Das brincadeiras com copo (@MarileiaMaciel )

Por Mariléia Maciel

Entre as inúmeras curiosidades da infância, uma matei na adolescência, mas confesso que a bisbilhotice me deixou noites com os olhos acesos e a consciência incomodada. Sempre quis ter certeza se de fato os fantasmas das histórias e filmes existiam e se os espíritos que não iam nem pro céu nem pro inferno, podiam vagar entre nós. A chance de tirar as dúvidas apareceu quando eu, ao ler uma revista de adolescente, encontrei a carta de uma leitora contando suas experiências com um copo que chamava espíritos. Era o que faltava pra eu resolver a questão, e de quebra, ainda saber coisas de meninices.

Reuni as vizinhas da rua e propus seguirmos a receita citada com detalhes na publicação Carinho, elas, claro, movidas pela mesma curiosidade, aceitaram. Era simples: pedaços de papel em círculo com as letras do alfabeto, dois papéis com as palavras SIM e NÃO, um copo vazio virado pra baixo, orações, concentração e lá vinha um espírito andar no círculo e responder nossas enormes preocupações de garotas namoradeiras e estudantes, vida tão despreocupada que o mais importante era chegar domingos com as missas e tertúlias.

A maioria de nós estudava de tarde, então a experiência começou em uma manhã, após papai sair pro trabalho e mamãe para as compras diárias no Santa Teresa e Cobal. Seguimos as orientações e pronto, começou a sessão em que o medo era destruído pela curiosidade. “Tem alguém aí?”. E o copo se mexeu e enchemos o pobre do espírito de perguntas. “Vou namorar com fulano?”, “cicrano me ama?”, “vou passar em matemática?”, “papai vai descobrir que namoro?”. E passamos o tempo atrás de resposta cruciais para a nação, até que deu a hora possível da mamãe voltar pra casa e encerramos a sessão.

Não demorou a notícia correu e o minúsculo grupo que cabia no quarto que eu dividia com minha irmã ficou pequeno, e fomos obrigadas a brincar com os espíritos em outros espaços maiores e onde os pais não se importavam, inclusive alguns até participavam. Fascinadas com a descoberta, todos os dias tinha reunião e éramos muito solicitadas. Cada dia tinha uma novidade. “Sabia que o espírito disse que a vizinha vai ficar grávida?”. “O pai da colega está traindo a mãe, o copo disse que sim”. E algumas de nós não fazia nada sem antes consultar os espíritos que tudo sabiam.

Foi no auge da farra que nosso canal de comunicação direta com o além acabou. Como acontecia todo dia, esperamos, em agonia, mamãe sair. Das venezianas e janelas das casas da rua, olhos à espreita aguardavam que ela subisse a ladeira para que povoassem meu quarto. Os papeizinhos, bastante amassados por causa do uso constante, mais uma vez foi para o centro do círculo junto com o copo, e a sessão começou. Mas aconteceu um imprevisto, e mamãe resolveu voltar antes, e concentradas que estávamos, não ouvimos o portão.

Fomos pegas pelo susto quando a maçaneta do quarto girou e foi moleca pulando pra cima das camas, querendo se esconder no guarda-roupa, enquanto eu e minha irmã só pensávamos no que dizer pra mamãe e onde esconder tudo. Mamãe batendo na porta e nós, naqueles segundos em que temos que tomar decisões, empurramos os papéis e o copo pra baixo do guarda-roupa e, com o coração na mão e uma resposta na ponta da língua, abrimos a porta. Entre bom dia, dona Maria e desculpas esfarrapadas, todas saíram pálidas de casa e ficamos, eu e minha irmã, respondendo as perguntas da mamãe. Não lembro o que dissemos, só sei que ela não acreditou. Óbvio.

Passaram dias, semanas, talvez dois meses não deixávamos a empregada limpar o quarto, fazíamos nós mesmas sem mexer embaixo do guarda-roupa pra não sermos descobertas. Dois medos, da mamãe descobrir a verdade, e de saber que o espírito que foi jogado pra baixo do móvel ainda estava no quarto. Rezava pra que ele fosse embora e jurava nunca mais fazer aquilo. Em um sábado, dia de faxina, reunimos coragem, e entre as teias de aranha acumuladas puxamos com cuidado o copo pra que ele não virar quando passasse nas emendas das lajotas. Montamos a círculo de alfabeto, colocamos o copo no centro com nosso dedo em cima. Concentração.

“Tem alguém aí?”. Contra nossos pensamentos mais positivos e com a certeza de que nossos pedidos aos céus não foram aceitos, nem as promessas levadas em consideração, vimos o copo preguiçosamente se arrastar no chão procurando o SIM! O quê? Quer dizer que o espírito que era nosso oráculo e depois motivo de temor, ficou todo aquele tempo nos fazendo companhia no quarto escutando e vendo o que fazíamos? Foi então que caiu a ficha: preferível morrer de curiosidade, que de susto por mexer com quem tá quieto.

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