Nostalgia e Luz – Crônica de Natal de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Hoje de manhã me vi subitamente abatido por um ataque de nostalgia.

No meu caminho para o trabalho observei um homem ateando fogo no lixo. Tinha uma vassoura nas mãos e cuidava com atenção para que as chamas não se espalhassem sobre a calçada. Aquele ato, pensei, era um resquício da herança cultural indígena tão presente em nossa vida cotidiana.

De repente me veio a lembrança do tempo que Macapá caminhava lenta, em sua vivência pacata sob o sol do equador, quando vizinhos se respeitavam e eram amigos; quando cada um sabia das necessidades do outro e ninguém hesitava em pedir uma xícara de óleo, um pouquinho de farinha, um teco de colorau, de pó de café ou de pimenta-do-reino, ou quando trocavam gentilmente deliciosos pratos de comida, feita com abundância para a família.

Lembro que às vezes, pela manhã, minha mãe varria as folhas do cutiteiro que sombreava a frente de nossa casa e fazia a sua fogueira no lixo amontoado. Ele também era o alvo dos moleques da baixada que quebravam nossas telhas com as tentativas de apanharem os frutos jogando pedras e paus na árvore. A pequena fogueira fazia pouca fumaça, mas ia se juntando com a fumaça da vizinha e da outra vizinha e da outra vizinha. E ninguém se incomodava porque a fumaça era fugaz, se dispersava com o vento vindo das marés do Amazonas, lá adiante.

À noite trafegava em sua beleza estelar na escuridão. Crianças brincavam de roda à boca da noite e adolescentes gastavam suas energias na brincadeira de “pira” ou de “bandeirinha”, sob a luz da lua ou das lâmpadas pálidas dos postes da CEA. E, quando a luz se apagava, íamos até mesmo ouvir dos mais velhos as histórias de assombração, pregar peças de visagens aos poucos passantes da noite ou observar os satélites que cruzavam os céus do equador entre as estrelas.

Naquele tempo meu pai deixava aberta a porta de casa para que eu e meus irmãos não incomodássemos seu sono, certo de que ninguém ousaria abri-la para roubar. Era um tempo em que bastava a presença de um cãozinho para o possível gatuno se escafeder. E até as criações de galinhas e patos não eram protegidas da ousadia das “mucuras velhas” de plantão, que roubavam os animais para fazer tira-gosto de suas bebedeiras noturnas. Ah! E como eles sabiam fazer isso. Há casos em que roubavam a própria casa.

Os quintais não tinham cerca, tinham caminhos de atalhos, tinham campinhos, leiras de verduras e árvores frutíferas. As ruas eram tão nossas que ao fim da tarde viravam campos de futebol, em jogos que só terminavam ao anoitecer. Cada um respeitava seu cada qual: o dono da bola podia ser ruim no jogo, mas era o dono, e pronto. Ninguém furtava a merenda do colega nem caderno nem brinquedo.

Ainda que eu não queira culpá-la, mas depois que a televisão chegou nada mais foi igual. A molecada ia assistir a programação na casa do seu João de Deus onde havia o único aparelho de TV no bairro. Seu João colocava um vidro azul no vídeo para que as cenas das novelas “Meu Pedacinho de Chão” e “Vejo a Lua no Céu” parecessem mais coloridas. Doce ilusão! E dava o exemplo de patriotismo acompanhando em pé com a mão no peito o Hino Nacional, no fechamento da programação, por volta de meia-noite. O sagrado jantar familiar ficou mais apressado porque a novela ia começar e todos iam para a sala assistir aos folhetins de Janete Clair.

Mas ainda que brote da minha memória, eu não vejo com saudade essas lembranças. A saudade é mais profunda, é mais poética e mais densa que a nostalgia, que é uma palavra originária do grego e significa “regressar”, “voltar para casa”. E nesse regresso emocional, observo que as pessoas quase já não varrem as folhas que caem das árvores na frente de suas casas, nem fazem mais fogueira com medo de denúncias de vizinhos aos órgãos ambientais e por acharem que é um trabalho exclusivo dos garis da Prefeitura. E assim, as fumaças que eram como bandeiras ou cantos de galos se espalhando, já não enfeitam mais as manhãs ensolaradas da minha cidade. A solidariedade dos vizinhos foi substituída pela individualidade de cada morador aprisionado em suas portas e muros gradeados, pelo medo tácito da violência urbana.

As pedras jogadas nas mangueiras e cutiteiros se transformaram em duras palavras atiradas até em quem não tem telhado de vidro. A energia vital dos adolescentes é gasta nas baladas, quando longe dos pais, muitos enveredam pelos caminhos das drogas. As antigas histórias de assombração agora são contadas pelo Rádio e pela TV nos noticiários da violência no trânsito, brigas de gangues e mortes cruéis por motivos fúteis. O olhar real da juventude que acompanhava o curso dos satélites no céu escuro da noite tornou-se um virtual olhar, onde o romantismo de outrora foi trocado pela racionalidade dos programas dos computadores e celulares on line na Internet e pela comunicação ingênua das redes sociais.

Ah, os ladrões… Desde que mundo é mundo temos ladrões, prostitutas e assassinos e os seus trabalhos diferenciados sob a Lei, porque não há sociedade sem crime, ainda que teimemos em construir nossa utopia. Os ladrões de um passado (nem tão longe assim) eram de patos e galinhas, que ao menos não sujavam o nome de nossa terra e nem nos envergonhavam nacionalmente com negociatas políticas e atos de corrupção explícita.

Nem se comparam com muitos da atualidade que usam a pele de cordeiro para, como lobos ferozes, roubar o dinheiro público, enriquecer às custas do povo e trair cinicamente os que neles confiaram pelo voto. Naquele tempo as cercas inexistentes nos quintais davam a todos a liberdade de fazer seus próprios caminhos, de realizar seus atalhos e se apressar para a vida que viçava lá fora, principalmente pelo caminho da educação, pulsante nas escolas públicas, onde os professores eram mais que isso: eram educadores e amigos. Ensinavam também, como no ato do seu João de Deus em frente à TV ouvindo o hino nacional, a respeitar os valores da Pátria, apesar da era de obscurantismo da ditadura militar.

Hoje olhamos para os costumes sociais e familiares em mudança e nos molhamos de nostalgia. Tudo mudou com os avanços tecnológicos, que tanto facilitam a nossa vida. E tudo começou com a televisão, essa invenção incrível, pois quando a luz apagava na hora de um programa ninguém mais conversava. A família ia para o pátio da casa olhar a rua espelhada de chuva, e uns se perguntavam aos outros: será que foi geral? Será que ela vai voltar? Já pensou? Ficar sem TV o resto da noite… Afirmo, pois, com certa tristeza que foi aí que começou a morte do diálogo familiar.

E as ruas? Ora as ruas. Ruas de tempos abençoados que não testemunharam atropelamentos fatídicos, apenas quedas de bicicleta ou boladas na cara de algum passante desatento. Ruas da minha cidade transformada, ruas que hoje absorvem o sangue dos mortos diariamente em cada esquina, ruas não mais tangidas pelos protestos do povo inconformado, ruas esburacadas pela angústia no rosto da juventude sem emprego, ruas que se tornam rios de chuva e trazem doenças inevitáveis, ruas que lêem os passos cansados dos que tem pouca mobilidade física, ruas escuras, ruas das violências noturnas, ruas dos loucos, dos bêbados, das putas, dos travestis e dos moralistas de plantão.

Mas elas são também as ruas dos sonhadores como nós, que tentamos enfeitar a madrugada e trazer a música e o sol no cavalo alado da nostalgia, para iluminar um mundo futuro ausente de dor e de vergonha, mas cheio de luz e de perdão.

Não deixemos, pois, por isso mesmo, a luz ir embora dos nossos corações.

O Velho das Latas – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Aquelas barbas espessas no rosto do homem, brancas, brancas, se esvoaçavam com o vento da Beira-rio. Eram barbas longas que chamavam a atenção de qualquer um, mas que logo, logo, provocavam uma sensação de desprezo pela figura. As pessoas nas mesas ao meu redor comentavam sobre ela e após constatarem que era um mendigo se desinteressavam.

Que era um velho o dono das barbas parecia óbvio. Jamais vira aquela pessoa na praça e creio que ninguém a conhecia também. Era um ser estranho. Não fossem as barbas longas diria que era um ancião indígena há muito tempo expulso da vida selvagem e degradado na cidade. Talvez tivesse vindo lá do sul do Pará ou do Maranhão, onde se vê tanto índio mendigando, bêbados, pelas rodoviárias.

Acompanhei seus gestos. De vez em quando ele apanhava uma lata de alumínio do chão, ajeitava-a e pisava nela com força, até achatá-la. Depois a punha num saco que carregava às costas e ia e vinha embalando seu cansaço. Calculei que ele se aproximara dos quiosques no finzinho da tarde quando os frequentadores dos bares surgiam para suas confabulações habituais. Certa hora ele se aproximou de uma mesa onde estava um casal bebendo cervejas em lata. Muitas delas já haviam sido consumidas e, amontoadas, tomavam a forma de pirâmide. Ele chegou devagar e pediu as latas vazias com os olhos. O rapaz o encarou e jogou uma lata no chão. O velho abaixou-se para pegá-la, mas o rapaz o empurrou sobre umas cadeiras de plástico, rindo de um jeito antipático e covarde. A moça que acompanhava o valentão repreendeu-lhe nervosamente, pagou a conta e foi embora na frente. Tentei ajudar o velho a se levantar, mas ele se desvencilhou de mim, atravessou a pista e sumiu.

A lua minguante surgiu como um imenso olho de cachorro dentro de uma nuvem negra e a maré subia, subia, arrebentando o muro de arrimo, o último anteparo de uma enchente ameaçadora. O vento intenso parecia orquestrar o bailado das águas, vigoroso e circular, provocando frio. Eu não duvidei que naquele momento e naquele pedacinho da cidade a natureza estava conspirando contra mim. Havia muitas luzes em toda parte, e eu estava ali ensimesmado, viajando em desilusões e lembranças amargas, esperando um tempo novo para mim. Sentia-me como uma roupa lavada e posta para secar no varal em dias de inesperados chuviscos.

Ilustração de Fernando Canto.

De repente tomei um susto ao erguer os olhos. O velho surgiu na minha frente me encarando como se eu lhe devesse alguma coisa. Tinha o olhar severo e desafiador. Intrigado, pedi que sentasse e resolvi lhe encarar do mesmo jeito. Seu semblante foi mudando devagar até que sorriu. Então pude ver que seus dentes eram de uma brancura inquietante, mas ele tentava mesmo era falar com os olhos, numa comunicação inusitada que surpreendentemente eu compreendia. E foi “falando, falando em silêncio”. Pelos seus olhos dizia dos fenômenos das marés e dos ventos como um mestre em Geografia; falou do céu e das constelações como um velho astrônomo egípcio; dos homens como um santo e do coração como um deus que abre todas as portas para o amor. Enquanto “falava”, percebi que manuseava uma lata de alumínio com movimentos suaves, assim como quem modela uma peça de argila. E após tantas viagens imaginadas, que quase fizeram esquecer minha tristeza, o estranho homem se despediu e foi caminhando com sua sabedoria em direção à fortaleza de Macapá.

Ficou em mim uma momentânea sensação de felicidade e a boca seca de vento e vinho. Mas logo voltaria aquele estado de amargura, de ter o coração fechado e um gosto de desamor e de abandono. Meus olhos apenas contemplavam o infinito. Foi então que ouvi o espocar de fogos de artifício e caí na realidade. Sobre a mesa estava uma chave retorcida feita de lata. Olhei ao redor, as mesas vazias. Um casal de garçons me acenava sorridente. Pensei no velho das latas, apertei a chave com força e uma sensação de paz abriu em meu coração para nunca mais se fechar para o amor. Olhei novamente em volta. O relógio do trapiche marcava meia-noite. Era natal e as luzes piscavam como meus olhos cheios de marés lançantes.

Discos que formaram meu caráter: O Descobrimento do Brasil- Legião Urbana (1993) – Por Marcelo Guido – Hoje o álbum completa 30 anos – @Guidohardcore

Há 30 anos, o Legião Urbana lançava “O Descobrimento do Brasil”, seu 6º disco de estúdio. Foi gravado em um momento de tensão entre a banda e a gravadora EMI-Odeon. “Perfeição”, “Vamos Fazer um Filme”, “Só Por Hoje” e “Giz” são os destaques. Sobre esse álbum, republico o texto do amigo jornalista Marcelo Guido, publicado originalmente aqui no De Rocha em 2016.

Discos que formaram meu caráter: O Descobrimento do Brasil- Legião Urbana (1993) – Por Marcelo Guido

Muito bem amigos, voltamos mais uma vez para falar (sem querer ser repetitivo) de músicas, discos e afins. Como faço toda semana, espero acrescentar a vocês um pouco mais sobre assuntos um tanto quando piegas, mas relevantes.

O disco de hoje nos leva até a década de 90, mais precisamente ao ano de 1993, época de incertezas no campo político, onde um presidente eleito pelo voto popular acabara de renunciar, mostrando toda nossa frustração com nossa primeira experiência democrática depois dos áureos anos de Ditadura.

No campo musical, uma lastima sem precedentes (já falei algumas vezes sobre isso) um imensurável número de “duplas sertanejas” vindas mais precisamente do estado de Goiás e redondezas, armadas de suas calças apertadas, violas, agudos ensurdecedores (que deixava a Tetê Espíndola, morta de inveja), uma dor de corno imensurável. Da Bahia vinha à famigerada “Axé Music”, com seus refrãos grudentos, coreografias ensaiadas e a Daniela Mercury, clamando para si todas as cores da cidade e os cantos também (alguém deveria ser responsabilizado por isso), sem falar claro do “Pagode Romântico”, onde todos os amigos de bairro montavam um grupo e com músicas melosas conseguiam seus 15 minutos de fama, sentavam no sofá da Hebe (com direito a selinho) e se refrescavam na “Banheira do Gugu”. Realmente dá nervoso só de lembrar, essa parte dos anos 90 foi embora muito tarde.

Foi no meio disso tudo que, como verdadeiros “Salvadores da Pátria” a Legião Urbana nos brindou com esse excelente álbum que, com certeza, embalou a vida, a adolescência e juventude de muitos de nós. Com o coração cheio de orgulho que eu apresento para uns e relembro para outros “O descobrimento do Brasil”, todos de pé, todos de pé.

A coisa andava meio mal para os caras da Legião, o comodismo do mercado e também o preço do sucesso acabava por colocar os caras a mercê dos críticos, já não produziam nada novo desde o LP “V” de 1991 (muito bom, mas conceitual e compreendido por poucos) e vinham de uma coletânea deveras “Caça niqueis” (coisa de gravadora) chamada de “Musica para acampamento” (essencial para qualquer coleção digna de rock), mas os fãs queriam mais, queriam coisas novas.

Renato Russo encontrava-se, mais uma vez, frente a frente com outro tratamento para dependência química e alcoolismo. Mas diferentemente das outras tentativas, “a voz da geração Coca-Cola” (se eu não coloco isso os cults me apedrejam), encarava a situação com otimismo.

Foi no meio de todo esse circulo conturbado, envolto nesse cenário negro que a Legião Urbana se reinventa e volta à relevância com este verdadeiro calhamaço de belas canções, com letras contundentes e melodias de valor imensuráveis.

Vamos deixar de lengalenga e ir logo as faixas:

O Disco começa com a metódica “Vinte nove”, forte sem dúvidas, feita cheia de referências ao número “29” (oh), muitos acreditam ser uma lembrança do tratamento de 29 dias do cantor, sem contar que para os esotéricos (coisa que Renato era e bem) os 29 anos que saturno passa para percorrer sua própria órbita. Marca uma nova fase na vida de qualquer indivíduo. “A Fonte” é outra canção forte, você só passa a compreender depois de várias audições, as críticas envolvidas na canção, mostram a volta da “raiz punk” da Legião. Então vem “Do Espirito”, extremamente pessoal e punk, com suas guitarras distorcidas é uma ode a luta de Russo contra o álcool.

“Perfeição”, como o próprio nome diz, é um dos maiores sucessos da banda, música preferida de muitos, uma crítica pesada onde a ignorância do mundo é celebrada, mas a esperança aparece no final. “Passeio da boa vista”, instrumental para relaxar, excelente trilha para um passeio de barco ou uma consulta ao dentista. “O Descobrimento do Brasil”, a faixa título do disco, é uma nostálgica baladinha legal de se escutar, quem se apaixonou no segundo grau sabe muito bem do que estou falando.

“Os Barcos”, minha preferida desse disco, letra pesada o verso “Só terminou pra você”, já fala por si só. “Vamos Fazer um Filme”, fala de um sentimento de reconstrução pessoal, onde tudo pode te jogar pra trás, mas você vai estar bem se sua turma for legal. “Os Anjos”, lado “Ofélia” (palmas pra ela) de Russo que dá uma receita perfeita para o lado negro da vida. “Um dia Perfeito”, clima bucólico, ótima sintonia de guitarra com teclado, perfeita para tardes chuvosas.

“Giz”, outra da metáfora “Quero ser criança de novo”, nostálgica, letra magnifica considerada pelo próprio Russo como sua “obra prima”. “Love In The Afternoon”, creditada a várias perdas importantes, foi feita para um namorado falecido, é uma música romântica. “La Nuova Gioventú”, apesar do piegas nome em italiano, um “rockão” pesadíssimo, com direito a distorção e tudo, cita a maldita obra “On The Road”, a bíblia da contracultura dos anos 60. “Só por Hoje”, o lema do AA, fecha com perfeição esse disco. Escute e entenda.

Letras fortes, temas marcantes, banda afinadíssima nada mais a falar. Sem muita frescura, clássico de marca maior. Foda-se do disco do caralho!

Nem é preciso dizer, que este disco vendeu mais de meio milhão de cópias, um verdadeiro “chute nos colhões” do mercado vigente na época.

Muitas lendas sobrevoam essa bolacha. Posso dizer a vocês que, apesar de dedicada em show “Love In The Afternoon”, não foi feita para o Aírton Senna (só se fosse escrita pelo Walter Mercado, o disco é de 1993, e o Senna se foi em 1994). Se você fala isso, pare você está falando merda. E “Giz”, foi realmente escrita e feita para Zezé di Camargo e Luciano (e dai? O cara só queria liberdade para cantar “é o amoooooooooorr”), mas isso não arranha o brilhantismo da Bolacha.

Esse foi o sexto LP da Legião, o último que fez os caras saírem em turnê e que proporcionou o e primordial registro ao vivo “Como é que se diz eu te amo” (duplo). E saiba que o excelente “A tempestade” (1996) era para ser um trabalho solo de Russo. Sim amigos, esse foi o derradeiro. Nada mal para um último suspiro.

Por hoje é só. “Urbana Legio Omnia Vincit”!!

Marcelo Guido é punk, pai e jornalista e professor.

A chegada do Banana no céu – Crônica muito porreta de João Lamarão (contribuição paid’égua de Fernando Canto)

Banana – O chato mais querido do Amapá – Foto: Chico Terra

Por João Lamarão

Um mês já havia se passado daquela noite fatídica, tempo mais do que suficiente para que os tramites burocráticos do Purgatório se processassem normalmente, contando é claro, com o jeitinho brasileiro, instrumento fundamental para que qualquer processo corra rapidamente em qualquer lugar e o Banana foi autorizado a ingressar no átrio que dá acesso a porta do Céu. O ambiente normalmente tranqüilo, nesta hora estava altamente congestionado. Filas intermináveis, parecia mais com o pronto socorro durante os finais de semana do que a ante-sala do Paraíso.

Como era de se esperar, a situação mexeu com os brios do Banana que esbravejou aos quatro cantos que aquilo era uma esculhambação geral e que até ali, não havia respeito com as almas que aguardam a redenção eterna, por isso, iria se queixar diretamente a Ele. Deus, seu amigo intimo, que já o salvara de poucas e boas, de forma que a BACOL não deixaria aquilo barato.

Antigo Bar Xodó – Fotos: arquivo de Fernando Canto

Em um cantinho apertado, tipo 3×4, pois o preço do aluguel no Céu está pela hora da morte e onde foram implantadas as modernas instalações do Xodó Celestial, várias almas disputavam uma vaga no exíguo espaço a fim de conseguirem tomar uma cerveja geladinha enquanto aguardavam a vez de serem chamados pelo assessor especial de São Pedro, um negro alto e forte, ar de bonachão, que pela sua estatura sobressaia a turba, impondo respeito ao ambiente. Era nada mais, nada menos que o Pururuca.

Numa área reservada àqueles do regime semi-aberto que podem sair e entrar no Céu a qualquer hora, ao redor de uma mesa estrategicamente colocada, Paulão, Waldir Carrera, Marlindo Serrano e Bode, jogavam conversa fora. Faziam conjecturas de como estava a vida pelas bandas daqui de baixo, se haveria ou não carnaval, se a micareta na orla seria liberada, entre outras coisas.

O saudoso Albino Marçal, dono do Xodó – Foto: arquivo de Cláudio Pinho

Pela parte interna do balcão de mármore branco italiano, entre santinhos, velas e terços postos a venda, o Albino muito p… da vida meio a confusão peculiar, reconheceu nosso amigo ao longe, perdido meio a multidão e esbravejou:

– P.Q.P., taí o motivo da minha cuíra. Acabou o nosso sossego. Vejam quem acaba de chegar prá me aporrinhar.

Todos se viraram rapidamente na direção indicada. A alegria foi geral e imediatamente uma festa foi armada para receber o novo hóspede, gerando grande confusão, todos ávidos por notícias da terra, uma vez que por aquelas bandas não tem televisão e nem pega celular. Sabedores de que o Banana era onipresente, conseguia a proeza estar em vários lugares praticamente ao mesmo tempo, teria portanto, muita informação a dar.

Passada a euforia inicial, as coisas foram acalmando, mas ao largo, um grupo de almas francesas xingava até em patuá, a falta de organização do ambiente, exigindo providencias urgentes. Ao fundo, uma voz em fluente francês tentava acalmar o agitado grupo dizendo:

Franky de Lámour – Arquivo de Fernando Canto.

Monsiers et mademoiselles, calma, calma… aqui as coisas são assim mesmo. Não se preocupem que vou ajeitar tudo pra vocês. Se há necessidade de dar um jeitinho, daremos; para isso, sou a alma certa, conheço todo mundo aqui no pedaço; tenho até autorização do Todo Poderoso para trabalhar como lobista e, mais rápido do que o pensam, vocês estarão rezando um terço com Senhor. Mas antes, preciso de um adiantamentozinho prá molhar a mão do porteiro.

Ouvindo isso e intrigado com a presença de tantos franceses, o Banana virou-se rapidamente e deu de cara com nada mais nada menos que o Franky de Lámour que tentava resolver a questão:

– Franky, que bagunça é essa, cara? Aqui não é o Céu, onde tudo é mil maravilhas?

– Não Banana! Aqui não é o Céu, aqui é Caiena.

– Valha-me Deus! Dancei.

João Lamarão – Arquivo Sônia Canto

*”Essa crônica sobre o Banana é antológica. Foi escrita pelo nosso parceiro João Lamarão, engenheiro e escritor que também já foi pra Caiena, infelizmente. Ele é o autor do livro “No tempo do Ronca,- Dicionário do falar Tucuju”. Essa é uma singela homenagem àqueles que fazem parte da vida macapaense e que partiram deixando saudades e para não esquecer o quanto ele também fez parte de nossa história. Sua simplicidade, bom-humor (às vezes mau-humor, mas sem ser grosseiro) e profundo amor por esta terra” – Fernando Canto.

**Fotos encontradas nos blogs “O Canto da Amazônia”, do Chico Terra e da Sônia Canto.

O Bar é uma Antena Social – crônica porreta de Fernando Canto

Caricatura do artista plástico Wagner Ribeiro

Crônica porreta de Fernando Canto

Cansados estamos de saber que o bar é um espaço democrático, principalmente se é popular, aberto. No entanto é o lugar onde as ideologias emergem até com fundamentalismo. É um mundo em que os fatos ali ocorridos e as histórias contadas também são objetos de exposição de valores, de ocultação de defeitos e de promoção e marketing pessoal, demandados pelas incertezas do futuro, pelo processo político e pelas contingências da história.

Bar Xodó – bebi muito aí.

Logicamente também é um espaço de festa e de lazer; local onde as emoções se eriçam e se cruzam, onde notícias quentinhas esclarecem novos conhecimentos; amores secretos são aprofundados ou descobertos e por isso geram descontroles emocionais e físicos entre pessoas que até então nunca podíamos pensar tão valentes ou covardes. No bar as emoções se revelam em paradoxos inusitados.

Antigo Bar do Abreu da Avenida Fab – Foto: O Canto da Amazônia

Talvez por isso, e nesta crônica despretensiosa, eu possa entrar no mundo do bar para dizer o quanto ele é, também, um gueto disfarçado, às vezes uma roda violenta de preconceitos, que envolve quase todos os integrantes dessas assembleias ocasionais. O bar, antes de ser um balcão onde as pessoas ficam em pé ou sentadas em bancos altos consumindo bebidas alcoólicas, é também uma unidade de medida de pressão, segundo o Aurélio. O interesse pelo bar tem um condicionamento sociológico que vai além da mera vontade de tomar uma cerveja gelada, ou de querer ficar só por alguns momentos, ou mesmo se envolver em assuntos antagônicos aos problemas sentidos para não ter que cair na real.

Cada qual sabe a casca que tem para aguentar o que ronda cada cabeça pensante e a sua sentença sarcástica, pois inúmeros são os que ali vão para somente consumir o inconsumível, ou seja, a paz que o outro carrega. Os chatos, de certa forma dão vida ao bar.

Canto, Emerson, eu, Sal e Sônia – Bar da Maria – 2018

A família dos chatos é grande, tradicional, seus membros estão em todas as partes; muitos são perdulários e só demonstram humildade quando perdem tudo no jogo ou quando têm suas contas confiscadas por ordem judicial. Mas esses são os que conseguiram se ascender na escala social à custa do dinheiro público. Mesmo depois que são soltos da cadeia continuam chatos e arrogantes. Existem os chatos desmemoriados: aqueles que contam as mesmas piadas, mas sempre se esquecem dos finais, assim mesmo só eles riem da sua própria graça. Os chatos pedintes são os mais comuns. Revelam-se humílimos, franciscanos ao extremo e matam a mãe para acertar em cheio no alvo da comiseração alheia. Ao contrário desses existem os chatos barulhentos, que no jogo de futebol, na televisão, gritam tanto que cospem no copo de todo mundo num raio de três metros. E haja perdigoto na cerveja dos torcedores contrários. É claro que se podem identificar muitos desses elementos e até classificá-los, o que para tanto peço ajuda dos companheiros que não se autorrotulam nesse metier. Quem sabe não façamos um tratado sobre esse bloco afamado e muito peculiar, cujos elementos também são conhecidos cientificamente como insetos anopluros da família dos pediculídeos, os famosos Phthirius pubis (L.), que vivem no mundo inteiro sugando as pessoas.

Carnaval do Abreu da Fab, em 2016. Foto: arquivo pessoal de Elton Tavares

Desde muito tempo frequento bares e neles tenho encontrado pessoas de todos os tipos: políticos, beberrões inveterados, jogadores de futebol, profissionais liberais, padres, estudantes, gente de preferências sexuais diversificadas, funcionários públicos, poetas, jornalistas então… No bar há excelentes contadores de piadas e cantadores da noite com suas alegres vaidades. Mas também há os professores de Deus, que do alto de suas sapiências enojam, mas recebem os olhares irônicos dos mais humildes que acham que eles “só querem ser o que a folhinha não marca”.

Eu, Fernando Bedran e Fernando Canto – Mestres em boemia produtiva (papo bom demais)

O bar pode dar condições para o diagnóstico de uma sociedade. É uma antena extremamente poderosa e propícia para captar preferências individuais e coletivas. Pode ver! Pelo meu lado, faço minhas observações e bebo. E vice-versa. Malograda alguma companhia, só penso no ditado do Paulinho Piloto: “passarinho que acompanha morcego dorme de cabeça pra baixo”.

(Do livro “Adoradores do Sol”, de Fernando Canto. Scortecci, S. Paulo, 2010).

Paulão do atabaque – Por Humberto Moreira (Contribuição de Fernando Canto)

Por Humberto Moreira

Vez em quando, para não perder o hábito, costumo fazer uma releitura de alguns livros, que guardo com carinho na minha pequena biblioteca. Lá estão livros do meu compadre Fernando Canto, alguns de Milan Kundera, livros sobre jornalismo, Fernando Gabeira, livros sobre a saga de Ernesto Che Guevara e outros mais simples. Como aquele que fala sobre um amigo que partiu a bastante tempo.

Foi numa certa madrugada em que eu acabara de chegar de mais uma apresentação musical. Nariz, o Augusto Wanderley Aragão, ligou pra minha casa informando a morte do Paulão do atabaque. Perdi o sono e passei a rememorar as muitas viagens ao Amapá, junto com o Paulão e o Newton. Os dois a bordo de um Opala Cupê, apelidado de General Lee. Eu geralmente ia no meu carro, para poder retornar quando bem entendesse.

Paulão era daqueles que topava qualquer parada. Num sábado de sol, como este a gente já estava com tudo traçado. Se não desse pra ir à fazendinha, junto com o Zeca Sebastião, podia dar pé na estrada rumo ao Amapá, para uma festa no clube dos pescadores. No outro dia, uma esticada até a cachoeira grande e a volta pra casa no final da tarde.

À certa altura, Paulão foi para o Recife, aperfeiçoar seus conhecimentos de pesca. Na volta começou a transportar pesca para a cooperativa, num caminhão. Quase toda a semana lá ia eu, encarapitado na boléia do caminhão, rumo ao Pracuuba. Era uma viagem sensacional. Vez em quando, uma parada para um banho, ali pelo Tartarugal. Na fase final da concretagem da hidrelétrica do Paredão, havia um pessoal que gostava muito de seresta. Só tinha para a gente. Eu, Nonato Leal, Sebastião e Paulão. Era violão, voz e atabaque a noite inteira.

De repente ficamos desfalcados. Paulão foi embora, deixando um vazio danado. Ainda hoje quando encontro o Newton, a gente se lembra dele. Um cara pra quem tudo sempre estava bem. Pra ele não havia dificuldade, nem tempo ruim.

Ainda hoje quando viajo pela BR-156, principalmente naquele trecho que vai do Tracajatuba ao Tartarugalzinho, lembro do meu amigo, ao volante do caminhão, contando piada desde a hora que a gente saia de Macapá até chegar ao nosso destino. Um sujeito descontraído que sempre esteve de bem com a vida. Como explicar sua morte prematura. Não há explicação. Quem sabe lá em cima estava precisando de um cara bom de atabaque, para fazer parte de um grupo musical da pesada.

Em homenagem ao Paulão do Atabaque, o Grupo Pilão, gravou uma canção que diz (uma pena que não a encontrei no Youtube): “Morre o homem fica a fama no coração de quem ama”(Fernando Canto).

*Anteontem, 5 de dezembro, completou 36 anos da subida tridimensional do Paulão, que embarcou nesta data, em 1987.

**Publicado no Jornal do Dia
***Contribuição de Fernando Canto.
****Fotos: 1-Tica Lemos, Brenna Paula Tavares e Memorial Amapá; 2, 3 e 4: Blog Porta Retrato.

Memória – Bebé Tacacazeira – Por João Silva

Dona Bebé, ou a Bebé Tacacazeira – Foto: Blog do João Silva

Por João Silva

Dona Bebé no preparo do tacaca que virou uma tradição de 43 anos no canto da Igreja de São José

Poucas pessoas do povo dentre aquelas que frequentavam ou não sua banca de delicias, sabiam seu verdadeiro nome, Raymunda Cezarina Rodrigues de La-Rocque, a dona Bebé, ou a Bebé Tacacazeira, nascida no dia 02 de abril de 1934, em Bailique, Distrito de Macapá, filha Mário Palha Rodrigues e Raimunda de Carvalho Rodrigues, mais conhecida como Dona Dica. Bebé contraiu nupcias com o paraense Alfredo Luiz Duarte de La-Rocque, pioneiro do Território Federal do Amapá, funcionário público aposentado, no dia 15 de março de 1957, em Macapá.

O casal teve três filhos, todos homens: Abel Rodrigues de La-Rocque (2 de setembro de 1958), técnico em eletrônica formado pela escola Técnica Federal do Pará; Sérgio Roberto Rodrigues de La-Rocque, engenheiro químico industrial pela UFPA, atual secretário de transportes do Governo do Amapá (09/12/1959); Luiz Jorge Rodrigues de La-Rocque (30/08/62), escrivão de polícia, técnico em contabilidade pelo Colégio Comercial do Amapá.

Dona Bebé, Raymunda C ezarina Rodrigues de La-Rocque estudou no Educandário Antônio Lemos em regime de internato até sua formatura, quando retornou à Macapá mais ou menos em 1948; foi contratada pela casa Leão do Norte, trabalhando como auxiliar da gerente, dona Clemência até seu casamento.

Dona Bebé – Foto: Tribuna Amapaense

Em 1962, morre a mãe de Raymunda Cezarina Rodrigues de La-Rocq(Bebé), dona Dica, que começara com venda de tacacá e outras delicias, como vatapá, caruru, beijo de moça, cocada na Praça Veiga Cabral, sob uma das imensas mangueiras que foram retiradas do leito da Rua São José. Bebé então assume o lugar da mãe e a banca se desloca para o canto da Igreja de São José, de onde só saiu, doente, para falecer no dia 5 de março de 2004, em Belém do Pará.

Em 43 anos de trabalho, Bebé transformou o tacacá da família Rodrigues de La-Rocque, e outras delicias que vendia ao cair da tarde, em um atrativo da cidade de Macapá. Seu corpo, em reconhecimento à sua figura carismática, foi velado no Plenário da Câmara Municipal, e foi sepultada no Cemitério de Nossa Senhora da Conceição, no mesmo mausoléu da sua genitora.

Bebé atendia todos os seus fregueses muito bem, e pela ordem de chegada, sem distinção. Sua banca funcionava de segunda a sábado, na calçada do prédio da Diocese, local em que se instalaram as Livrarias Paulinas, e tinha um público eclético: ia de governador, juiz, promotor, deputado, até o povão. Ela conversava muito pouco enquanto trabalhava, e guardava a sete chaves os segredos que faziam do seu cardápio de comidas típicas uma gostosura que os macapaenses jamais irão esquecer. Ah, outra coisa: quando estava de folga não gostava de conversar sobre o seu trabalho…”Aqui eu sou outra Bebé, não sou a Bebé Tacacazeira”.

Meu comentário: eu ia muito na banca de tacacá da dona Bebé, na Macapá anos 80 e 90. Sempre levado pelos meu pais, Zé Penha e Maria Lúcia. Bons tempos!

* João Silva é jornalista amapaense. Esse texto sobre a querida dona Bebé foi achado no blog homônimo a ele.

Frases, contos e histórias do Cleomar (Segunda Edição de 2023)

Tenho dito aqui – desde 2018 – que meu amigo Cleomar Almeida é cômico no Facebook (e na vida). Ele, que é um competente engenheiro, é também a pavulagem, gentebonisse, presepada e boçalidade em pessoa, como poucos que conheço. Um maluco divertido, inteligente, gaiato, espirituoso e de bem com a vida. Dono de célebres frases como “ajeitando, todo mundo se dá bem” e do “ei!” mais conhecido dos botecos da cidade, além de inventor do “PRI” (Plano de Recuperação da Imagem), quando você tá queimado. Quem conhece, sabe.

Assim como as anteriores, segue a Segunda Edição de 2023, cheia de disparos virtuais do nosso pávulo e hilário amigo sobre situações vividas em tempos pelo ilustre amigo. Boa leitura (e risos):

Nada fácil sem mutreta

Nessa vida não tem dinheiro fácil, ou tem mutretagem no meio ou não vai ser tão fácil assim.

Meio termo

O certo é não ter o nome tão limpo a ponto daquele parente limpeza te pedir pra comprar um carro e nem tão sujo que não dê pra trocar a geladeira no fim do ano.

Uber em Macapá

Os motoristas de Uber aqui de Macapá são diferenciados, eles querem que os carros andem sem acelerar, tipo barco a vela, fouda-se”

Nunca atendem

O dia que eu estiver numa situação de vida ou morte é mais fácil eu ligar pra Gisele Bündchen e ela me atender, do que o pessoal aqui de casa. Fouuudasse!!

CEA imbatível

Queria que meu time fosse igual a CEA/EQUATORIAL, duvido alguém ganhar dela!

Lisura misturada com Pavulagem que é o problema

O problema não é tu ser velho ou novo pra andar em tal lugar, o problema é essa tua lisura misturada com pavulagem que só te atrapalha. No meu tempo, liso ia pra praça.

Procrastinar, mas se garantir

Procrastinar não é deixar de fazer, o procrastinador raiz sabe que dá conta, só se utiliza melhor dos prazos.

Liso & Jarana

Pior que beber com liso, é beber com gente jarana, fouda-se!

Mulher encontra tudo

Falando sobre o submarino, um amigo do trabalho disse o seguinte: Só não encontraram esses caras porque eu não tô junto, se eu estivesse, minha mulher já tinha achado a gente.

Amor por fofoca

Se cada um cuidasse da sua própria vida, isso aqui não ia ter graça nenhuma!

Ditado de trampo

Trabalhe com o que você gosta e nunca mais você vai gostar de nada nessa vida!

Chatice

Sou tão chato, que teve um Dia dos Pais que eu mesmo comprei um presente pra mim e não gostei, te manca!

Nunca decepciona

A vantagem de ser ruim em alguma coisa, é que você nunca decepciona, você sempre faz mal feito!

Novela

Égua da novela doida da porra, uma mistura de Lost, De Volta Para o Futuro e Walking Dead, fdc!

Velho pra show

Mais um show desses e eu vou parar em Cayena. Tô muquiado!

Serviçal

Já passei por tanta largura/salvação nessa vida, que se eu for pra o céu, é na função de serviçal.

Flamengo 2023

Flamengo resolveu tirar um ano sabático.

Esse ano para o Flamengo, foi igual a um aniversário meu, em que eu gastei uma nota e não ganhei porra nenhuma.

Emputecer

Se tem uma coisa que me deixa puto, é a pessoa achar que eu tô mentindo, e eu estar mentindo mesmo.

Eclipse

Amanhã, já vou direto no INSS pedir minha aposentadoria, minha vista até agora ainda não tornou.

Sexta

A sexta-feira parece que testa a gente, pra ver se no fim do dia, a gente merece mesmo aquela cerveja bem gelada, que traz uma paz sem igual.

Falsa modernidade

Não há modernidade nenhuma no restaurante que não oferece cardápio físico para o cliente, é desagradável e corta o barato, tu dentro do restaurante, ter que estar abrindo aplicativo toda hora pra saber o que tem pra comer.

Calor

Já tá mais do que na hora do governo criar o Minha Piscina Minha Vida, fouda-se do calor!

Multidão e Tumulto

Não há diferença nenhuma entre o desespero do bolo de aniversário da cidade e a Black Friday da Eletroshop.

Senzalas: dos recantos do Amapá para o mundo – Por Rebecca Braga – @rebeccabraga (republicado por conta do showzaço de ontem)

Por Rebecca Braga

Em 1996, um grupo de amigos, que não por coincidência eram compositores, resolve viajar pelo Estado do Amapá para pesquisar manifestações culturais que fossem genuinamente amapaenses. Esses artistas aventureiros eram Amadeu Cavalcante, Joãozinho Gomes, Val Milhomem e Zé Miguel, que durante essas viagens se aprofundaram em pesquisas sobre o Marabaixo e o Batuque, manifestações artísticas e culturais de origem africana, exercidas majoritariamente por afrodescendentes em áreas rurais ou urbanas, em quilombos, nas casas das famílias festeiras de parte significativa do território amapaense.

O Marabaixo e o Batuque são a maneira pela qual o negro amapaense resguarda suas memórias, sua história de resistência, seus valores culturais e religiosos. Outrora visto pela ótica de uma manifestação puramente folclórica e tendo passado por processos contínuos de apagamento, hoje, depois de relativo período de valorização inclusive do ponto de vista das políticas públicas de Educação e Cultura, essas manifestações são a parte fundamental na construção da identidade amapaense e do reencontro com a ancestralidade negra.

Show de ontem (10) – Foto: Aog Rocha

Ainda vivendo o clima do disco Planeta Amapari, que juntou Val Milhomem, Zé Miguel e Joãozinho Gomes e embevecidos por essa redescoberta do Amapá, o grupo começa a compor canções que pretendiam ser uma música brasileira, amazônida, mas essencialmente amapaense. Com as composições em mãos e a pesquisa em fase de finalização, o grupo retorna a algumas comunidades pra mostrar o resultado final.

Sabendo que tinham encontrado o que procuravam em termos de música, poética e significados, o grupo grava o álbum Dança das Senzalas, título da primeira faixa do CD e que mais tarde deu nome ao grupo. Depois de um show histórico realizado em 1999 no Canecão, casa de show carioca que recebeu ao longo de sua história alguns dos maiores artistas brasileiros, o grupo passou a chamar grupo Senzalas. Depois disso, foram inúmeros os convites para tocar Brasil afora.

À convite de um produtor musical brasileiro que morava em Berlim, o Senzalas consegue realizar uma turnê por alguns países da Europa. Shows esses que não teriam saído do papel não fosse pela contribuição da FUNARTE, a Fundação Nacional de Artes do Governo Federal. A turnê europeia foi a primeira oportunidade que muitos dos músicos que compunham a equipe do Senzalas tiveram de tocar para um público internacional, podendo mostrar assim a música feita na Amazônia, especificamente, nos rios e florestas do Amapá.

Val Milhomem, que aos 17 anos já frequentavam os redutos da música amapaense, tendo participado de alguns dos movimentos musicais mais importantes do estado e que tem como seu primeiro registro gravado o álbum Formigueiro, foi um dos artistas que deu a cara ao que chamamos hoje de Música Popular Amapaense. Além de Formigueiro, Val gravou em 1996 o Planeta Amapari, em parceria de Zé Miguel e Joãozinho Gomes; em 1998 com Zé Miguel, Amadeu Cavalcante e Joãozinho Gomes, o Dança das Senzalas; em 2006 o Constelação de Parentes, com Joãozinho Gomes; em 2013 gravei junto de Amadeu, Zé Miguel e Joãozinho o álbum Tambores do Meio Do Mundo e, anuncia que está com planos de lançar o EP Vem Ver.

Show de ontem (10) – Foto: Aog Rocha

Val conversou um pouquinho com a Rádio Iara sobre o relançamento do álbum Dança das Senzalas e Tambores do Meio do Mundo, agora disponíveis nas plataformas digitais:

“Nós já estávamos atrasados no uso dessas ferramentas tão importante nos tempos de hoje. Havia muita cobrança daqueles que curtem (a nossa música) e da comunidade estudantil. Acredito que é um grande reforço para o time de produtores da Amazônia que buscam o conhecimento de suas obras por uma grande parcela do povo brasileiro e do resto do mundo”.

Perguntado  sobre os ataques que Cultura, na época do DESGOVERNO do inapto Bolsonaro, Val disse:

“Eu vejo esse momento como o pior que eu já vivi, para a cultura brasileira e muito mais para cultura nortista que sempre esteve distante dos grandes centros e das grandes discussões. Mas se tem uma coisa que aprendi nessa vida é que sempre haverá um novo amanhecer e é nesse novo amanhecer que a esperança se renova. Fé na vida porque dias melhores virão.”

Show de ontem (10) – Foto: Aog Rocha

A gente também acredita em dias melhores, poeta. E aconteceu!

Para ouvir o Dança das Senzalas clique aqui.

Para ouvir Tambores do Meio do Mundo clique aqui.

Fonte: Radioiara

*Texto republicado por conta do showzaço dos Senzalas, ontem (10), no Formigueiro. 

Como será quando eu morrer – Crônica de Elton Tavares

Ilustração de Ronaldo Rony

Às vezes me pego pensando: quando eu morrer vão lembrar de mim por quanto tempo? De que forma recordarão este jornalista? Vira e mexe penso que, após quatro décadas de vida intensa, desviver pode estar próximo de acontecer.

Será que vão contar piadas sobre situações inusitadas ou presepadas que cometi? Sei não, talvez a família e os amigos mais próximos até sofram, mas logo esquecerão deste gordo, feio, chato e brigão. Quem sabe será melhor desta forma, assim não terá muito mimimi…É que nunca fui dado a dramas.

Não sei se vou bater na porta de Deus ou do diabo (Não que eu tenha cultuado forças maléficas ou feito o mal a quem não procurou, mas ninguém sabe os critérios de avaliação da força que rege tudo isso aqui), se é que eles existem. Nada de exame de consciência, pois daria negativo.

Não sei se a passagem pra outra vida é a entrada na fila da reencarnação para outra existência, dimensão, planeta ou realidade paralela.

Não que eu esteja com pressa, mas penso mesmo no desencarne. Nada de finitude. É como dizem, todo mundo quer ir para o céu, mas ninguém quer morrer. Mas se rolar, minha estada por aqui valeu a pena. E como Valeu!

E o caixão? Vão ter que pegar um guarda-roupa, tirar portas e gavetas pra caber este gordo. Só lembro do Sal, que uma vez me disse: “Porrudo, se tu morrer antes de mim, apesar de sermos brothers, não vou pegar na alça do teu caixão. É que não sou chegado a serviço pesado” (risos).

Não sei onde e como acontecerá. Apenas suspeito. Acho que o cabo da matrix será puxado de repente, como um raio, um piscar de olhos. Tomara que assim seja. Esse negócio doido de morrer, que sabemos que vai acontecer, mas sempre nos surpreende é muita onda.

Mas de volta ao tema principal, como será após eu subir no telhado. Falo dos meus familiares, amigos. Espero que sintam a saudade gostosa que tenho do meu pai, aquela sem nenhum ressentimento.

Tenho certeza que daria uma passada pelo Purgatório, afinal, já magoei um monte de gente e dei porrada noutro tanto. Isso quando mais jovem, mas pecados são pecados. Não tem jeito.

Quero que na lápide seja escrito: “Godão, ardoroso partidário da causa hedonista, botou pra quebrar. Amou os seus, combateu os inimigos de forma limpa, viveu como quis e se divertiu a valer. Com um histórico imenso de confusões, vítima da sua própria sinceridade”.

Aliás, desafetos é o que não me faltam. Talvez role até uma festa deles para comemorar meu embarque para Caiena. Quando eu morrer, se valer a pena, alguém pode escrever, eu autorizo. Mas se falar mal, volto, e minha mizura vai cobrir de porrada o autor da crítica.

Dizem que quando a gente morre passa um filme. O meu será um mix de romance, drama, aventura, humor e comédia. Enfim, quando chegar a hora, como disse o mestre Nelson cavaquinho: “quando eu morrer, os meus amigos vão dizer que eu tinha um bom coração. Alguns até hão de chorar e querer me homenagear, mas depois que o tempo passar, sei que ninguém vai se lembrar”. É por aí mesmo. Por isso vivo o agora. Digo a quem amo que os amo e honro os meus com declarações de amor viscerais. Pois é assim que deve ser. Mas afinal, como será quando eu morrer?

Elton Tavares

**Do livro “Crônicas De Rocha – Sobre Bênçãos e Canalhices Diárias”, de minha autoria, lançado em setembro de 2020.

Cemitério dos elefantes – Crônica muito porreta de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Sempre curti cemitérios. Gosto de passear pelos corredores, admirar a arquitetura de alguns túmulos, observar as datas de nascimento/falecimento. Quanto mais antigas as datas, tanto melhor.

Em Curuçá/PA, a casa da minha família era bem próxima ao cemitério. Eu tinha uns quatro anos e ia muito lá. Deve ter vindo daí minha predileção por cemitérios e um senso de humor que, vez por outra, tem muito de mórbido. Depois, na adolescência, já morando em Belém, sempre que passava férias em Curuçá, o cemitério era um de meus locais preferidos de passeio.

Em Belém, frequentava o cemitério da Soledade, que tinha/tem um ar de abandono, cenário para filmes góticos, e o de Santa Isabel, o último lar de figuras como Eneida de Moraes, escritora e militante política. Sempre à frente de seu tempo, Eneida desafiou os padrões de sua época, liderando greves e atuando no jornalismo das décadas de 1920/30, quando esta atividade era considerada exclusivamente masculina.

No cemitério de Santa Isabel, encontramos também túmulos que são recordistas de visitação em dias como os de hoje, 2 de novembro. Alguns mortos dali são considerados santos pela tradição popular, como o cirurgião Camilo Salgado, que fez muita filantropia em vida; Severa Romana, uma moça de 19 anos assassinada grávida, em 1900, a quem muitos atribuem milagres; e Josephina Conte, morta em 1931, que se transformou numa lenda urbana da cidade das mangueiras: a Moça do Táxi.

Se e quando for a Paris, minha primeira visita não será à Torre Eiffel nem ao Arco do Triunfo. Será ao cemitério do Père Lachaise, o mais famoso do mundo, pela sua beleza arquitetônica e pela lista de hóspedes. Veja apenas alguns: Delacroix, Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust, La Fontaine, Allan Kardec, Modigliani, Isadora Duncan, Albert Camus, Molière, Chopin, Maria Callas, Edith Piaf e Jim Morrison.

Aqui em Macapá, minhas visitas aos cemitérios se fizeram mais raras, mas ainda dou minhas voltas pelo cemitério de Nossa Senhora da Conceição, o mais antigo da cidade.

Enquanto não me transformo em morador de um lugar desses, vou curtindo sua tranquilidade e suas histórias, sempre com muito respeito pelos que ali estão. Até que eu morra e vá descobrir, finalmente, onde fica o tal cemitério dos elefantes.

Cemitério: um lugar de encontro e memória- Crônica de Fernando Canto

Crônica do sociólogo Fernando Canto

No cemitério todos estão iguais: mortinhos. Mas as pessoas que o visitam no Dia de Finados estão ali para reverenciar os mortos pelas suas qualidades, pela saudade que ficou, pelo respeito à obra que deixaram ou pelo amor que ainda paira na lembrança.

Assim o cemitério torna-se um lugar da memória porque ali cada lápide é uma imagem que enclausura um objeto de representação social ou familiar. E a presença dos parentes e amigos não só traz o significado do respeito e da fé religiosa como também o da mudança que se opera em todos os homens e mulheres diante da inflexibilidade da morte. Torna-se também lugar de oração, culto e reflexão.

Embora já não represente mais tanto mistério nem incuta mais tanto medo, o “campo santo” no centro da cidade é apenas mais um dos tantos aparatos urbanos encravados e irremovíveis que chegam a causar muitos problemas para as administrações municipais. Principalmente os de natureza ambiental, porque o chorume humano polui densamente os lençóis freáticos das suas redondezas, algo semelhante quando combustíveis como óleos ou gasolina penetram no subsolo.

É um lugar democrático: defuntos de todas as classes sociais estão enterrados nele. É um local frequentado por pessoas de todo tipo, que expressam seus sentimentos das mais diversas maneiras. Há fanáticos, por exemplo, que se atrelam a um devocionismo doentio, pois crêem que determinado defunto faz milagres e por isso pedem o que querem e inundam seu túmulo com plaquetas de agradecimento “pela graça alcançada”. Já vi homens virarem santos por obra e graça dessa morbidez que povoa a cabeça dos devotos. Vi pessoas serem homenageadas com pompas fúnebres pela ilibada conduta pessoal e profissional que tiveram, assim como já vi impropérios atirados a assassinos mortos pela polícia e a um político que a vida toda enganara eleitores e a família. Soube, inclusive, que nos anos 60 muita gente soltou foguetes no enterro de um delegado famoso por sua perversidade para com os presos.

O cemitério também é um lugar de encontro dos amigos. Ora, depois de uma rezada básica e uma vela acesa para os parentes, antigos amigos que hoje só se encontram no dia das eleições ou numa decisão do campeonato amapaense, se cumprimentam e se põem a conversar sobre conhecidos que já morreram. Então vêm à tona inesquecíveis episódios e velhas piadas sobre eles. A memória se reacende e traz de volta à vida o homem e sua conduta, mesmo que lhe reste apenas o pó dos ossos sob a lápide.

A conversa gira sobre os assuntos mais banais: desde a vizinhança de túmulos de entes queridos aos preços cobrados pelos coveiros que estão “pela hora da morte”; desde os “bons e velhos tempos” às doenças enfrentadas por eles (principalmente o diabetes) e as consultas periódicas aos médicos; desde aos planos mais mirabolantes às tentativas de convencimento a votar em certo candidato.

Em que pese a gritaria e o comércio de ambulantes que quase não deixam as pessoas passarem na frente do cemitério, a homenagem aos mortos passa a ser um acontecimento um tanto quanto banalizado pela força do capital que se instaura em qualquer lugar, seja onde for. Alguém vai sempre lucrar com isso. E como a morte rende… Não é à toa que cada vez mais aumenta o número de vendedores e de produtos diversificados nas proximidades das necrópoles. Não é à toa que o comércio abre suas portas mesmo sendo feriado.

Não quero dizer que acho isso estranho, pois tudo muda, evolui. Mas lembro com certa saudade a programação musical da extinta Rádio Educadora no dia de finados. O dia todo só tocava música clássica. Isso despertou em mim a curiosidade pelos eruditos que os padres italianos ouviam com prazer.

Cemitério é palavra que vem do grego, koimeterion, que significa “dormitório”. Como eu não quero ainda “dormir” na cidade dos pés juntos, prefiro me programar para ir até lá no dia dos finados, exercitar a memória e jogar conversa fora com os amigos.

A Morte e o Espanto – Crônica do sociólogo Fernando Canto

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Crônica do sociólogo Fernando Canto

Mircea Eliade conta no seu livro “O conhecimento sagrado de todas as eras” que há quatro tipos de mitos sobre a origem da morte. Um deles é o tipo da serpente e sua pele eliminada, da Melanésia.

Esse mito fala que no começo os homens nunca morriam, entretanto ao atingir certa idade eliminavam a pele como as cobras e os caranguejos, e novamente ficavam jovens. Reza o mito que certa vez uma mulher que estava ficando velha foi a um regato para mudar de pele. Ao se desfazer da pele velha, lançando-a à água, notou que a pele foi levada pela corrente, mas que ficou presa em um galho seco. Depois voltou para casa onde tinha deixado o filho. Este, contudo, recusou-se a reconhecê-la, e disse chorando, que sua mãe era uma velha, diferente dessa jovem estranha; e assim, a fim de acalmar a criança, a mãe voltou ao regato em busca de seu tegumento eliminado e vestiu-o novamente. Desde então os seres humanos deixaram de eliminar a pele e começaram a morrer.o-tempo-que-passa-o-homem-do-nascimento-lavra-morte-53579253

A explicação do nascimento da morte em todas as culturas é sempre seguida pelo inevitável encontro com ela e pela explicação da imortalidade da alma humana, alma que ela introduz aos desconhecidos mundos dos infernos e dos paraísos. Ela é a filha da noite e irmã do sono, por isso possui como a mãe e o irmão o poder regenerador. Se o ser que ela abate vive apenas no nível material ou bestial, ele fica na sombra dos infernos; se, ao contrário, ele vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos de luz.

13154morteDesde que nascemos convivemos com a morte. Há uma permanente tensão por não sabermos nem como nem quando pereceremos. Enquanto isso vamos alimentado os mais diversos símbolos para espantá-la do dia-a-dia ou procurando formas de chegar ao paraíso, onde seremos recompensados pelo que fizemos de bom. Mas também cultuamos forças maléficas e procuramos incessantemente a imortalidade.

Os símbolos da morte estão presentes em todos os lugares e em todos os níveis de existência nessa tensão permanente entre as forças contrárias da vida e da morte. Desde crianças convivemos com ela, através de representações iconográficas de caveiras, túmulos, personagens vestidos com um manto negro e armadosNASCIMENTO-E-MORTE de foice, serpente, cavalo, cachorro ou outros animais psicopompos (condutores das almas dos mortos, na mitologia grega).

Todos nós convivemos com riscos e contamos nossas histórias depois de passadas as tensões; tentamos evitar esse flagelo de muitas formas, principalmente com as novas descobertas da ciência, e pensamos em enganá-la sempre que sentimos sua presença, como nas histórias de cordel.

Michelino_DanteAndHisPoemEntretanto conviver com ela significa conviver com a realidade; denota estar dentro de um mercado amplo e indiferente aos sentimentos, com todas as suas mazelas e artimanhas. Morremos um pouco quando os entes queridos partem e sofremos ao compartilharmos nossas dores com a perda de amigos, de ídolos e de nossas referências pessoais.

O sonho da morte e a realidade da vida – e vice-versa – trazem dentro de cada ato findo um pouco da poesia daquilo que parte, que renasce como um caminho para uma nova aventura da vida. Não a poesia funesta, a tristeza fúnebre, a fantasia gótica, mas o enleio, o espanto, a sombra perdida na floresta que volta para o corpo em forma de alma. Sim aos despojos da pele da serpente, renovada na jovem mulher que o filho não mais reconhece como sua mãe.d129931f2d768acd746443b3d35b8ddf

Ah, a imersão de Dante na Divina Comédia, a descida de Orfeu aos infernos para resgatar a alma de Eurídice, sua bela esposa; Gilgamesh em sua epopéia em busca da imortalidade e a descida de Ishtar, deusa da vida e da fertilidade, ao mundo inferior.

O mito, o sonho da im1005860_443474112415325_1534850575_nortalidade, a explicação na lógica de cada cultura fundem-se na abstração que ora faço enlevado pela imagem de um corpo sem sombra – a alma assombrada, que vi num tempo de espanto, de maravilha, e de afugentação. Então: “Vai-te daqui, ó Morte, segue teu caminho especial separado daquele que os deuses costumam trilhar./ A ti que tens olhos e ouves, digo: não toques em nossos descendentes, não magoes nossos heróis”. (“Rig Veda”, X, 18).

A morte e a desmorte do Bogéa – Crônica porreta de Fernando Canto

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José Arthur Bogéa – Foto encontrada no blog Canto da Amazônia

Por Fernando Canto

Já não é mais tão difícil para mim falar da pessoas que partem desta vida em suas canoas espirituais. A gente vai envelhecendo e os amigos e parentes que amamos se vão a nossa revelia, em busca de novos portos para prestar contas com o Grande Arquiteto. Só eles sabiam realmente o que fizeram nesta vida e o que realizaram nas tardes amareladas de sóis poentes e nas manhãs de chuva que despetalam as rosas, afofam a terra e fertilizam as sementes. Cada qual tinha a responsabilidade de viver com a necessidade de encarar a morte. E vive e versa. Sim, só a eles competia interpretar suas metáforas particulares, suas soberbas criações e finalidades diversificadas.

Ah, a morte, flagelo imensurável e certo que acompanha os viajores execrados de seus próprios corpos; nefasta conclusão de um tempo em que perdura o sonho. – Morte, ó morte, obreira incansável que carrega o relógio da vida sob o manto negro, e o instrumento que ceifa qualquer tentativa de viçar demais. Traz o tempo certo na ossatura à vista e parte em bradantes gargalhadas pelos túneis da incompreensão humana.

Com ela salta o nosso pranto em gotas rutilantes, por tudo o que passamos, por tudo o que lembramos. A morte é memória posterior ao sonho. É a contraluz que indica o caminho revertério. A morte é a ponte inalterada da criação. Todos morrem. Todos morrem-morrem, desmorrem e morrem. E é morrendo que creio na criação, que crio no tempo do viver. E vivo. Eu escrevo com a mão esquerda/ saúdo com a voz do vento/ meu escudo é uma fortaleza/ que embate a foice da morte.

Eu tenho um poço escondido de todos. É uma grande cavidade de esquecimentos, onde jogo minhas mágoas e o nome das pessoas que me fizeram mal. É um poço fundo, fundo. Eu o conheço bem porque já estive lá e a muito custo consegui voltar. Eu tenho ainda uma fogueira permanentemente acesa para queimar minhas mazelas e transformar em pó as ciladas que me armaram e as energias negativas que lançaram em mim nos momentos de fragilidade. Mas eu não tenho um cemitério para enterrar meus inimigos. Eles que cavem suas próprias sepulturas, embora já habitem o abismo do poço escondido.

E que façam seus enterros ao sol do meio-dia, para que descasquem logo. Queiram ou não meus amigos vão permanecer acordados no meu pensar, em um jardim que plantarei num minifúndio especial e muito produtivo. Eles usarão chapéus na labuta diária e à noite comporão elegias e epitáfios por encomenda e serão regiamente remunerados com bons salários. Decerto sonharão com a vida, com os anjos e com o trabalho que terão de completar em outro porto, em outro cosmo, porque já estarão aposentados do trabalho de jardinagem, mas suas poesias correrão como relâmpagos nas noites escuras, onde Pégaso reina voando em direção ao Olimpo. E virarão pedras de mármore assinaladas pela palavra saudade.

Morreu o meu amigo, o Zé Arthur, o professor erudito de literatura e especialmente da literatura amazônica. Assim deu numa pequena nota de jornal, em Belém, sua terra, onde lecionou na Universidade por muitos anos. Morreu. Morreu mesmo, me confirmou o morto Ronaldo Bandeira. O escritor José Arthur Bogéa partiu como quem fica no início do mês numa cidadezinha do Espírito Santo, onde seu espírito, santo como seu texto, vaga pelo céu que lhe descortinou a paisagem para que, enfim, se transformasse em estrela.

Embora tenha saído essa nota de jornal, tenho a impressão que é mais uma das muitas mortes que inventaram desse meu amigo. Eu acho que ele ainda vai mandar notícias, desmorrer de novo. Quem sabe um novo livro sobre a obra de Dalcídio, porque chove nos campos em que plantaste teu trabalho, velho amigo.

*José Arthur Bogéa, paraense, ex-professor da Universidade Federal do Espírito Santo e professor visitante da Rijksuniversiteit te Utrecht (Holanda), jornalista, ator, crítico literário. Um criador. Comprometido com a cultura de sua terra e entusiasta da boa literatura produzida na região amazônica.