao lado do Ópera chamada “Mandarin”, a qual nunca prestei atenção no que se vende lá. A paisagem não se completa, claro, sem as vendas de tacacá, maniçoba e demais comidas típicas. Um pequeno elemento de regionalidade que se funde à urbanidade e também à multidão na parada de ônibus em frente ao Centro Arquitetônica de Nazaré. Uma massa de pessoas de todos os tipos e alheios uns aos outros. Compartilhando do sol quente, do vento tímido e da espera pelos ônibus lotados que passam nos fins de tarde.

II

Era um fim de tarde de sábado, pós uma chuva não tão forte, em outubro. O céu se abria à direita, no sentido de quem estava indo na contramão da Nazaré. Pensei, quando vi a primeira vez, se tratar de um protesto a multidão na rua e a gritaria. Rapidamente percebi que não era isso. Um objeto luminoso, prateado, que emitia o som de motor velho, pousou no meio da rua, o que levou todos a correr desesperadamente em direção inversa ao caminho que eu fazia. Alguns poucos curiosos permaneciam. Viaturas da polícia chegavam e cercavam rapidamente o local enquanto era possível ver os mendigos, os hippies, as vendedoras de tacacá e todas as outras pessoas saindo em desespero. De dentro da Lojas Americanas, da padaria, do Cine Ópera, do Mandarin, da Igreja, de todos os lugares.

O objeto emanou um feixe de luz que atingiu e paralisou um grupo de pessoas e as levou ao chão. Foram cerca de 3 horas em que tudo durou. Caminhões do exército chegaram ao local para também cercar a área e impedir que os curiosos, que filmavam e transmitiam nas reses sociais, se aproximassem. Eu fiquei ali, parado, em frente ao Mc Donalds, na 14. Pude ver as vítimas dos ataques no chão, com machucados nos braços e no pescoço. Eram umas 20 pessoas entre homens, mulheres, crianças e idosos.

IV

Com a mesma rapidez que pousou, surgindo entre as nuvens que restavam da chuva, o objeto começou a girar e a se revestir gradativamente de uma luz branca intensa. Subiu aos céus e desapareceu em alta velocidade. Equipes médicas em ambulâncias chegavam para socorrer as dezenas de feridos pelo misterioso objeto. A cidade estava em histeria coletiva, com o fato viralizado na internet.

V

Era noite de sábado, pré-Círio de Nazaré. A multidão que vai todos os anos à trasladação, há mais de um século, não saiu.

Algumas pessoas que estavam na orla da cidade, Portal da Amazônia, Estação das Docas e até na orla da Icoaraci informaram que viram pelos céus um conjunto de luzes coloridas que se movia para todos os lados, em grande velocidade, e que desaparecia para depois voltar a surgir.

Relatos também foram gravados em bairros como Sacramenta, Pedreira e Pratinha de pequenos globos brancos de luz percorrendo calmamente as regiões, invadindo casas e disparando feixes de luz contra pessoas.

Todos os jornais no Brasil e no mundo falavam com destaque sobre o assunto, mais comentado no Twitter e Facebook. Suicídios foram registrados e transmitidos. Pessoas se jogavam na frente de carros, ônibus, atiravam-se de prédios. Muitos saíam de Belém de carro ou lotando o aeroporto e a rodoviária.

Não eram poucos os que diziam se tratar de Nossa Senhora de Nazaré. Outros que eram seres do espaço. Nunca se soube ao certo o que ocorreu naquele dia.

VI

O Círio ocorreu no domingo, apesar do número visivelmente menor de participantes e do clima de medo.

Dias depois, o estado de calamidade decretado pela prefeitura foi suspenso e, aos poucos, a cidade foi voltando ao normal.

VII

Os fatos ocorridos naquele dia foram sendo esquecidos e todos foram voltando a sair às ruas, e a frequentar regiões como a da Basílica de Nazaré, onde tudo começou.

Um sentimento de espera fez alicerce nos dias, semanas, meses e anos inteiros dos que viveram o evento.

No dia a dia, o assunto era ignorado, como se nada tivesse acontecido, apesar da sobrevivência silenciosa de algum tipo de medo. E de uma melancólica incompreensão sobre o que passou e, inexplicavelmente, permaneceu.

Guitar Hero – Texto sensacional de Régis Sanches

Régis, o “Beck” ou “Anjo Galahell”, um dos melhores guitarristas que vi tocar – Fotos: Elton Tavares

Por Por Régis Sanches

Hoje me preparei para escrever sobre a vida errante dos guitarristas. Pensei nos menestréis, com seus alaúdes, levando alguma alegria para o festim dos lúgubres burgos ao redor dos castelos medievais. E não poderia deixar de reverenciar a memória de Django Reinhardt, o cigano belga que criou o naipe de duas guitarras, tendo seu irmão Joseph empunhando a base e ele próprio no solo. Reinhardt vestia-se a caráter. Em plena segunda guerra mundial, enquanto os foguetes alemães V-1 e V-2 explodiam nos céus de Paris, sua banda animava os sobreviventes do conflito no Clube de France.

Certa noite, a cidade-luz às escuras, Django retornou para casa, exaurido, após mais um show. Ele deitou-se em sua cama, os fumos do sono o absorveram por completo. Sua mulher havia esquecido uma vela acesa, a tênue chama tremulou e alcançou os lençóis. O guitarrista cigano sobreviveu, mas teve sua mão direita lesionada pelo fogo. Nas raras imagens desse precursor das modernas bandas de rock, podemos vê-lo com as cicatrizes do incêndio. Ele nunca desistiu de retirar das seis cordas o lamento necessário para cicatrizar as feridas da vida.

No início desta manhã, eu estava eletrizado pelo som metálico da minha guitarra. Lembrei de uma frase de Eric Clapton, chamado de Deus em pichações nas paredes do metrô de Londres, no final da década de 1960. “Ninguém consegue tocar blues honestamente de barriga cheia”. Mister Clapton é a alma dos guitarristas, uma espécie de Fênix que sobreviveu a todas as tragédias. Como mestre de George Harrison, roubou a mulher do melhor amigo. Transtornado, mergulhou e emergiu do mundo negro das drogas. Certa ocasião, seu filho caiu da janela do apartamento. Seu coração ficou dilacerado. Mas a resposta veio na forma da sublime “Tears in Heaven”.

O melhor de Eric Clapton pode ser sorvido, ouvindo-o executar a belíssima “White room”, de Robert Johnson. A poesia que descreve a solidão – “um lugar onde o sol nunca brilha/onde as sombras fogem de si mesmas” – só encontra dueto à altura no lirismo poético dos riffs arrancados pela slowhand do velho bluesman.

Poderia citar uma legião de guitarristas: Chuck Berry, B. B. King, Jimi Hendrix, Jimmy Page, Jeff Beck… Seria em vão. Os verdadeiros guitarristas, nós podemos contá-los nos dedos de apenas uma das mãos. Os homens de verdade sabem que há duas coisas no mundo que não se vende, nem se empresta: a mulher e o carro. Incluo no rol a minha guitarra. Pois aqueles que tiveram a sorte de nascer com a alma de guitarrista hão de concordar. Na essência de todo guitarrista, além da sensibilidade, da disciplina e de uma dose exagerada de humildade, existe uma tragédia iminente rondando o destino desses modernos menestréis. Vida longa a Eric Clapton!

Meu comentário: Régis Sanches é o jornalista com um dos melhores textos que conheci na vida e um dos maiores guitarristas que vi tocar (Elton).