O dia que o Godão morreu – Crônica legal de Cíntia Souza – (@hccintia)

Por Cíntia Souza

O nó na garganta deixou meu corpo mole. Acordei em luto. A tristeza é algo que nos enfraquece de dentro para fora, sem nos dar chance de reagir. “Foi de repente”, “Eu falei com ele ontem”, “Disseram que foi o coração…mas também, mano!”, “É, a boemia cobra o preço”.

Meu amigo morreu. Meu parceiro morreu e a gente nunca viajou junto, digo, ao menos não para outros lugares. Por isso, não quero ficar com as lembranças, muito menos pirar com aquela lista de tudo o que não fizemos ou me punir por não saber aproveitar melhor o nosso tempo. Só a ideia me irrita. Está certo! Tenho problemas com a morte. Invejo kardecistas. Eles são tão serenos na hora da passagem. Eu acho que eles fingem.

Godão, Godão, se você estivesse aqui com certeza iria tirar um barato. O povo chorando, contando histórias, rindo, contando histórias e chorando. Interessante, todos têm algo para contar. E agora, como eu vou saber qual parte dessa biografia é real? Vai virar lenda, hein.

Além dos amados, da família firme e forte, será que você imaginaria que fulano viria até aqui? Beltrano também veio! Vixi, foram muitos encontros e desencontros. Eu queria que você pudesse ver isso. Tenho certeza que já imaginou o próprio funeral. Afinal, quem nunca?

Não faz muito tempo, talvez dois ou três meses, você postou algo sobre a sua rotina no trabalho e eu comentei citando a letra de uma música que a gente curte: “Eu desejo que você ganhe dinheiro, pois é preciso viver também. E que você diga a ele, pelo menos uma vez, quem é mesmo o dono de quem”. E você emendou: “Eu te desejo muitos amigos, mas que em um você possa confiar”.

A gente nunca foi do tipo que compartilha frases de Caio Fernando Abreu no Facebook (Hahaha). A gente vivia na vera…e como vivia. Éramos Carpe Diem total! Não sei se pelo fato de sermos jornalistas, mas fazíamos questão de registrar tudo. Tinha quem nos considerasse exibicionistas. Comédia! É injustiça tirar a vida daqueles que tentam aproveitá-la ao máximo. É isso o que revolta! E nós sabíamos aproveitar a vida como poucos.

Não sei por que conjuguei o verbo no passado. Afinal tudo isso foi apenas um sonho. Acordei fraca, com sede e com aquela aflição entranhada na alma. Passei a manhã pensando se aquele sonho teria algum sentindo, um significado especifico. Não encontrei nada até agora.

Eu e Cíntia – 2018

Durante a manhã falei com você pelo Messenger e fiz você prometer que não vai morrer. Você jurou.

O fato é que as pessoas morrem. Para quê, né?! Mas acontece. E sempre foi assim desde o começo. Dizem que teve um cara que foi e voltou, rasgou o véu, desceu a mansão dos mortos, mas depois ninguém nunca mais o viu. Há quem espere seu retorno.

Diante de tudo penso se há uma solução para encararmos a morte com naturalidade, simplesmente como a fase final e derradeira desse ciclo chamado vida, ou outro meio para anestesiar a dor da partida. Mas não sei se queria ver alguém retornar do lado de lá… Creio na cruz!

Cíntia Souza, jornalista, sócia proprietária da Crível comunicação e amiga minha. Texto republicado, pois tem dias que a gente morre um pouco mesmo.

A casca e a cultura política – Crônica de Fernando Canto

É verdade que demora um pouco, mas devagar a gente vai tirando a casca que fica com a prática da profissão. Uma camada fina e imperceptível se enrosca em muitas facetas construídas e solidificadas no dia-a-dia, em função das conclusões que chegamos num esforço profundo: o de tentar ser justo sobre nossas observações.

E a máxima socrática intervém somando-se à presença quase real dos dizeres encontrados no templo de Delfos da Grécia antiga: “eu sei que nada sei”. Mas paralelamente a isso cada qual vai se fartando de conhecimento, se faltando de erros na busca de novas reflexões que a profissão exige até mesmo para a compreensão da realidade de cada um, do que possui ao seu redor.

Ao professor cabe o pragmatismo da educação e uma trajetória profissional na produção acadêmica, na qual eles têm por missão desempenhar papel sócio-político e cultural como contribuição necessária à ordem do ensino, que é formar, ou quem sabe reformar cabeças de novos cidadãos.

A maioria dos profissionais crê que despojar-se do medo da atualização ou de velhos conceitos ideológicos são necessários, e se constituem uma forma de encarar a profissão sem a arrogância do sabe-tudo e, melhor, sem o estigma do radical militante. Reciclar-se também é importante, porque faz parte do negócio. E o negócio é mesmo a negação do ócio. Aliás, é bom que se pense que uma profissão bem exercida e bem conduzida é um caminho para o sucesso material ou financeiro.

Ninguém dá tudo de graça. É preciso merecer e estar bem preparado, porque em cada ramo de atuação todos mergulham, querendo ou não, nas amarras da cultura política, essa rede impressionante que prende e libera nossas ações sociais. Mateucci e Pasquino a definiram como “o conjunto de atitudes, normas e crenças mais ou menos partilhadas pelos membros de uma determinada unidade social”. Ela é composta, portanto, de um conjunto de subculturas presentes nas nossas atitudes, normas e valores, ou seja, no comportamento de indivíduos nas ações coletivas. Diria ainda, neste caso, nas ações dos profissionais que detém os conhecimentos a respeito de si próprios e de seus contextos, de seus símbolos e linguagens utilizadas. Essas culturas formarão novas culturas políticas.

O mestre Paulo Freire afirmou que quando falamos em uma nova cultura política estamos supondo que haja uma velha, o que nos obriga a refletir como se constitui o novo. Para ele toda novidade nasce do corpo de uma ex-novidade que começou a envelhecer. Como elas não surgem por decreto, há uma ligação entre as coisas que vão ficando velhas com as coisas que vão nascendo. Ele destaca que “uma das preocupações daqueles que pretendem transformar a sociedade é exatamente lutar pela novidade, e uma das formas de se engajar nessa luta é buscar diferentes formas de ajuizar a prática política”. (Freire, Paulo. A Constituição de Uma Nova Cultura Política; S. Paulo, Pólis, 1995). E dentre essas exigências cita a coerência entre o discurso e prática, a tolerância e a humildade na vida de todos.

Sem isso, acredito como Freire, que não há formação, ética profissional, educação, e consequentemente construção da cidadania.

HORA DA JORNADA – Crônica de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

É clara, companheiro, a hora da jornada. Em cada dia há um leão à espreita e uma longa fila de lampejos nas estradas.

Há sangue, flores falsas e mazelas a sabotar o edifício que teimamos em erguer no dia-a-dia.

É clara a hora de seguir. Em tempo vestiremos linho e nos untaremos de balsâmicos perfumes. É certo que pisaremos em chão de vidro estilhaçado, mas cada cicatriz terá uma história que será contada saborosamente no futuro.

– Os peixes já rumaram para as águas da baía!

Olha este chamado rouco que vem do mar, que o vento faz tremer pelas cidades, mas que não mete medo, pois parece a voz de um jardineiro quando canta em seu trabalho matinal colhendo flor.

Lembra que o que pega de galho não é apenas o amor, pois não se planta e não se colhe o que se quer, só por querer. Mesmo que os espinhos da flor bela e perfumada deixem raios de luz nas linhas das tuas mãos.

Quantas e quantas mil vezes não desviamos o olhar para o céu, só para ver a dança de andorinhas e a luz iridescente do equador.

Vimos barcos visagentos no horizonte – augúrios e pragas de contágio nas correntes – mesmo assim a ousadia se fez de ferro e então nos preparamos para esta viagem ao meio do protesto de cães que morreram sob a torre incendiada.

Ouvimos um discurso novo na cálida nascente. Era um vertedouro de palavras que aprendemos a grafar nas pedras do caminho.

Não nos calamos, todavia, ante as tempestades, nem sob vergalhões ameaçadores deste mar de suor e sal. E na manhã seguinte, no horizonte claro, construímos com metal, cimento e pedra os sonhos que tanto acalentamos em dias de ranço.

É clara, companheiro, a luz dos celulares no caminho. Há novas formas de grafar o mundo e de digitar novos valores que a vida nos exige agora.

A lança de Ogum, a flecha de Oxossi, a voz do santo Benedito do Laguinho não trazem mais notícias de mortes sem sentido, de armas antagônicas e lâminas sem fio, porque a morte verdadeira vem de frente, mas é a dor, a dor que a gente sente é que se mostra inevitável e sempre de perfil.

Roberto Carlos de Santana, meu louco favorito – Crônica porreta de Fernando Canto

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Crônica de Fernando Canto

Não sei bem em que jornal eu li sobre um maluco que morava numa praia do Rio de Janeiro, mas quem o deixou comigo foi meu amigo RT na volta de uma viagem à cidade maravilhosa. O texto o descrevia como um homem corpulento, negro e barbudo, que fumava maconha, mas que não incomodava ninguém. Cumprimentava a todos e fazia parte da paisagem urbana de Ipanema. Todo mundo o conhecia no bairro e o autor do artigo falava em uma espécie de reencontro com ele depois de muitos anos que passou fora do Brasil.

Em Macapá conheci algumas dessas pessoas alienadas, praticamente abandonadas por suas famílias. E foi exatamente na minha adolescência, quando era estudante do ginásio. Na saída das aulas os mais velhos instigavam os mais novos a fazerem chacotas com elas e apelidá-las quando passavam em frente ao colégio.

Nunca esqueci a “Onça”, que possivelmente não era louca, mas viciada na cachaça. Qtonho-da-lua-4uando convidada fazia espetáculos sensuais, levantava a saia rodada e dançava Marabaixo, sem se desvencilhar da garrafa de “Pitú’ equilibrava na cabeça, rebolando, para o delírio da turma, que a aplaudia sem parar, rindo e gritando com aquelas vozes de fedelhos em mudança, quase bivocais.

Ainda posso ver o “Cientista” lá pelas bandas do Mercado Central trajando seu paletó azul claro e um calção sujo e descolorido. A barba rala, as feições indígenas e o olhar sereno. Vez por outra procurava alguma coisa embaixo de uma ficha de refrigerante ou em uma pequena poça d’água, como se tivesse perdido algo muito valioso. À vezes anotava (ou fazia que anotava) alguma coisa em um papel de embrulho, daí as 32229-loucos-4-originalpessoas acharem que eram importantes fórmulas de um cientista, vindas em um “insigth”, um estalo de ideia. Eu o vi também trajando o pijama de interno do Hospital Geral, de onde fugia de uma ala reservada aos doentes mentais.

Quase decrépito, mas imponente, calvo e meio gordinho era o famoso “Pororoca”. Para mim é inesquecível a cena que vi dele descendo a ladeira da Eliezer Levy, no bairro do Trem, no sol quente do meio dia, bem embaixinho da linha do equador, quando os raios do sol pareciam rachar os telhados das casas e estalar a piçarra. Lá vinha ele, rindo à toa, descalço, de cueca branca e um imenso couro de jiboia enrolado no peito. Um figuraço!aliceatravesdoespelhofilme.jpg2 (2)

Creio que todos os frequentadores do bar Xodó chegaram a conhecer o “Rubilota”, um senhor de aparência forte, que andava invariavelmente sem camisa, que pedia um cigarro e ia embora. Mas de repente surtava e começava a gritar pornofonias das mais cabeludas possíveis. Quando ficava violento era preciso chamar a polícia, mas com um bom reforço, pois ele era durão.

Quem sempre aparecia pela Beira-Rio era o Zé, cearense e empresário de sucesso, mas que enlouqueceu, dizem, de paixão. Ele me conhecia, e sempre que me via nos bares ia me cumprimentar ou pedir um cigarro. Os garçons tentavam expulsá-lo do ambiente porque andava sujo e com o pijama do hospital, de onde fugia igual ao seu colega “Cientista”. Porém esergiocabeleirau não deixava que o escorraçassem.

Havia um cara que eu conheci ainda sem problemas psiquiátricos. Ele tocava violão e cantava na Praça Veiga Cabral, ali na parada das kombis que faziam linha para Santana. Estudava, salvo engano, no Colégio Comercial do Amapá. Anos depois eu o encontrei pelo centro da cidade cantando sozinho pela rua as músicas seu ídolo: era o Roberto Carlos de Santana.

O pessoal da sacanagem do Xodó chegava a pagar R$1,00 para ele cantar o “Nego Gato” no ouvido de algum freguês desprevenido. O RC de Santana chegava por trás da vítima (normalmente um amigo que não sabia da onda da turma) e dava um berro que até o Rei da Jovem Guarda se espantaria. Cantava “Eu sou o nego gato de arrepiar…” em alto e bom som e em seguida saía correndo com medo da porrada até a intervenção dos gozadores que morriam de rir.0,,22536863,00

Esse era o meu maluco predileto. Não sei por onde ele anda, se morreu como a maioria dos aqui citados, se ainda recebe uma grana para cantar o “Nego Gato” ou se ainda canta acreditando que é o Roberto Carlos, lá em Santana. O interessante é que as pessoas sempre têm uma explicação para a causa da desgraça alheia. Dizem que todos eles tiveram desilusões amorosas, que foram vítimas de traições, e por isso surtaram, e assim viveram e assim alguns morreram. Mas com certeza viveram bem, imersos no seu mundo, sem se importarem com que os “normais” pensassem a seu respeito, sem se indignarem com os acontecimentos inescrupulosos dos políticos indignos, estes sim, os deficientes mentais que precisam ser recolhidos definitivamente da sociedade.

O AÇAÍ DO GROSSO – Por Fernando Canto

Crônica Fernando Canto

Depois que ganhou o status como o quinto produto de maior exportação do Estado, o açaí ficou mais caro e escasso por aqui.

Não é para menos que um conhecido bloco carnavalesco do bairro do Laguinho vem trazendo como enredo a conhecida e desejada delícia regional, em um protesto interessante e engraçado, através de uma marchinha de tirar o fôlego, bem característico do tradicional bloco.

Fruto da Euterpe Oleracea, o açaí = yasa’i em tupi, é “a fruta que chora”, e produz um refresco de coloração arroxeada. É louvado por artistas e poetas em pinturas e músicas regionais de grande sucesso, como o “sabor Açaí” de Joãozinho Gomes e Nilson Chaves. Mas também é tão apreciado pela população que conhecemos pessoas completamente dependentes dele na sua alimentação diária. O Carlitão e o Álvaro, da Banda Placa, como tantos outros, fazem estoque do produto em seus freezers. Na entressafra correm atrás do fruto ainda verde, chamado “açaí parau”. Esgotada essa demanda inicia-se outra, a do sorvete que também é estocado e dura bastante, mas rigidamente controlado em seu consumo, até a chegada da próxima safra. Há pessoas que sofrem quando n

ão tem açaí. Uns chegam a ficar doentes e, doentes mesmo, por excesso de ferro e ausência de outros minerais e proteínas no organismo, continuam com a velha mistura do açaí com camarão, com peixe ou com charque assado.

O saudoso bandolinista mazaganense Amilar Brenha, já velho, com diabetes e pressão alta, mesmo proibido pelo médico de ingerir açaí com o acompanhamento tradicional do camarão, não hesitava em pedir o alimento e ser atendido pelos que tinham pena dele. Dizia que depois da música era o seu maior prazer.

Lembro que há muitos anos, na falta brava do açaí, que era considerado alimento de pobre, alguém estabeleceu “democraticamente” que só se poderia vender um litro por pessoa. Então famílias inteiras levavam suas panelas, chaleiras, caçarolas e garrafas de água para a fila do balcão das amassadeiras. Eram famosas a do seu Ramiro, a do seu Arinho, no Laguinho e a do seu Ituaçu (nome duas vezes grande), na Rua São José.

Por gostar tanto desse vinho, o amapaense produziu inúmeras anedotas sobre ele, de forma satírica e até mesmo cruel. A dúvida do Mundoca, por exemplo, quando disse que não sabia se tomava uma garrafa de cachaça ou um litro de açaí com os cinco reais que tinha em certa tarde de domingo; a irrefletida pergunta do pai que recebera a notícia do atropelamento do filho em frente à batedeira: – E aí, o açaí derramou? E a história da bela namorada de um amigo meu que foi convidada para a ceia familiar do natal. Ela pegou um prato e se serviu de todas as iguarias da época e, para o espanto de todos, após misturar o peru com a lentilha, o filé, o pato no tucupi com maniçoba, vatapá, pimenta e salada, abriu um buraquinho no meio do prato, retirou elegantemente um frasquinho da bolsa e despejou o conteúdo, o açaí, bem no meio da comida para então começar a “remar” com a colher. Assustado com aqueles gestos inusitados para ele, meu amigo acabou terminando o namoro.

Todos nós desenvolvemos certos hábitos culturais que se refletem no nosso comportamento diário, mas é com a alimentação que deixamos ver o quanto somos diferentes uns dos outros. No caso do açaí, o hábito de tomá-lo se confunde: Ora é complemento alimentar usado como vitamínico e energético ora é o próprio alimento que se complementa com o peixe, o charque (jabá), o camarão, etc.

Por isso mesmo o bloco do Laguinho inventou até um personagem para lutar contra a falta do produto regional: um tal de Capitão Roxão, um super-herói, cuja missão é evitar que os estrangeiros levem o nosso açaí e deixem só a “chula” (borra) para os laguinenses. O enredo é uma peça humorística onde os açaílatras (dependentes do açaí) têm a esperança do produto não faltar em suas mesas, mesmo com o preço “pela hora da morte”.

Corrida Maluca: um exemplo PARA A VIDA (Por Marcelo Guido)

Por Marcelo Guido (jornalista, professor e jornalista)

Clássicos nunca morrem, eu costumo dizer. Por muito tempo nos acostumamos a acreditar que o passado passou e não pode ser relembrado. Discordo!

Relembrando fatos da infância, divago por coisas que marcaram para sempre a minha existência. Uma delas, com certeza, são os quadrinhos, dos quais sou fã até hoje, e os desenhos animados (disco de rock, por serem especiais demais, nunca me atrevi a deixá-los de lado).

Tive muitos heróis cujo tempo, covardemente, fez questão de colocar em segundo plano em muitas fases de minha vida. Como pude esquecer, por exemplo, dos GALAXY RANGERS?, CENTURIONS, ZONO RAIDERS?

Mas antes vieram os básicos, minhas lembranças me levam aos primórdios aonde o que interessava mesmo era a diversão. Joseph Barbera e William Hanna eram especialistas nisso.

Os caras se conheceram em 1947 e tomaram um cano do Walt Disney, que prometeu contratá-los e nunca apareceu. Talvez por isso o Mickey seja tão chato.

Dessas duas mentes privilegiadas e brilhantes saíram “Tom & Jerry”, “Zé Colmeia e Catatau”, Fred Flintstone e Barney Ribble, dentre outros.

Em 1968, os caras resolveram se basear em um filme e lançar um desenho com 11 personagens principais, isso sim merece uma menção honrosa; imagina a dificuldade para que nenhum personagem ficasse em segundo plano. E assim nasceu a “Corrida Maluca”.

Inspirado no filme “A Corrida do Século” (1965), a “Corrida Maluca” era uma espécie de campeonato de carros que tinham os mais malucos participantes possíveis.

As corridas eram disputadas por esses caras no melhor estilo “vale-tudo”, e tinha de tudo… Imagine uma corrida com um carro que é um Avião pilotado pelo Barão Vermelho (carro nº 4) no mesmo Grid de largada de híbrido de tanque com carro (carro nº6), comandado por um cara chamado Meekley e com Sargento chamado Bombarda no Canhão? Ou com um cara com um carro de F1 que atente pela alcunha de Peter Perfeito (carro nº 9) (tem uma banda legal com esse nome) – era a formalização do herói perfeito, junto do Carro Mágico (nº 3) do Prof. Aéreo (um cara com feições de cientista maluco, mas que era do bem).

wpcars_800Ainda tinha o “Cupê Mal-assombrado” (nº 2) guiado por Medonho e Medinho, que ainda tinha uma torre (hummm) de onde saía um dragão, uma serpente, etc.; tinha o “Carrinho pra frente” (nº5) da Penélope Charmosa, o “Carro à prova de balas” (nº7), que muitos chamam de “Chicabum” e era comandado pela Quadrilha de Morte, “Serra Móvel” (nº 10) do Rufus o Lenhador, e do Dentes de Serra, a “Carroça a Vapor” (nº7) do Tio Tomás e do urso Chorão.

Todos os carros tinham as placas iniciadas com um “HN” em alusão aos criadores.

O meu preferido era o “Carro de Pedra” (nº 1) dos Irmãos Rocha (nome também de outra boa banda), que, mais tarde, deram origem ao “Capitão Caverna”. Sem contar, é claro, com a “Máquina do Mal” (nº 00) do Dick Vigarista e seu escudeiro Muttley, a Máquina do Mal, aparentemente, era o carro mais rápido e tecnológico dentre os competidores.

Apesar de tecnologicamente superior, o carro nº 00 nunca conseguiu vencer uma corrida. Muito mais pelo caráter duvidoso do seu piloto, que perdia muitas posições com planos mirabolantes e armadilhas para prejudicar os outros competidores.

A Revista “Mundo Estranho”, de julho de 2012, atribui o seguinte ranking:


• 1º Carro de Pedra/Irmãos Rocha – 81 pontos
• 2º Carro-a-prova-de-balas/Quadrilha de Morte – 74 pontos
• 3º Cupê Mal-Assombrado/Irmãos Pavor – 69 pontos
• 4º Carroça á vapor/Tio Tomás e Chorão – 68 pontos
• 5º Carro Tronco/Rufus Lenhador e Dentes-de-serra – 67 pontos
• 6º Carro de Mil e Uma Utilidades/Professor Aérao – 65 pontos
• 7º Carrinho pra Frente/Penélope Charmosa – 64 pontos
• 8º Lata Voadora/Barão Vermelho – 63 pontos
• 9º Carrão Aerodinâmico/Peter Perfeito – 60 pontos
• 10º Carro-tanque/Sargento Bombarda e Soldado Meekley – 39 pontos
• 11º Máquina do Mal/Dick Vigarista e Muttley – 00 pontos.

Essa é a moral da história: por mais que se tenha todo um aparato, você jamais conseguirá vencer se tentar trapacear. Assim é a vida…

Que os infindáveis Dicks Vigaristas continuem se dando mal. Porque, assim como na Corrida Maluca, na vida o bem sempre vence o mal.

Borboletas são almas – Crônica porreta de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Há certas épocas do ano que os céus de Macapá se enchem de borboletas amarelas. São nuvens flutuantes que parecem seguir em direção ao sudeste da cidade, atravessando o rio. Milhões delas são vistas diariamente por todos os lugares da região buscando o seu rumo, pulsando a uma dança arrítmica e farfalhando as asas para suplantar os obstáculos que se antepõem na sua louca viagem em busca de calor. Sabe lá quanto tempo não ficaram em estado de larva, encerradas em seus casulos antes de serem belas ninfas a se transformam em insetos alados. Quanto tempo será que a natureza não lhes condenou à escuridão para que num só evento as libertasse abruptamente em suas novas formas? Os pitagóricos diziam que a borboleta era o símbolo da imortalidade, pois, proveniente de Deus e de sua natureza, não se atém estritamente ao invólucro carnal e não está sujeita à morte.

Curiosamente a língua grega usa uma só palavra – psyché – para designar tanto a alma humana como a borboleta. Muitas culturas de antigas civilizações a usaram como representação simbólica de suas crenças e religiões. É possível que a analogia da lagarta em seu estado de crisálida com o homem morto tenha nascido no Egito, pois os defuntos mumificados, enrolados em bandagens de betume e substâncias balsâmicas se assemelhavam a ela no se estojo de seda. O corpo humano não era mais do que o invólucro da alma, que escapa pela porta da morte, assim como a ninfa rompe a extremidade de seu casulo e desenrola suas asas, tornando-se borboleta. Os primeiros cristãos também interpretavam esses fenômenos da mesma forma, e se fechavam para meditar no interior de celas de pedras de onde só saíam quando a alma estivesse pronta para empreender seu grande vôo. Até hoje os ascetas do Himalaia se retiram para cavernas inacessíveis e durante anos só comem o estritamente necessário à sobrevivência para se tornarem gurus, comparando-se a si mesmos às grandes borboletas dos rios Ganges e Indo. Na mitologia japonesa os insetos são associados às flores e conseqüentemente à iluminação búdica.

A palavra borboleta (belbellita) é uma designação comum a insetos lepidópteros diurnos. Existem espécies noturnas como as mariposas, aquelas que voam ao redor da luz. Cristãos da Idade Média interpretavam a chama como a fêmea tomada de luxúria, atraente e falsa, que queima a mariposa, essência da vida. Essa idéia tem sua origem no mito bíblico da Queda, com Eva e o pecado original. A natureza e o sexo passam a ser corruptos, sendo a mulher a representação máxima do sexo e o próprio ser corruptor. Entretanto, o sufismo interpreta poeticamente o fenômeno ao dizer que a mariposa estaria tomada de amor divino pela chama, lançando-se ao fogo místico sem temer o aniquilamento de sua própria vida. A Mariposa esfinge que na nossa região é conhecida por “bruxa” traz superstições como a que ao entrar em uma casa significa prenúncio de morte de um dos moradores.

Esta semana as borboletas amarelas se despediram da paisagem macapaense. Uma ou outra ainda ficam perdidas solitariamente, mas antenadas à procura da luz, num tempo em que o sol se abre em solstício após deitar sobre a linha do equador e deixar sua aura de força sobre nossas cabeças. Da prisão do casulo ao vôo libertário em busca do fogo divino lá vão elas, iluminadas, celebrando a vida em sua essência cheia de energia, enquanto o sol começa um breve afastamento para descansar dos homens e de suas almas-borboletas.

* Texto que deu origem a música Panampanam, a migração das borboletas, com melodia de Osmar Jr.

O Quadro – Conto de Luiz Jorge Ferreira

 

Conto de Luiz Jorge Ferreira

De Lisboa a Londres fui andando.

A nado fui de Belém a Macapá. Voando fui de João Pessoa a Quixadá. Hoje neste apartamento pequeno em que as paredes, pintadas de roxo, têm muitas manchas amarelas provocadas pela umidade Amazônica. É que sei que o tempo passou, enquanto eu calçava e descalçava os sapatos surrados. Manchou-me também.

Hoje corro descalço, olhando de suas janelas que dão para a Av Ernestino Borges, as da frente. A da cozinha, abrem-se para a Rua Iolanda Marcucy. A do banheiro, dela se vê a Rua 14 de Março, e a da cozinha tem a paisagem da rua Cel Lisboa, com o telhado descorado da casa do Braz.

Estou em meus oitenta anos. A cabeça já funciona aos solavancos e os cabelos, estão úmidos, produto desta fina garoa, que teimosamente chove sobre mim. Ela me abriga a usar permanentemente um guarda chuva aberto, mesmo dentro do apartamento.

Caminho devagar, entre os dias e as noites. São seis aparelhos de televisão ligados, cada um em um canal. Oito rádios sintonizados nas oito maiores capitais do mundo que enchem a casa de um barulho estéril de Mandarim, Russo, Árabe, Japonês, Hebreu, Grego, Inglês e Italiano. Tenho dois sois, um amarelo e outro castanho, que se reflete em um jogo de espelhos, que dependurei entre a cômoda e a estante cheia de bíblias sempre movimentadas as suas paginas por um amontoado de ventiladores, que mantem a temperatura da sala quase meio grau abaixo de zero.

Caminho devagar entre as esculturas Maias e Incas que coabitam comigo na sala, entre cabeças empalhadas de orangotangos e chimpanzés. Por isso perco com facilidade meus chinelos. E quando vou pé ante pé para o local em que guardo meus discos e os ponho na vitrola em trinta e oito rotações por minutos rangem as tabuas do assoalho.

Fazem dueto com os estalos de minhas articulações, quase enferrujadas. Ouço Mario Lanza em um dueto estranho com minhas próprias barulheiras. Abro as janelas muitas vezes e o ar de fora bate na minha própria umidade e volta criando um pequeno ciclone que apelidei de “Equadorzinho”.

Um dia lendo uma das dezenove Enciclopédias e fazendo cálculos com uma régua fisiogeográfica percebi que os trópicos de Câncer e Capricórnio cruzam-se aqui, talvez por isso, este prurido que me castiga determinados dias do mês, e que me fez ficar amigo de uns pelicanos, que também se coçam.

Eles pousam na janela, aquela que abre para a Avenida Ernestino Borges, em alguns dias do mês. Comecei a morar aqui quando fiquei viúvo. Ela morreu e deixou um enorme vazio que preenchi com garrafas de Rum e desenhei sua silhueta.

Para formar o par de peitos foram necessárias mais de cinqüenta garrafas. Era uma mulher abastada que deu-me dezoito filhos e pretendia dar-me mais se não se houvesse tocado fogo lixando tanto as unhas. Quando fiquei só pretendia mudar-me o mais cedo possível, mas a amizade com as águas vivas do lago do Ibirapuera e a admiração pelas borboletas do Pacoval foram prolongando minha estadia.

Hoje sou parte deste Quadro. E olhando a pintura de um quadro feito por Salvador Dali, dependurado no vão entre a porta do nosso quarto e o inicio da escada que nunca subi, nem sei aonde vai dar. É que percebo que envelheci.

Não tenho mais vontade para trocar de roupa e agora me cubro, com pelos espessos e longos cabelos, que pouco molho, mas estão sempre úmidos.

Como muito pouco e durmo quase nada. Quando a saudade aperta abraço-me a imagem dela feita de garrafas e assim fico por um tempo.

O que tem me cortado demais o peito e o púbis. Mas eu não ligo. O que me incomoda são os filhos. Estes que estão empalhados pelo corredor entre as cabeças empalhadas de Orangotangos e Chimpanzés.

Amanha irei para Osasco aonde enterrarei o Quadro.

* Do livro de Contos Antena de Arame – Rumo Editorial II Edição – São Paulo – 2017.

Os desfiles de setembro – Crônica porreta de Fernando Canto

Crônica de Fernando Canto

Machado de Assis dizia: “há certas memórias que são como pedaços da gente, em que não podemos tocar sem algum gozo e dor, misturas de que se fazem saudades”. Então saudade é uma lembrança boa, algo que queremos apalpá-lo para provar que vivemos, é desejo legítimo de recordar cenas episódicas, reviver aqueles instantes mesmo sabendo que o filme acaba.

José Penha Tavares, meu saudoso pai,em desfile pela banda do Colégio Amapaense.

Mas se um acaba outros começam. E essa legitimidade de penetrar no passado por certo suscita o intangível e apura a virtualidade do sonho. Os olhos riem de satisfação quando os rostos suados dos adolescentes enfrentavam o sol da manhã de verões duros que o vento do Amazonas amenizava. A fome, a sede, qualquer pendência se resolveria depois do desfile. O importante era o garbo e o compromisso de passar na frente do palanque da Avenida FAB, onde cabiam as autoridades e suas famílias. Mal sabíamos, na nossa santa ingenuidade, que da cabeça daqueles homens não só irradiava o sentimento de amor pela Pátria, mas também a satisfação de verem milhares de pessoas reunidas ali para apreciarem suas mãos de poderosos. E entre galardões e medalhas, sob o pálio, davam o circo ao povo.

Acordar às cinco da manhã para tomar café, vestir a farda de mescla azul (engomada cuidadosamente pela mãe na noite anterior), luvas e polainas, sempre dava nervoso. Afinal, um desfile era uma estreia, e valia pontos na eterna disputa intercolegial. Nós do Ginásio de Macapá levávamos certa vantagem porque tínhamos a banda do Mestre Oscar Santos que interpretava hinos patrióticos magnificamente, inclusive dobrados de compositores locais, como “O Artífice” do saxofonista Cícero Melo. Ao chegar ao ginásio mais um reforço de café, pão e o famoso leite “peidão”. A caminhada para a concentração, o constante corre-corre dos inspetores e professores, que entre apitos estressantes e gritos de ordem tentavam organizar os pelotões. Mas só depois das oito, quando se encerravam as solenidades de hasteamento do Pavilhão Nacional na Praça da Bandeira é que o desfile iniciava. Não sei quem passava por primeiro, se os militares ou os colegiais, pois a gente, os mais altinhos da “turma da graxa” só queria mesmo mostrar que havíamos ensaiado bem e que nosso uniforme era impecável, bem como o garbo que caracterizava os estudantes do GM.

É certo que vez por outra um aluno perdia o casquete azul na marcha contra o vento, mas jamais perdia a pose. Depois vinha a compensação pelo belo desfile: um refrigerante com a família, uma conversa com colegas de turma, uma volta pela praça no rescaldo dos acontecimentos e, quem sabe, um encontro tímido com a linda morena de olhos graúdos do colégio rival. Os olhos abaixados, porém cheios de paixão, corriam furtivos sob o sol do equador, num quase equinócio de desejo pela moça. Os rostos vermelhos de calor e agonia, a vontade de tocar naquelas mãos de anjo e a realidade da presença dos pais e irmãos que a conduziam para casa. Um último olhar para trás, todavia, parecia o convite para um encontro que se realizaria, talvez, num domingo qualquer na segunda sessão da tarde do cine João XXIII, ou em frente ao velho Macapá Hotel.

As paradas de Macapá dos anos de Território Federal trazem mesmo essas lembranças tão férteis como o solo que adubamos para fazer nascer o que queremos plantar. Mesmo com o amor por esta terra “pegando de galho”, como foi meu caso, o passado das manhãs de setembro não é feito de fotografias guardadas num álbum confeccionado na Imprensa Oficial pelo Sabá Ataíde. Continua sendo um filme de moto perpétuo, que apanho sempre na locadora da vida quando quero espantar a tristeza e reencontrar um mundo tão bom que eu nem sabia.

Ora, o mesmo Machado também diz com sabedoria que saudade não é nada mais que uma ironia do tempo e da fortuna. Para mim, nessa ironia, cabe a sorte de vivermos as alegrias e os perigos da memória, posto que relembrar com saudade só é saudável se valeu à pena não nos arrependermos de nossas ações.

*Fotos do acervo das jornalistas Alcinéa Cavalcante e Graça Penafort

PREFÁCIO – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Nunca pensei em escrever um livro de contos. Ainda mais com este colorido criado com esta “Tinta Mágica” escorrida das pinceladas de Salvador Dali. Mas escrevi.

Colhi fragmentos escutados na minha infância e pré-adolescência em Macapá.

Juntei personagens e resíduos de acontecimentos e os fui reciclando, preenchendo os vagos com personificação à semelhança do surrealismo.

Ele pronto! Fui ao título, que tomei emprestado do conto “Antena de Arame”.Posto o ponto final. (Nunca se coloca o ponto final)

Para revisioná-lo sentei à mesa de um restaurante em Osasco denominado Frangão e bebi um pouco, reli os contos, e aguardei que chovesse para depois ir embora. Em pouco tempo um rio formou-se pelas ruas adiante ao local que eu estou. Quiçá mais um pouco talvez passe uma canoa tipicamente Amazônica, botos, mutuns, atuns…

Imaginei abstratamente.

Porem distrai-me observando uma mulher e o cão com esforço atravessarem a corrente, e por fim irem-se juntos com a lua e a outra mulher que empurrava com uma vassoura velha um resto de luar para debaixo do tapete.

Comigo estavam as paginas, e alguns comentários de amigos sobre o livro.

Deixei todo este material sobre a mesa e fui ao banheiro atirar fora resíduos líquidos da cerveja sorvida.

Quando voltei, os Contos haviam sumido, estava vazia a mesa. Indaguei ao Garçom. E meus papéis? Os que estavam sobre a mesa. Os contos?

Ele deu-me o troco e se afastou com um meio sorriso. Contos!…Ah! Contos…Achando que eu tinha me embebedado muito rapidamente. Passou um pano limpo e seco sobre a mesa que ficou todo sujo de letras.

Foi ate a Tv e deu duas pancadas ao lado do aparelho visando melhorar a imagem da chuva, da canoa, da mulher, e da lua.

“O que falta aqui é uma Antena de Arame!” – gritei. Para ninguém.

Em seguida levantei para ir embora achando que ele me parecia um dos Personagens dos meus Contos.

Chamei bem alto: “Bebeçudo!” Nem a voz saiu, nem o garçom voltou.

Sóbrio e só. Atravessei a rua, e mergulhei apressado no chão, no vão da calçada, atrás de um monte de formigas, que ali entravam, carregando consigo as páginas que eu procurava.

Não chovia mais.

* Prefácio em forma de Conto como Narrativa no Livro Antena de Arame – Rumo Editorial – São Paulo – 2016

A MAÇÃ E AS ESCOLHAS (crônica de Dia dos Pais de Fernando Canto )

Por Fernando Canto

A primeira vez que comi maçã devia ter uns doze anos. Até então só ouvira falar dela pelos relatos bíblicos ou através de revistas que a mim chegavam eventualmente na escola ou na Biblioteca Pública. Lembro como se fosse hoje minha mãe repartindo a fruta que meu pai trouxe da sorveteria onde trabalhava à noite, após dura jornada de trabalho como funcionário público. Não sei como, mas ela a cortava em sete pedaços, pois esse era o número de filhos que os dois tinham, todos ainda crianças. E ainda hoje cada um deles certamente guarda em sua memória o gosto e o cheiro da maçã como a lembrança do amor que nossos pais nutriam por nós enquanto viveram.

Simbolicamente a maçã representa o fruto da Árvore da Vida ou da Árvore do Conhecimento do bem do mal: conhecimento unificador que confere a imortalidade, ou conhecimento desagregador, que provoca a queda. Mas há inúmeras interpretações. Aquela, por exemplo, em que cortada em dois, no sentido perpendicular, se encontra um pentagrama desenhado e por isso representa o saber; e aquela que simboliza a eterna juventude.

Para Paul Diel (1966) ela significa os desejos terrestres. “A proibição de Jeová alertava o homem contra a predominância desses desejos, que o levavam rumo a uma vida materialista, por uma espécie de regressão, opostamente à vida espiritualizada, que é o sentido de uma evolução progressiva”. O autor diz ainda que “A advertência divina dá a conhecer ao homem essas duas direções e o faz optar entre a via dos desejos terrestres e a da espiritualidade. A maçã seria o símbolo desse conhecimento e a colocação de uma necessidade: a de escolher”.

Na verdade todos nós escolhemos. No dia-a-dia decidimos o que queremos e o que não queremos face às maçãs dos desejos e estímulos que a serpente mídia nos oferece desde que acordamos até a hora de dormir. Se não escolhermos alguém decide por nós, num processo repentino de acomodação que concordamos pelo cansaço.

Não caberia só isso na simbologia da maçã: ela está mesmo ligada á ambição, à desobediência, à astúcia do mal e à expulsão do paraíso, sem contar que a história de Adão e Eva serviu para estigmatizar na humanidade o mito da mulher curiosa e traidora.

Ser expulso do Éden significa percorrer caminhos tortuosos, o resultado da escolha de comer a fruta da Árvore da Vida ou do Conhecimento do bem e do mal. Significa também experimentar o outro lado da liberdade, aquela em que o sofrimento e o trabalho de se sustentar é o produto da dignidade humana, da obrigação de suar para merecer a comida e o sono. Quer dizer também que uma escolha dessas possibilita fazer a diferença entre os indivíduos, que vivem em sociedade, mas competem; se matam e sobrevivem. Fazem sua história e propõem novas escolhas, porém sempre lembrando suas origens, aquelas que formam identidades.

A imagem de um anjo munido de uma espada expulsando nossos avôs primordiais trajando folhas de parreira do Jardim do Éden, não só é o símbolo do abandono como a lembrança de que nós muitas vezes nos expulsamos interiormente quando achamos que erramos em nossas escolhas. É possível que essas escolhas, pelas quais optamos na vida, se deem em razão de múltiplas oportunidades que nos chegam e nos “oprimem”. Optar às vezes pelos “desejos terrestres” ao invés da espiritualidade me parece ser necessário, embora tenhamos que buscar na essência das coisas, algo de deidade, algo que transcenda e nos faça pensar e acreditar que somos mais que isso.

Fico a pensar que quando meu pai levou a fruta do pecado para conhecermos não foi só um ato de amor corroborado por minha mãe. Foi, talvez, uma metáfora da escolha que teríamos de fazer pela vida. Não apenas entre matéria e espírito, mas entre ser ou não ser, o que chamamos hoje de bons ou maus cidadãos. Obrigado, pai.

DALILA – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ela deixou-me em 1947. Foi embora com um Prussiano com imensos bigodes e uma farda cheia de insignias por várias Bravuras, e outras Medalhas de Honra ao Mérito. A perna direita cicatrizada de fraturas provocadas por estilhaços de granadas alemãs encurtara, coxo… este herói do front da Criméia a arrastou consigo, herói viciado em açaí e pupunha.

Eu embarquei para Lisboa. Ali no cais do Porto, com os dentes sujos de tapioca e broa de milho, fui para lá, morar.

Lá aprendi a arte de fazer pão, roscas, doces e salgados, bolo de cenoura, bolinhos de chuva crocantes, recheados de nozes e avelãs.

Não demorou muito para o negócio prosperar e eu então fui ao cais contratar uma cozinheira.

Acabei trazendo comigo uma natural de Angola experiente em defumar peixe, cozer frutos do mar e desidratar frutas para o confeito de bolos e roscas.

Ela não falava Português.

Mas nos fomos nos adaptando um ao outro até que passamos a dormir juntos.

Meses depois ela apareceu com uma grande inflamação que em vão tentou curar com asseios íntimos de hortelã, permanganato de Sódio, e vinho branco.

Temperou-se muito, não resistiu e faleceu.

Fiquei novamente só.

Com uma pequena cadela, a quem dei seu nome…Dalila!

Desafeiçoei-me ao trabalho.Passava horas e horas no cais.Olhando as Gaivotas voando e pescadores tecendo redes.Foi assim que de uma feita, uma brisa marinha trouxe em si do Vietnã um pó amarelo que me cegou. Não suportando a dor, ao pressentir que eu não mais lhe podia ver, Dalila segurou na boca um balde cheio de pedras que eu usava como lastro para minha linha de pescar e atirou-se ao mar, afogando-se.

Passei semanas até dar por sua falta.

Comecei a beber, ia aos bares do Porto, amanhecia por lá.

Para ganhar alguns trocados, passei a ler as mãos dos marujos chineses,jamaicanos,haitianos,latinos,indus, entre eles a mão de um certo Che Guevara, fascinado por Marco Polo…onde havia desgraças eu lia esperança…onde havia desespero, eu falava de amor.

Fiquei famoso, não cobrava…mas recebia muitos presentes…Caixinhas de Música de Xangai, Perfumes finos de Paris, Correntes de Platina, Cordões de Ouro Branco,e Temperos exóticos da Índia.

Deixei crescer os cabelos, o bigode, as unhas dos pés, e das mãos, pintei-as de Carmim, e cobri-me de Seda, calcei altos tamancos, e criei uma Santa.

Um certo dia recebi um casal, que havia ouvido falar de mim. Estavam finamente vestidos. Ele tinha vindo curar sequelas de ferimentos adquiridos na segunda Guerra Mundial. Ela apenas o acompanhava.

Pelo perfume a reconheci ,mas fiz de contas que não.

Creio uma imã com apetrechos retirados de um antigo motor de um navio naufragado no canal marítimo da cidade, bezuntei inteiro o corpo dele, com extratos de Benzoato de Benzila e passei a imã em seu corpo, até que enchi um copo de vidro de estilhaços metálicos.

Eles foram embora felizes, não sem antes me doarem como pagamento, um baú repleto de moedas de Ouro, e dobrões de Prata.

Tomei para mim, o nome, de Al Shair Sefet e fui morar nas montanhas, com dezoito escravas, um casal de elefantes, e duas jiboias .

Mais tarde soube que ele dera fim a sua vida, e que após a retirada dos metais tornara-se lento, sonolento, lerdo e inconstante , por fim desgostoso demais,desejava a morte.

Até que uma noite conseguiu beber todos os estilhaços com dois copos de vinho.

Em Abril, acordei com ela gritando por meu nome.

Nua sob o luar.Os seios trêmulos. Lânguida. Cheia de desejos. Aflita invadiu, a Grande tenda colorida, pisando sobre as brasas semi acesas, sobre os animais descansando na areia.

Queria reiniciar a vida de prazeres, e ter felicidades.

Exatamente como eu.

Como não reconhecia mais vultos a estraçalhei entre os elefantes achando que estava sendo atacado por ferozes abutres.

Dormi ao relento, ouvindo o vento, que me contou que Dalila voltará.

Como me afastara muito.

Ate hoje caminho em círculos. E nunca consegui voltar.

* Do livro “Anais” – X Jornada Nacional da Sobrames – São Paulo – 2019.

As recordações, os cheiros e o gosto dos sábados em casa

Ir à feira dia de sábados é andar pra trás na linha do tempo e visitar uma época gostosa que levarei para sempre em meu coração. Lembrar do papai e mamãe saindo cedinho para a feira, de mãos dadas, sacola de náilon, ele de bermuda, camisa de botão e sandálias nos pés, ela, de saia e camisa florida ou com a imagem de Nossa Senhora ou vestido. Atravessavam a ponte que liga a Mãe Luzia com São José com a maestria de quem já andou muito em cima de madeira no interior. Voltavam com sacolas de peixes, carnes, verduras, e iniciavam o ritual de sábado: temperar comida para semana toda, som ligado com chorinho, de vez em quando papai interrompia o corte da carne e a mamãe a mistura de temperos para dar uma “rascunhada” pela cozinha.

Como bons ribeirinhos, eles estavam acostumados com peixes, e diferenciavam só de olhar, o pescado novo do moído. Papai foi pescador, e navegou muito atravessando o Amazonas em barco à vela do Bailique até Belém, com a embarcação cheia de mercadorias, ou com o carregamento de madeira. Para ele o rio não tinha mistérios, e conhecia todos os peixes da região, e deles falava com detalhes que deixavam a boca com saliva. Eram estes pescados e mariscos escolhidos com zelo que embelezavam nossa mesa, especialmente aos sábados.

Meu olfato foi treinado para o cheiro de sábado, mais do que dos outros dias da semana, é o que mais faz falta, eles estimulam as recordações e permanecem em minha memória. Cheiro da comida, da caipirinha do papai, do vinho da mamãe, das frutas do quintal, da limpeza feita na casa com capricho, da cera cachôpa ou cardeal passada no piso, do óleo de peroba nos móveis, da carne assando no fogareiro, mujica de camarão, da banana frita, mingau de banana e de tapioca, as coisas de sábado, que até podiam ter outros dias, mas no sábado era feito diferente.

Papai temperava muito bem, mas mamãe cuidava de peixe e carne como ninguém, seu tempero era inconfundível, e o cheiro de sua comida ficava na casa toda e atravessava os muros, fazendo inveja em quem sentia o odor de comida caseira. Fomos acostumados a comer de tudo em casa, de peixes do mato à vísceras, de caça à carne de primeira. Dificilmente comíamos comida congelada, até o frango era abatido em casa, assim como o porco, que também criávamos no quintal. Tudo era muito saudável, a comida sempre fresquinha na nossa mesa, por preferência deles. Mamãe gostava mais de urucum do que colorau, a pimenta ela trazia em grãos, e em casa batia em um pano, torrava no fogão e eu passava espirrando pela cozinha, porque o cheiro dava cócegas no meu nariz.

E os sábados seguiam assim, até a hora do almoço, quando a mesa ficava linda de tanta gente de casa, que vinham comer a comida da mamãe, cozida no fogão ou na brasa, era um entra e sai que se estendia até de noite, porque invariavelmente o almoço emendava com o lanche e a janta. Quando papai comprou o Santa Maria, final dos anos 80, esses costumes de sábado passaram para nosso paraíso, com direito a banho de igarapé e horas de alegrias, união e felicidade da molecada e dos adultos. Era uma carinhosa confusão de redes, moleques atentados, gritaria e muitas, mas muitas gargalhadas. Estas lembranças estão tatuadas em meu corpo e alma. Acho que nossos filhos nunca irão esquecer dessa época, e sinto pena de nosso netos, que não viveram esta experiência de passar dias no meio do mato, brincando de caçar, pescar, jogar bola, alimentar o gado e as galinhas, colher verduras e comer frutas tiradas na hora.

Sempre que posso vou aos sábados na feira, aquecer a saudade. Não aprendi a diferenciar peixe fresco do moído, infelizmente não herdei a aptidão para a cozinha, e mesmo que tivesse facilidade, nunca iria fazer o tempero da mamãe, aquele gosto inconfundível, que não senti mais. A casa não fica mais com o cheiro das comidas e dos costumes da sábado, às vezes eles me vêm do nada na cabeça, já acordei no susto sentindo o gosto do passado e com o nariz empesteado do cheiro da nossa casa, principalmente aos sábados. É nesse dia que eu paro em casa e a saudade aperta o peito e escorre pelos olhos. Sinto uma enorme saudade de nossa vida aos sábados, da casa com quintal e desse depois da reforma que concretou nosso espaço, mas que nunca deixou de ser um local de afeto e reunião da família e amigos.

Mariléia Maciel