O SALto mortal do peixE engAsgaDOR – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Todos riam sem acreditar na história que eu contava. Aí, eu tirava logo da carteira um amarelo recorte de jornal e mostrava a eles que não era mentiroso. Ainda comentava que o jornal concorrente publicara àquele dia o fato, a foto e a desgraça de um cara muito azarado que morrera de má sorte entalado por um peixe.

O pescador infortunado Natan Coelho de Tal saiu com mais dois amigos numa pequena canoa no Furo do Maguari para pescar douradas e garantir o alimento da prole faminta e doente. Aproveitaram a lua cheia para tomar umas pingas enquanto os peixes brincavam com caruanas loirinhos ali no fundo do rio.

Natan Coelho de Tal, o primeiro a se embriagar, deitou-se na canoa ressonando seu cansaço de trabalhador e pai, bocejando a toda hora com a face para o luar, sem esperar a desdita que o rio ali lhe ofertava.

Foi então, bem de repente, que um peixe prateado pulou de dentro d’água e se alojou na garganta do pescador desgraçado. Ele acordou-se sofrendo, mas nenhum dos seus amigos entendeu o que se passava.

Só depois de muito tempo quando o sangue do infeliz fugia pelos buracos é que foram compreender o que havia acontecido. Então levaram Natan para um hospital da cidade, em vão, porque no caminho o pescador já era morto. Mortinho como o tal peixe que numa noite enluarada morreu por falta de ar.

*Do livro “Equino CIO – Textuário do meio do Mundo”. Ed. Paka-Tatu, Belém, 2004.

OS ZUMBIS E O MENTECAPTO – Por Fernando Canto

PREÂMBULO

Escrevi o texto abaixo na véspera da eleição do segundo turno para presidente da República (28 de outubro de 2018) e por isso mesmo fui muito criticado pelos bolsonaristas de então que festejaram a vitória do seu candidato por dias e noites, até a posse e depois dela.

Por eu ser um democrata que sempre se manifestou contra qualquer governo tirano, seja ele de qualquer viés ideológico, vi que fiz uma análise sobre o quadro eleitoral que se interpunha entre o caminho democrático do país e as possíveis ações políticas de extrema direita propostas pelo então candidato que ela representava. Com sua vitória foram inevitáveis as críticas expressas nos sorrisos irônicos dos meus colegas de trabalho, de bar e até de familiares.

O quadro eleitoral de então não me fez vidente, mas me fez vislumbrar sociologicamente o que seria o país na mão de um homem despreparado como o eleito, que chamavam até de “mito”.

Hoje, após seus pronunciamentos infelizes nos meios de comunicação, vejo que eu estava certo ao escrever o texto abaixo, sendo que sua fala, ontem, em rede nacional, me fez considerá-lo mais que um mentecapto e ter a certeza que sua imbecilidade diante da grave condição epidêmica do corona vírus que grassa no país, é o top da irresponsabilidade política contra os cidadãos brasileiros. Sobre os seus seguidores zumbis arrependidos, que engulam o seco de seus interesses políticos e econômicos.

Para terminar este prólogo, informo que por todos estes meses aceitei o novo presidente, mesmo sabendo que ele não é o ideal para o Brasil, pois sempre fui a favor da alternância dos poderes, desde que eles não se tornem formas espúrias de governar nosso país, como me parece agora, se transformando de forma negativa nas mãos de um maluco e seus apaniguados políticos. Isso nunca mais, ainda que o vírus da ignorância continue grassando nos pulmões dos brasileiros pela contramão da História (F.C.).

Darth Sidious – Filme Star Wars

OS ZUMBIS E O MENTECAPTO

Por Fernando Canto

A palavra opinião tem a ver com conceito, ideia, doutrina, crença, capricho, juízo, reputação, parecer e até modo de pensar. Filosoficamente é uma atribuição de verdade ou falsidade, mas não é certeza. É uma asserção não-objetiva nem subjetiva. Entretanto, também é um ponto de vista que pode se tornar ideologia a partir de sua frequente manifestação entre grupos que se ligam sem a presença física e que se sustentam mais pela propaganda que lhes é incutida do que pela certeza ou pela objetividade dos seus valores implícitos.

Filme Guerra Mundial Z

Na minha opinião, grupos de opinião que estão à direita da História, que cultuam valores odientos do passado, estão fadados a cair como as pedras de dominó enfileiradas após a queda da primeira ou como as balizas de madeiras em feitio de garrafas, do jogo de boliche ao primeiro toque sutil da bola. E é exatamente nesses grupos que me detenho para falar das eleições que amanhã vão mover o país, já crucificado por um governo espúrio, que se move sub-repticiamente em suas últimas ações de conchavos políticos no palácio do Planalto e entre os que saem e os que entram no Congresso Nacional. É a espera de um novo palimpsesto histórico que se repetirá mais uma vez como farsa, se por acaso venha a ganhar o pleito.

Filme Guerra Mundial Z

Porém, a ordem hoje é superar dialeticamente o que pode vir de ruim daqui para a frente, pois Lord Vader e os outros prepostos do Imperador estão na linha de frente, no front de uma saga indubitavelmente cruel para o nosso país, onde os influenciáveis soldados vão a loucura com as “propostas” emanadas por um pretenso líder de um exército de zumbis. E de um mentecapto tudo pode se esperar, principalmente se no seu grupo disseminador de ideias estão presentes outros paranoicos que em tudo veem a possibilidade de destruir para tentar construir novamente a seu modo.

Darth Vader – Filme Star Wars

Entretanto e por outro lado, o contágio pode ser do vírus da esperança, do vislumbre de novos avanços e de uma democracia onde as aporias fiquem apenas no campo filosófico e do diálogo e não no estouro de um disparo que poderá ferir o sonho conquistado e transformá-lo em pesadelo permanente.

Filme Star Wars

A tensão visceral provocada pelas falsas notícias não poderá abalar as mentes lúcidas, a não ser que penetrem a fundo naquelas predispostas a terem vertigens provocadas pelo impacto esterilizador da vontade. E isso o mentecapto e seu grupo de lobos faz bem, diga-se assim.

Filme Star Wars

Mas não será por isso que serei impedido de sempre sonhar com a evolução da nossa democracia à brasileira, impermeável que estou às agruras políticas, e reflexivo diante do “espelho da fraternidade cósmica, que é a sociedade humana”, ou de um poema, no dizer de Octávio Paz.

Photo Illustration by Elizabeth Brockway/The Daily Beast

Dos discursos de resistência dos difíceis tempos em que fui guardião, com meu canto solitário e quase anônimo, hoje também estou diante do nascimento de um poder ameaçador com suas engrenagens reificadoras que deterioram a natureza humana e as potencialidades dos homens. Entretanto, tenho a ESPERANÇA de milhões de homens e mulheres e crianças que acreditam que ela seja fundante, construtiva e alicerçante, e que é capaz de ser partilhada com os eleitores sensatos, meus semelhantes brasileiros, amanhã, ainda que o barulho das armas de fogo ensurdeça os zumbis do mentecapto.

Filme Star Wars

Pela liberdade, que a Força esteja conosco!

DE QUE MORREU LÁZARO? – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Olhou os dois camelos no chão, lado a lado, babando e estrebuchando, como se picados por cobra. Mas ali, não havia cobras. Adiante, os demais que ele separara de manhãzinha estavam moribundos. Puxou a barba até sentir dor. Era assim que fazia quando muito preocupado. Com esses, já eram seis animais que adoeciam e morriam sem que ele pudesse fazer alguma coisa. Um deles era de Madalena. Nem havia contado para ela. Há dias não via a irmã. Estava apaixonada pelo novo profeta. Andava por toda a Galileia seguindo Nazareno.

Abaixou-se próximo aos animais e fez-lhes beber a infusão que preparara. Ficou apertando os focinhos até que engolissem. Estava sozinho. Todos tinham ido ouvir Nazareno, inclusive sua mãe que fazia oferendas de animais vivos ao Bezerro de Ouro do Templo. Partira com suas irmãs para ouvi-lo pregar.

Afastou-se dos animais, entrou na cabana e deitou-se. Pensou na possibilidade de Nazareno saber um remédio para curar a doença dos camelos e, assim, fazê-los sarar. De uma feita, encontrara o junto com seus seguidores em uma festa de casamento. Pareceu-lhe um homem despojado, apesar da grande fama de profeta. Madalena, em determinado momento, o pegou pela mão e levou-o até onde estavam sentados.

“- Este é Jesus.”- disse. Abraçou-os, como costume da região, mas não ficou entre eles. Soube que a certa altura da festa faltara vinho e ele enchera os tonéis com água e a transformara em vinho. E dos bons, pensou, lembrando se de como saíra da festa. Fora levado, como um menino, pelas mãos de Marta. O engraçado era que toda a vez que se lembrava de Nazareno, era invadido por uma sensação estranha, como se ele estivesse próximo. Podia sentir um cheiro de alfazema, contrastando com o cheiro de camelo que sentia em si mesmo. Passou a mão na cabeça. Suava muito. Estava calor, mas sentia muito frio. Puxou a pele de cabra aos pés por cima do corpo e enrodilhou-se todo. Quando amanheceu de novo, um cheiro fétido veio lá de fora. Com certeza os animais haviam morrido. Tinha que se levantar e enterrá-los. Logo seus corpos atrairiam os abutres. Sentiu que não tinha forças. Olhou para os pés inchados, sentiu a boca seca, e o corpo cheio de nódulos. Estava doente assim como os camelos. Esforçou-se para chamar alguém. Porém estava só. Pensou gritar por Madalena. E gritou em pensamento bem alto!

Dias depois, apreensivas, elas de longe avistaram o redemoinho dos abutres sobre os animais. Os dois camelos sobreviventes deitados moribundos sedentos. E dentro da cabana estava Lazaro. Semi coberto. Hirto. Morto. Devia estar assim há mais de três dias. As feridas já estavam cheias de vermes. As mulheres se desesperaram. Quem as iria sustentar? Mantinham-se pelo trabalho dele no trato com os animais. Trabalho de homens.

Madalena tomou de volta a trilha. Tinha que encontrar o Nazareno e convencê-lo a ver Lazaro. Já o assistira erguer os aleijados, aprumar os tortos, dar luz aos cegos, fazer ouvir os surdos. As outras mulheres ficaram umedecendo Lazaro com óleos numa tentativa inútil de amenizar o ressecamento que lhe apergaminhava. Ela o encontrou na casa de um dos Escribas que lhe dera pernoite, sem cansar de ouvir admirado as palavras que saiam de sua boca. Os guardas levaram Madalena até o interior da casa. Madalena contou o que se passara com os animais e com Lazaro.

“- Descanse um pouco.” – disse-lhe. “- Logo vamos.” Deram-lhe água fresca e alimentos. Partiram antes da quinta hora. O Escriba fez questão de ir. Seguiu com um séquito de mais de trinta empregados. Andaram rápido, porque Nazareno, acostumado a caminhar longos trechos, andava a passos largos. Ao se aproximarem, podiam sentir o cheiro forte dos animais. As mulheres tinham jogado terra sobre eles sem, contudo, enterrá-los. O escriba derramou óleo perfumado sobre as vestes antes de descer na porta da cabana. As mulheres se afastaram e Nazareno sentou-se ao lado de Lazaro que estava escurecido, todo molhado de óleo, encolhido em torno de si. O escriba e todos os outros com panos na mão cobriam o nariz. Ele olhou Lazaro coberto da cabeça aos pés, colocou seu rosto sob a pele de cabra que o cobria e o chamou soprando em seu ouvido, como se lhe contasse um segredo. Um vento trouxe uma poeira fina do terreno ao redor que encheu o cômodo. O cheiro fétido sumiu e surgiu um cheiro de alfazema, estranhamente, vindo do quintal junto com a fina poeira que invadiu o lugar onde estavam. Lazaro continuou a gritar por Madalena. Era como se estivesse com a boca cheia de tâmaras e vinagre em um tempo só. O pior é que tudo estava longe e perto ao mesmo tempo e o olhar parecia olhar e não entender o que olhava. Tudo parecia galopar rapidamente em seu pensamento de frente para trás. Foi ficando mais forte o cheiro de alfazema e quando abriu os olhos, sentiu a presença dele ao seu lado.

Antes de olhar seu rosto, sabia que ele ali estava presente. Abriu os olhos. Ele realmente estava sentado ao seu lado com a cabeça encostada ao seu ouvido. Não o ouvia falar nada. Era como se o chamasse, sem dizer, uma palavra. Logo pensou. Estava surdo! Olhou espantado a multidão. E o que fazia ali toda aquela gente? Até um escriba em sua casa? Olhou para Nazareno, parecia que repetia seu nome, mas não percebia mexer os seus lábios. Os outros movimentavam a boca pareciam dar graças aos céus, aos gritos. Mas ele não escutava suas vozes, só enxergava suas bocas em movimento, seus pescoços túrgidos e suas mãos erguidas. Madalena veio em sua direção. “- Minha irmã!” – falou, mas nenhum som saiu. Estava mudo!

Nazareno levantou se do seu lado e foi em direção a porta. Os outros se ajoelharam. O escriba tomou sua mão e a beijou. Sua mãe e suas irmãs e os outros saíram com ele. Pareciam tão felizes… Sozinho, Lazaro tentou se erguer, mas estava muito cansado parecia ter caminhado muitos dias sem beber e sem comer. Pensou nos animais lá fora. Se Nazareno houvesse chegado antes teria ensinado uma poção para curá-los.

As pessoas foram se afastando no caminho de volta a Vila de Karfun. Porque tinham vindo ter com ele até sua casa? Pensou consigo sem entender nada. Enquanto levantava cambaleante em direção ao poço de água, ouviu o barulho dos camelos agora curados.

*Conto do livro Antena de Arame – Editora Rumo Editorial – 2ª Edição (2018) – São Paulo – Brasil.

Mais um dia: Ronaldo Rodrigues se sentindo um pouco Charles Bukowski

Mais um dia. Acordo com uma puta vontade de mandar tudo à merda. Vontade de abrir a janela e mandar todo mundo se foder. Mas é muito esforço para minha combalida figura. E a humanidade, decididamente, não vale a pena. A humanidade vai continuar aí, venerando dinheiro, trabalhando duro para meia dúzia de filhos da puta. A humanidade vai continuar fedendo pelo longo dos anos. Até acabar a merda da areia da ampulheta. Foi assim por todos esses malditos anos. Será assim pelo terceiro milênio afora. Duvido que haja um quarto milênio para a humanidade purgar.

Mais uma cerveja na companhia desses idiotas que infestam a festa nefasta deste bar. Um bar cheirando a mijo. Mas é preciso ser social (leia-se hipócrita) de vez em quando. Tanto faz morrer de tédio em casa ou na mesa do bar. Posso até fingir que assisto a uma decadente sessão de cinema.

Poesia para todos! Pérolas aos porcos! Os especialistas de coisa nenhuma estão pontificando. É impressionante. Eles conseguem me provar que não basta saber coisas interessantes para se tornar alguém interessante. Todos têm algo a dizer, muito a dizer. Só que suas palavras rebuscadas e, geralmente, equivocadas não têm nada a dizer. Antes que tudo isso me enlouqueça, aperto o gatilho na minha testa e descubro que o outro lado da vida é do mesmo jeito que este. Então era isso? A condenação já tinha começado? Droga!

*Bebedeiras fazem parte da vida de um escritor. Tá, tudo bem! Nem de todo escritor. Eu, que me sinto escritor (às vezes) e beberrão (sempre), curto a embriaguez de ser um escritor beberrão. Muitos sabem que gosto de me sentir Charles Bukowski. Quer dizer: poucos sabem e quase ninguém se importa, mas sempre que leio Bukowski recebo a entidade Bukowski e as únicas coisas que me interessam nesses momentos são uma garrafa de cerveja ou vinho barato, um cigarro mais barato ainda e uma puta bem puta mesmo.

Ronaldo Rodrigues

A mulher da chuva e do sol do Equador (Fernando Canto)

Por Fernando Canto

Chove em Macapá neste amanhecer de pétalas caídas nos jardins. Ondas verticais fustigam a pobreza das ruas, alagam o oco das pedras e atiçam o furor do céu, onde deuses cavalgam atônitos em busca das últimas estrelas que o firmamento esconde nesta época de nimbos. Uma dádiva esta chuva. É uma faca que golpeia o rastro dos caracóis e que retarda o voo das aves migratórias. Uma chuva é uma caba colossal dona de seu próprio voo que procura sobre a terra o segredo do veneno perdido na face espelhada das lamas matinais Uma chuva é um dom de Deus na relativa necessidade de quem a almeja. E assim eu te quero, chuva. Hoje mais do que nunca, porque és elemento da minha paisagem cotidiana, cenário da transformação do meu amor e indubitável perfume que cai suavemente sobre nós, sobre mim e ela, a mulher da minha vida.

Mulher que chove aos cântaros quando envidraça a escuridão dos teus sentidos, mulher que arde – absolutamente chama – sem o consumir do fogo. E chama a oceânica vontade do teu ser plural no sexo espumoso que especula degredos, inda que guardando segredos indizíveis na semente do tucumã, fruta ancestral. Mítica mulher que habita a cavidade dos sonhos enredados e abre as portas para o resoluto amor. Inexorável és como as calvas cúpulas da serra do Tumucumaque, a cobra adormecida, a morada dos alados seres que nunca estilhaçaram o gelo inexistente no teu dorso. Reserva-te ao direito de seres como Mitaraka, ó mulher, a montanha em forma de gente, observada pelos invasores de tua curta solidão, que chegam com o vento em alucinantes tropéis. Ora podes ser um arquipélago. Uma teia abissal de ilhas perdidas no oceano, ilhas que bailam e que dançam sob a música dramática dos dias da civilização. Ora podes ser também a mãe orgulhosa do fulgor das vozes e o relâmpago capaz dessa esperança. Talvez até no sol que invade a tua garganta com sua luz vertiginosa das manhãs cênicas do Bailique tu podes transformar-te, ó mulher.

Eu amo o teu estuário de loucura e a generosidade das águas que em ti moram e louvo o bailado das ondas fulgurantes e o esplendor das estações que existem em ti. Amo, sim, pois és a chibata que açoita os pesadelos, o sustentáculo que abriga bons augúrios, a flor, o jardim e a raiz das plantas crescidas no sabor da aurora, esta que invade nossa casa sem precisar pedir licença. Eu amo o teu cabelo e o magnetismo depositado na escova, assim como as páginas viradas de um livro que relemos rindo. E ali no canto do banheiro talvez uma sandália virada espe
re teus pés para que calces novos planos e andes na direção do oriente. Nossos livros e telas, nossos vinhos e cds flutuam sobre uma lona azul-turquesa. Estão lá, junto aos amigos, os cerzidores do que rasgamos no passado, inquilinos que são da nossa vida para sempre.

Agora me despeço. Eu vivo a luz e a sombra da mulher que esbraveja o verbo e absorve a vida. Eu observo a mão que trata a argila do manancial diário das notícias da família, eu voo vaga-lume perto deste refletor iluminante, lâmina certeira, mulher dadivosa de chuva, enfeitada de estrelas e de andaimes, amante inconclusa da minha vontade.

Agora sim, eu me despeço inundado em poesia, sobre a mesa posta que abriga somente o pão quentinho e o aroma do café que tomamos juntos quando o dia chega. Eu me despeço naufragado na ternura dos teus olhos cuidadosos, enquanto a chuva, lá fora, lava almas e plantas e espera o sol brilhar para todas as mulheres que trabalham, sofrem e amam nesta terra salpicada de luz do equador.

*Do livro “Adoradores do Sol”. Scortecci, S. Paulo, 2010.

Verônica, a submersa (conto porreta de Ronaldo Rodrigues)

Quando Verônica chegou em casa eu era uma criança a mais numa família de noventa e oito irmãos. Naquela cidade eram comuns famílias numerosas, que envelheciam muito cedo.

Verônica, quieta, tranquila, limitava-se a permanecer no fundo do tanque que lhe fora destinado. Comia pouco, apenas algumas algas que brotavam nas paredes do tanque. Parecia resignada, mas havia algo de resoluto em seus movimentos. Uma silenciosa determinação. Uma calma revolucionária, que tanto afligia quanto encantava. Sua diáfana presença a tornava forte, intacta.

Verônica gostava da minha companhia. Nos entendemos bem desde o primeiro olhar. E sem trocar palavras. A cumplicidade de nosso silêncio nos bastava. E nos fortalecia.

O silêncio selou um pacto entre nós. Eu arquitetei um plano para tirá-la daquela casa onde aprisionavam lindas mulheres em tanques frios e não davam a mínima atenção. Deixavam lá, no fundo do quintal, como prova de algo que eu não conseguia compreender.

Verônica era altiva e simulava distância de sua condição de prisioneira. Quando eu entrava para dormir, ficava imaginando Verônica entre as pedras do tanque. Linda. Enigmática. Verônica.

Finalmente, chegou o dia de realizar o plano. Acordei bem cedo, antes de todos. A casa era enorme e foi trabalhoso atravessá-la no escuro, desviando de tantas redes.

Eu estava fugindo de casa levando Verônica num aquário gigantesco, roubado no dia anterior. O aquário, preso a uma plataforma com rodinhas, era frágil, mas daria para chegar até o rio.

Rapidamente, Verônica foi remanejada do tanque para o aquário. Tudo aconteceu conforme o plano e chegamos ao rio antes que dia clareasse. Eu estava esgotado pelo esforço de empurrar aquele aquário imenso pelas trilhas tortuosas da floresta. Verônica me animava com seu olhar completo, inquebrantável.

E foi com o olhar que Verônica me fez compreender que nossa história de amor era impossível. Eu não poderia acompanhá-la, por não poder viver dentro d’água. Ela não poderia ficar comigo, por não poder viver fora d’água. Era uma barreira definitiva. Eu precisava compreender.

E compreendi. Verônica foi lançada ao rio e mergulhou bem fundo até desaparecer. Antes, acenou com os olhos, que transbordavam lágrimas iguais às minhas. A lembrança de seus olhos ficou comigo pelo caminho de volta para casa e por toda a minha vida.

Outras mulheres foram morar no velho tanque, ao longo dos anos. Belas e silenciosas como Verônica, que também precisavam de liberdade. Mas eu já estava velho demais para pensar em libertá-las. Como disse no começo desta história, envelhecia-se muito cedo naquela cidade.

Ronaldo Rodrigues

Dois textinhos para eu não perder o emprego neste site (crôniquetas de Ronaldo Rodrigues)

 

Crôniquetas de Ronaldo Rodrigues

Sabe aqueles macacos que são usados como cobaias de experiências científicas? Zé Chimpanzé era um desses, um dos mais procurados por cientistas malucos de todos os quadrantes. Ele era um superstar da categoria. Seu cachê era o mais alto. Zé Chimpanzé ganhou tanta notoriedade que sua agenda vivia lotada. Zé Chimpanzé era uma celebridade, sua fama atravessava fronteiras, sua fuça era vista com muita frequência na National Geografic.

Mas um dia, cansado de tanta bajulação a que os grandes astros são expostos, entediado com os holofotes e já sem paciência com os paparazzi, Zé Chimpanzé isolou-se em seu castelo à beira-mar e nunca mais quis saber de ser cobaia de cientista maluco. Imitando Greta Garbo, Zé Chimpanzé repetiu a célebre frase da diva – “ I want to be alone!” – e entrou numa reclusão que dura até hoje.

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Sempre que Mona Lisa sorria enigmática, Leonardo errava a pincelada. A cada retoque, a Mona Lisa, a pintura, se parecia menos com a Mona Lisa, a mulher. Após dar por terminada a tela, uma das mais famosas do mundo, Leonardo teve que fazer uma cirurgia plástica na modelo, usando sua perícia como grande estudioso da anatomia humana, para que ela ficasse parecida com a figura retratada na pintura.

Foi tanta a euforia de Leonardo com a experiência que ele passou a se dedicar a retratos femininos, como o que fez de Marilyn Monroe, deixando para que Andy Warhol, já no extinto século 20 assinasse. Coisas de gênio.

Junior: O Maestro – Por Marcelo Guido

 


Por Marcelo Guido

Ele aprendeu a jogar bola na praia, conquistou os gramados do Brasil e foi mostrar na Europa a classe do nosso futebol.

Com talento transcendental, quase impossível para um ser vivo, a bola era sua companheira dentro de campo. Defendeu as cores do Torino e Pescara na Itália, mas escreveu com sangue, suor e talento uma brilhante história no Flamengo. Falo nada mais nada menos de Leovegildo Lins da Gama Junior, o Maestro.

Junior era a magnitude soberba do futebol – talento em estado bruto. Em um time de feras, conseguia se destacar pela seriedade com que entrava em campo; para ele não existia bola perdida.

Ambidestro, começou na lateral esquerda, onde abria caminho nas encostas verdes do gramado para servir atacantes. Sua visão cirúrgica do jogo o fez logo evoluir para meio campo, onde – como um verdadeiro Cristo – fazia-se onipresente em toda área de talento dentro das quatro linhas. Dos seus abençoados pés saíam jogadas que os Deuses do futebol em seus melhores dias haviam planejado.

Fez o mundo se render ao Flamengo, trazendo junto de Zico o campeonato mundial para Gávea. Participou de uma das melhores seleções de todos os tempos 1982, um time que realmente jogava por música, “Voa Canarinho” de sua autoria, embalava aquele selecionado recheado de craques do mais puro quilate, o caneco não veio, mas o reconhecimento ficou, Junior honrou como poucos a camisa amarela.

Na Itália, contratado a peso de ouro pelo Torino, conduziu o time grená ao vice-campeonato logo no ano de estreia; atuando mais avançado, marcou sete gols e foi eleito o melhor jogador do “cálcio”, deixando para trás gente da estirpe de Maradona, Platini, Zico e Falcão. Ídolo máximo da torcida em Turim, sofreu com racismo em um derby contra a Juventus, conotações racistas sobre a cor de sua pele e seu vistoso “Black Power” vindos da torcida juventina fizeram com que os grenás gritassem em coro, mas antes “negro que juventino”.

Primeiro estrangeiro a defender o pavilhão do Pescara – de quebra, carregou a faixa de capitão – foi o segundo melhor jogador estrangeiro do campeonato.

Em 1989, volta para sua casa. Um pedido do filho que nunca o tinha visto atuar com o manto rubro negro, fez Junior voltar para os braços da nação. De 1989 a 1993 foram dois títulos nacionais e um estadual pelo Mengão.

Um caso de amor do gênio com clube – recíproco, com certeza absoluta. A magnética sabia que em campo não existiria ninguém melhor para trajar vermelho e preto. Foram 847 vezes que o Maestro utilizou o manto para dar espetáculo, o atleta que mais vestiu a camisa rubro negra em partidas oficiais.

Em 1992, o destaque. Junior era a lembrança dos tempos áureos do Flamengo em campo. Redesenhou o paradigma de que o jogador com mais de 35 anos já deveria se aposentar. Ganhou alcunha de “Vovô Garoto” e capitaneou um time de novos talentos ao título nacional. E no melhor palco possível: o Maracanã, contra um grande rival carioca. Naqueles dois jogos, Junior transpirou talento, gols nas duas batalhas. E na segunda partida, um gol de falta que, de tão perfeito, deveria estar exposto na principal parede do Louvre em Paris. Aquilo sim, foi uma obra de arte.

Tal perfeição em suas atuações o fizeram ser eleito o melhor jogador brasileiro do ano – isso aos 38 anos de idade. Realmente, Junior era como vinho: quanto mais velho, melhor.

Sem dúvida alguma, um dos seres rubro-negros mais importantes de todos os tempos; um craque de primeira linha que foi, laureou apenas uma camisa no Brasil, respeitou sua gente e criou a mística em cima do vermelho e preto.

O “Capacete” parecia ser predestinado a conquistas; seu rico repertório de inesquecíveis jogadas jamais o deixaria como coadjuvante, aonde quer que jogasse, mas seu coração o fez ser o Flamengo.

A história de Junior, o Maestro e do Flamengo se unem em uma só. Consagrada por títulos, futebol arte e alegria.

*Marcelo Guido é jornalista, amante do futebol, pai da Lanna Guido e do Bento Guido e maridão da Bia.

O Pastelão – Por Marcelo Guido

Foto: Elton Tavares

Por Marcelo Guido

Se estiver andando na rua, ou em um pátio de escola ele vai estar lá, acomodado em estufas, nem sempre ligadas, esperando por você.

Formato triangular, com dobras de massa e possivelmente um presente escondido no meio, onde até saborear com dentadas vorazes pela massa com sabor de sonho, encontrarás um naco de queijo, apresuntado e, acreditem, já fui agraciado até com uma linda e formosa rodela de calabresa.

Foto: Elton Tavares

É amigos, falo do pastelão. Como não se apaixonar por tal iguaria, um ícone que não sai de moda, talvez por que nunca tenha entrado. Inesquecível como “Pirocóptero” e as formosas damas desnudas que estampavam os velhos calendários de bolso, que nos eram dados como brinde, geralmente no fim de ano.

Umas das primeiras regras que aprendemos na escola – não nas aulas – no recreio é: coxinha é bom, é gostosa e cheira bem. Mas o Pastelão é tudo isso e enche.

Por isso se destaca sobre aquela formosa bolinha de massa suculenta com recheio de frango, que alguns infelizes insistem em dar a primeira mordida no bico, quando sabem que o correto é sempre na bundinha. Coxinha com recheio de outra coisa é Rissole.

Pastelão com coca KS, coisa rara em minha cidade (infelizmente) é a combinação perfeita. Quem nunca se viu sentado em uma cadeira de ferro, apoiado em uma mesa bamba, com os cotovelos mordendo o pastelão e sugando através de canudos coloridos o saboroso liquido preto do capitalismo.

Existem seus primos, feitos da mesma linhagem de massa, com recheios aparentes e outro formatos esses são os enrolados, mas eles não têm o charme do nosso herói. Herói sim, pois sacia fome, te deixa satisfeito e te recoloca na caminhada da vida.

Foto: Alê Moutinho

O segredo de como fazer deve ser aqueles bem incautos, fico imaginando uma ordem emblemática que se reúne todas as quintas-feiras em templos onde poucos cidadãos escolhidos a dedo podem compartilhar tal informação, devem ser os Grãos Mestres Pasteleiros, da ordem cristã “SALVE PASTELÃO”.

Falo isso por que quem sabe fazer não passa a receita e quero que fique assim, não quero ninguém metido a besta inventando algo como “Pastelão Gourmet”, isso seria um verdadeiro desastre.

Em minhas andanças, certa vez o encontrei em outra cidade e lá o batizaram como folheado. Triste para algo tão bem nomeado, paulista não sabe nem comer pizza, vai lá saber nomear salgado. Perdoe, eles não sabem o que falam.

Pastelão é isso, quanto mais gorduroso melhor. Mata a fome, tem gosto de infância, te faz refletir sobre situações diárias. Com coca cola, combinação perfeita, um free depois para arrematar.

Foto: Marcelo Guido

Faça a experiência, chegue cedo, mas cedo mesmo às sete da manhã, vá na padaria do bairro – não naquela coisa sem graça do supermercado – peça um da primeira linhagem do dia, primeira edição. Quentinho, acompanhe com uma bela coca gelada, se não tiver KS peça em lata. Irás sentir, sem sombra de dúvidas, a melhor sensação do dia. Como o beijo da pessoa amada.

Felicidade, teu nome é Pastelão.

*Marcelo Guido é jornalista, pai da Lanna Guido e do Bento Guido e maridão da Bia, além de fã de pastelão.

Giovanni: “ O Messias da Vila” – Por Marcelo Guido

Foto: site do Geovanni

Por Marcelo Guido

Quando os deuses da bola revolvem conceder talento eles geralmente não brincam sem serviço. Talvez estivessem cansados de ver o comum tomando conta do meio campo, ou queriam apenas ver alguém brincar com bola nos campos, como se estivesse no sonho e assim, magistralmente concederam o dom para Giovanni Silva de Oliveira, um dentre muitos Silvas no futebol.

Foto: site do Geovanni

Revelado pela gloriosa Tuna Luso, passou por Remo, Paysandu, São Carlense, Barcelona – ESP, Olympiacos – GRE , dentre outros, mas eternizou-se em três passagens pelo Santos.

Na Vila Belmiro fez sua morada, inteligente conquistou a torcida com passes precisos e gols, muitos gols.

Foto: site do Geovanni

A facilidade com que deixava os companheiros na cara do gol era algo extraordinário, que deixava boquiaberto os felizardos que o viram vestir o branco da baixada santista.

Elegante, conseguia abrir o peito e matar a bola com uma envergadura ímpar de 1,90 metros. Levou o despretensioso time do Santos de 1995 a final do campeonato nacional ao lado de Robert, Jamely e Marcelo Passos. O título acabou faltando, coisas do futebol.

Foto: site do Geovanni

Inesquecível na semi- final daquele ano contra o Fluminense de Renato e Joel Santana, só não fez chover, aliais fez. Uma chuva de gols, uma atuação de gala que lhe fez render a bola de ouro, e o prêmio de melhor jogador do campeonato.

Partiu para conquistar o velho mundo, foi ídolo da torcida Catalã. No Barcelona fez dupla com Rivaldo, meio campo que fazia tremer os adversários. Em seis anos de clube, seis canecos levantados. Chega na Grécia, e a terra de Zeus conhece um semideus da bola, o penta campeonato nacional atuando cinco anos em solo helenístico.

Foto: site do Geovanni

O meio campo era uma salão de baile, onde os craques disputavam a dama “bola” para lhe ser concedida uma dança, e o Messias estava sempre de terno. A pelota sua amiga corria em seu lugar. Ela tinha que correr.

Foto: site do Geovanni

Os críticos de seu futebol o diziam ser “lento”, mas a inteligência e a sapiência em saber os caminhos do campo o faziam diferenciado. Defendia a tese sagrada que o futebol não podia ser comum, não pode ser feijão com arroz, futebol e ousado tem ser tentado mesmo que se perca o lance.

Chegava na hora certa, decisivo, enganava adversários que não acreditavam que ganharia o lance, era craque que além de dar o espetáculo sabia fazer gol, e foram muitos.

Pelo Santos, 3 passagens, 3 faixas no peito. Os Paulistas de 2006 e 2010 e a Copa do Brasil de 2010 e a idolatria eterna de uma torcida que não via sua 10 vestida tão bem desde Pelé.

Solto, tendo o gol como objetivo, ereto, com a cabeça erguida sabedor dos caminhos aproveitava tal abençoada técnica e tamanho para destituir sem culpa adversários. E vestindo seus pavilhões, como um messias sabia levar seus times a o caminho das vitórias.

Foto: site do Geovanni

Felizes foram aqueles que foram Testemunhas de Giovanni, que jogou em um tempo que bom jogador e futebol brasileiro eram pleonasmos.

*Marcelo Guido é Jornalista. Pai do Bento Guido e da Lanna Guido. Maridão da Bia.

Três contos negros para um cara pálido – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Replantar árvores de noite. Na calada da noite, quando os cães principiam a adormecer imersos em sonhos repletos de ossos enterrados. Cães sonham. Neste mesmo instantes estão os gatos pelos telhados, barulhentos e sedentos de pecado.

A silhueta da lua jaz em uma lata de sardinha abandonada, aberta e atirada ao acaso no quintal, só a metade acimentado. Ele desce de chinelos surrados, arrastando o lado esquerdo do corpo semiparalisado. Enxerga pouco, próximo e só para adiante. Mas sonha também como os cães em replantar árvores e enterrar ossos.

Ninguém desconfia que é ele quem quebra o cimento do quintal pacientemente, noite após noite.

E que é ele que se masturba incompletamente na rua íntima dependurada de Alice.

Para depois lavar a mão no balde cheio de água aparada da bica, onde às vezes a lua também mija.

Ela abre a casa. Escancara a janela e enxota as formigas com uma vassoura tão velha quanto ela. Atira pedras nos sapos e arranca as trepadeiras que se agarram na janela traseira do barraco em que mora com o marido semiparalítico, ex-madeireiro que durante três décadas quase desmatou toda a região Sul do Pará.

Enquanto ela repete esse ritual de abrir escandalosamente portas e janelas, ele deixa-se ficar na cama ao lado de sua perna mecânica, presa entre duas cadeiras e a mesinha com o rádio de pilha, sua companhia mais íntima.

Ela é quem encontra a roupa suja e amarelada com vestígios de sangue.

É ela quem encontra o balde com a água suja e atribui aos gatos.

Uma noite ela se sentindo infeliz e solitária vai até a sua cama.

Ele não estava.

Havia colocado sua perna mecânica e saíra pela porta da cozinha.

Ficou em dúvida se fora ele que saíra ou fora Alice.

Que saindo, como de costume, nua, para estender seu vestido de chita colorida e deixá-lo secar ao sabor da brisa morna da madrugada, a esquecera aberta.

Ela sentou- se a mesa da cozinha, e nem lembrou de procurar Alice.

Ficou riscando com uma faca quase sem fio um desenho bizarro com as sobras de pão, figuras de galos, bois, pássaros, e meninos miúdos de curtas asas.

Sem notar que entravam formigas, percevejos, grilos e cupins.

E começavam a importuná-la.

Nem viu quando ele entrou.

Havia replantado almas de árvores, as mesmas que ele tinha cortado há trinta anos, sujado de sêmen o Vestido de Alice, e amarrado os cães aos gatos em cima do telhado no silêncio das brisas magras.

Entrara pulando. A perna mecânica ficara abandonada no córrego extasiada… olhando Alice que se banhava.

Ele entrou, nu, negro de fuligem em uma perna só.

Pouco tempo depois, Alice – chateada com a briga do casal em uma tarde, quase véspera de Natal – viajou para o Paraná, onde vendeu seus olhos de vidro e com o dinheiro alugou uma casa para cuidar de gatos, sapos e um casal de morcegos que vieram com ela dentro da sacola de transporte de dinheiro do Banco do Brasil.

*Do Livro “Defronte da Boca da Noite ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (SP) – 2020

Evair: O Dom Alviverde – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Dezesseis metros e meio, um círculo cravado a onze metros do gol; um reino que faz com que homens uniformizados lutem com as forças que têm para conquistá-lo; a cada partida uma batalha: defensores e contra-atacantes e poucos deles podem se sagrar campeões, dentre eles está Evair Aparecido Paulino que, com precisão ímpar e chutes certeiros, fez por muitas vezes a alegria de multidões.

Cria do Guarani de Campinas, passou por Atalanta – ITA, Yokohama Flugels – JAP, Atlético Mineiro, Vasco da Gama, Portuguesa, São Paulo, Goiás, Coritiba e Figueirense; mas com duas passagens pelo Palmeiras escreveu seu nome na história do Parque Antártica e no coração palestrino.

Surgiu para o futebol vestindo o verde do Bugre Campineiro, mostrava técnica e desenvoltura com passes milimetricamente pensados para deixar os atacantes na cara do gol, nas categorias de base, chamando a atenção do técnico Lori Sandre, que o colocou no time de cima em 1984.

Mas sua habilidade o credenciou a jogar mais na frente. Nascia ali um dos maiores atacantes já vistos.

Sua credencial matadora foi apresentada logo em 1986, quando disputou tento a tento com Careca a artilharia do Brasileirão daquele ano, perdendo por um gol para a outra cria Bugrina. Em 1987 veio a convocação para Seleção que se sagrou campeã do Torneio Pan-Americano; em 1988, comandando o ataque do Guarani, conquistou a tão sonhada artilharia do Paulistão. Os amantes do futebol já sabiam que os deuses da bola abençoavam um novo homem-gol.

Partiu para a terra da bota para tentar o “scudeto”, quando o campeonato italiano concentrava a nata dos melhores jogadores do mundo, sua equipe, o Atalanta. Em Bergamo, formou dupla de ataque com ninguém menos que Claudio Caniggia (aquele mesmo) e fez a alegria da torcida “nerazzura” 25 vezes em 76 partidas.

Volta para solo nacional em 1991, para fazer história no Palmeiras. Antes dos dólares, dos laticínios da Parmalat. Evair encontrou o calor humano da torcida, foi ídolo quando o Verdão amargava um jejum; era referência máxima do Alviverde. Sua elegância na área, objetividade máxima a marcar gols, o colocavam em um pedestal.

Em 1993, é formada a nova academia de futebol do Palmeiras – para quem gosta de futebol, um deleite. Formou com Edmundo e Edilson uma verdadeira linha atacante de raça. A conquista do Paulistão do mesmo ano, com gol de pênalti na final, selando um jejum de 16 anos contra o rival, naqueles 4×0 já o colocavam na história. A Comemoração, correndo em direção da torcida como um verdadeiro Cristo de braços abertos está na memória e no coração do Palmeirense.

Vieram ainda o Paulistão de 1994, o bicampeonato brasileiro 93/94 o torneio Rio-São Paulo em 1993. Destaque em um timaço recheado de craques de primeira categoria, o artilheiro estava consagrado.

Participou de toda conquista para vaga da copa de 1994, era nome quase certo na lista final de Parreira. O pé de uva surpreendeu a todos quando o deixou de fora, preterido na lista final por um garoto de 17 anos, que atendia pelo nome de Ronaldo.

Partiu para Terra do Sol Nascente, onde conquistou a Recopa e a Super Copa Asiática pelo Yokohama. Na terra do Imperador disputou 59 jogos e anotou 35 gols.

Na volta para o Brasil em 1997, fez uma passagem curta pelo Galo Mineiro, e assinou com o Vasco da Gama. Reedita a dupla que infernizou zagueiros adversários, ao lado de Edmundo. Inteligente, soube recuar e se mostrou um verdadeiro garçom de luxo para o Animal. Resultado: Campeão Brasileiro novamente, desta vez pela turma da fuzarca.

Mas em 1999 reencontrou sua amada torcida, depois de passagem pela gloriosa Lusa. O alviverde surgiu novamente imponente e conquistou sua maior gloria até hoje, a Libertadores. Com certeza absoluta, a tomada da América pelo Porco não teria a mesma doçura sem Evair em campo. Gol majestoso na final contra Desportivo Cali. Coroando de vez a carreira de Evair e, sem dúvida alguma, colocando-o de vez na história.

Ainda teve tempo de ser Campeão Paulista pelo Tricolor em 2000, mas nada que apagasse sua história no Verdão.

Exemplo de seriedade dentro de campo, soube parar quando não deu mais. Era a realeza convicta dentro da área. Inteligente demais no trato com a pelota. O gol, um objetivo a ser sempre conquistado. Elegante quando corria para bater um pênalti, majestoso em suas comemorações, eterno para torcidas, responsável pela retomada das glórias do Palmeiras.

Em seu título de nobreza não pode faltar a observação de que seu sangue não é azul, é Verde, como o gramado e como o manto que mais vestiu e defendeu.

Salve Dom Evair, o Cavaleiro Verde da grande área.

*Marcelo Guido é jornalista apaixonado pelo futebol. Pai da Lanna Guido e do Bento Guido. Maridão da Bia.

Dodô – “O Artilheiro dos Gols Bonitos” – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Futebol é cor, é luz, é espetáculo! Poucos jogadores levaram isso tão a sério como Ricardo Lucas Figueiredo Monte Raso – para muitos, o simples Dodô.

Abençoado com o dom de fazer o diferencial para alegria de privilegiados que puderam vê-lo jogar. Aliás, jogar não: encantar torcidas. Era essa sua função dentro de campo.

Cria da base do Nacional, honrou as camisas do Paraná Clube, São Paulo, Santos, Palmeiras, Vasco, Fluminense, Oita Trinita – JAP, Goiás, Portuguesa, Barra da Tijuca, Al Ain – EAU, Americana e Grêmio Osasco – mas encontrou sua eterna morada no Botafogo.

Foram duas passagens pelo Alvinegro Carioca, onde Dodô pode ser colocado como ídolo da apaixonada torcida da estrela solitária. Dodô era a esperança dos abençoados botafoguenses. Era o cara de quem podia-se esperar algo dentro de campo.

Os deuses da bola deveriam rir à toa novamente com a camisa sete de General Severiano; o peso que vestiu Mané, caiu como uma luva no corpo esguio, de velocidade superior e inteligente do atacante. Seu oficio máximo não passava incólume, Dodô era especialista em fazer gols bonitos.

A bola parecia encontrar o pé do artilheiro e morrer com suavidade dentro das metas, mas não sem antes desafiar as leis da física, do tempo e do espaço. Dodô era um verdadeiro artista que parecia assinar cada tento como uma verdadeira obra de arte.

Foram 124 vezes que Dodô honrou a camisa listrada, e nos deixou felizes 90 vezes; vieram os títulos do Estadual de 2006 e Taça Guanabara também em 2006, e a artilharia do campeonato. Títulos guardados no coração e na memória de todo botafoguense.

Dodô encarnava a alma Botafoguense em cada jogo; como um ser sobrenatural, escondia a bola e distribuía talento em jogadas que pareciam fictícias dentro das quatro linhas. Parecia abusar da sorte, mas era apenas seu jeito mágico de jogar.

Ainda teve o Campeonato Paranaense de 1996, pelo Paraná. E o Paulistão de 1998 pelo Tricolor, onde o craque também assinou seu nome na história, com 19 tentos sagrados na artilharia daquele ano. No Morumbi foram 169 jogos e 93 gols.

Digno de frases e notas, seu gol pelo Fluminense contra o Arsenal da Argentina na libertadores de 2008 foi uma verdadeira paulada de primeira de fora dá área; um gol que beira o absurdo.

Na Vila famosa, não à toa foi-lhe ofertada a Dez. Talvez seu destino fosse brilhar.

Um jogador que vestiu dois dos mantos mais sagrados da história do futebol – a Sete do Botafogo e a Dez do Santos – não pode ficar de fora das linhas tortas traçadas pela história da bola.

Foram ao todo, 751 jogos e 406 gols por vários pavilhões.

Certa vez, em devaneios etílicos levantei a possibilidade de renomear o “Prêmio Puskás” que honra o gol mais bonito do ano em todo o mundo para “Prêmio Dodô”. Entre risadas e negativas, sem desmerecer o grande Húngaro, perguntei aos presentes:

Puskás, jogou a Libertadores? Não. Jogou na altitude de La Paz? Não. Pisou no solo sagrado dos Defensores Del Chaco? Não. Vestiu a Dez do Pelé e a Sete do Garrincha? Não. Foi garfado covardemente pelo Marcelo de Lima Henrique? Não. Ganhou a descomunal Taça Guanabara? Não.

Pelos serviços prestados ao futebol espetáculo, não lhes restam admitir que tal homenagem seria mais que justa.

* Marcelo Guido é Jornalista. Pai da Lanna Guido e do Bento Guido e Maridão da Bia.

Discos que Formaram meu Caráter (Parte 43) – “Never Mind The Bollocks, Her`es The Sex Pistols” … Sex Pistols (1977) – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Salve moçadinha esperta!

Ondas sonoras e nebulosas trazem de volta a nave louca do som. O alardeado viajante musical vem novamente salvar os leitores do tédio secular que, infelizmente, ainda assombra a vida de muitos.

Agora, deixem de lados suas preocupações mundanas, para celebrar mais um histórico artefato musical. Peço o mais digno respeito e salva de palmas para:

“Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols”, o primeiro álbum de estúdio dos caras do Sex Pistols.

Corria o ano de 1977, e a merda estava agarrada na Inglaterra; a terra da Rainha andava mal das pernas: recessão fodida, desemprego em alta, inflação galopante. Uma verdadeira apatia tomava conta da população – principalmente da parte mais jovem. A ideia de seguir à risca a vida pré-moldada de seus pais doía nos nervos da garotada.

Em um espaço tomado pelo conformismo, uma centelha de revolta floresceu em Londres, para tomar de assalto e abalar todas as seculares estruturas da sociedade britânica. Estava vivo o Sex Pistols.

Capitaneados por Johnny Rotten e Sid Vicious, sobre a batuta de Malcolm McLaren, a molecada instaurou o caos nas rádios britânicas e colocou um alfinete sujo no chá das cinco daquela galera bem-nascida.

Aos poucos os caras chamaram a atenção da opinião pública. Seus shows eram um misto de cagada com energia; eram sempre motivo de problemas para os organizadores e autoridades; sempre acabavam em confusão. Nada mais Punk.

Canalizar aquilo tudo que estava ocorrendo, era questão de tempo e nesse contexto os caras entraram em estúdio para, da forma mais simples, com acordes pobres e sonoridade suja com letras que falavam o que os jovens queriam ouvir, atacaram a chutes de coturno toda a mesmice que pairava sobre a sociedade britânica.

Depois de serem rejeitados por quase todas as gravadoras do Reino Unido, finalmente assinaram com a Virgin e lançaram o single “God Save The Queen”, no qual atacavam veementemente a família real e toda a submissão imposta por ela à sociedade.

As rádios se recusavam a tocar e os caras eram atacados por onde andavam. Mas, o melhor aconteceu: a música estourou e – mesmo de forma clandestina – a molecada caiu no gosto da turma de Londres e de todo o Reino Unido.

Vamos deixar de lari-lari e esmiuçar todo esse histórico calhamaço de sons subversivos e revolucionários:

O disco começa a todo vapor com “Holidays in The Sun” uma crítica mensurável a os que tem grana para passar as férias em bons lugares. “Bodies” uma ode sobre aborto. “No Feelings”, a valorização das relações interesseiras. “Liar”, cobrança aos políticos, promessas não cumpridas. “God Save The Queen”, mesmo nome do hino nacional, uma ferrenha crítica à família real. “Problems”, problemas causados pelo conformismo, você não pode ficar só reclamando. “Seventeen”, questões sobre a idade. “Anarchy in the U.K.”, a chamada para a revolução anárquica. “Submission”, a submissão de todos perante a família real, e seus asseclas. “Pretty Vacant”, contra o sistema e contra todos, a mais bela identificação de um vagabundo. “New York”, crítica feroz à cena londrina. “E.M.I.” a aceitação cega é sempre um mau sinal.

Foda-se do disco! Forjado na amargura dos tempos difíceis, onde o grito de rebeldia – que estava preso a todo descontentamento de uma geração inteira – finalmente pode ser ouvido por todos.

Foi lançado dentro de um barco, para a polícia não encher o saco. Ficou em 38º lugar nas paradas britânicas e ganhou o mundo. Seu sucesso acabou implodindo o grupo, mas essa é outra história.

Não menos que medalha de ouro para ele na categoria disco foda. Essencial em qualquer coleção de quem se mete a entender de Rock.

Se você não conhece, nem tente sonhar com seu certificado de foda.

Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols representou uma mudança radical em todo mundo; bandas como The Clash ou caras como o Billy Idol só surgiram depois dele. Antes de tudo, um disco que abriu muitas portas. A semente estava plantada.

Conheci este belo exemplar de som ainda nos meus 14 anos, e isso já era 1994; ajudou a moldar minha vida. Depois dele, nada de se conformar com o que estava preparado. Agora era viver pelas próprias perspectivas.

Importante historicamente, o último gênero musical que chutou tudo para o alto, destruiu e reconstruiu. E sem tirar ou colocar méritos de quem inventou o Punk. Este disco levou o movimento para as massas.

E mesmo hoje, 43 anos depois, continua inspirador, porque contra a mesmice do dia-a-dia não tem melhor remédio.

Não esquentem seus colhões, chegaram os Sex Pistols.

Marcelo Guido é Jornalista. Pai da Lanna Guido e do Bento Guido , Maridão da Bia.