DE QUE MORREU LÁZARO? – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Olhou os dois camelos no chão, lado a lado, babando e estrebuchando, como se picados por cobra. Mas ali, não havia cobras. Adiante, os demais que ele separara de manhãzinha estavam moribundos. Puxou a barba até sentir dor. Era assim que fazia quando muito preocupado. Com esses, já eram seis animais que adoeciam e morriam sem que ele pudesse fazer alguma coisa. Um deles era de Madalena. Nem havia contado para ela. Há dias não via a irmã. Estava apaixonada pelo novo profeta. Andava por toda a Galileia seguindo Nazareno.

Abaixou-se próximo aos animais e fez-lhes beber a infusão que preparara. Ficou apertando os focinhos até que engolissem. Estava sozinho. Todos tinham ido ouvir Nazareno, inclusive sua mãe que fazia oferendas de animais vivos ao Bezerro de Ouro do Templo. Partira com suas irmãs para ouvi-lo pregar.

Afastou-se dos animais, entrou na cabana e deitou-se. Pensou na possibilidade de Nazareno saber um remédio para curar a doença dos camelos e, assim, fazê-los sarar. De uma feita, encontrara o junto com seus seguidores em uma festa de casamento. Pareceu-lhe um homem despojado, apesar da grande fama de profeta. Madalena, em determinado momento, o pegou pela mão e levou-o até onde estavam sentados.

“- Este é Jesus.”- disse. Abraçou-os, como costume da região, mas não ficou entre eles. Soube que a certa altura da festa faltara vinho e ele enchera os tonéis com água e a transformara em vinho. E dos bons, pensou, lembrando se de como saíra da festa. Fora levado, como um menino, pelas mãos de Marta. O engraçado era que toda a vez que se lembrava de Nazareno, era invadido por uma sensação estranha, como se ele estivesse próximo. Podia sentir um cheiro de alfazema, contrastando com o cheiro de camelo que sentia em si mesmo. Passou a mão na cabeça. Suava muito. Estava calor, mas sentia muito frio. Puxou a pele de cabra aos pés por cima do corpo e enrodilhou-se todo. Quando amanheceu de novo, um cheiro fétido veio lá de fora. Com certeza os animais haviam morrido. Tinha que se levantar e enterrá-los. Logo seus corpos atrairiam os abutres. Sentiu que não tinha forças. Olhou para os pés inchados, sentiu a boca seca, e o corpo cheio de nódulos. Estava doente assim como os camelos. Esforçou-se para chamar alguém. Porém estava só. Pensou gritar por Madalena. E gritou em pensamento bem alto!

Dias depois, apreensivas, elas de longe avistaram o redemoinho dos abutres sobre os animais. Os dois camelos sobreviventes deitados moribundos sedentos. E dentro da cabana estava Lazaro. Semi coberto. Hirto. Morto. Devia estar assim há mais de três dias. As feridas já estavam cheias de vermes. As mulheres se desesperaram. Quem as iria sustentar? Mantinham-se pelo trabalho dele no trato com os animais. Trabalho de homens.

Madalena tomou de volta a trilha. Tinha que encontrar o Nazareno e convencê-lo a ver Lazaro. Já o assistira erguer os aleijados, aprumar os tortos, dar luz aos cegos, fazer ouvir os surdos. As outras mulheres ficaram umedecendo Lazaro com óleos numa tentativa inútil de amenizar o ressecamento que lhe apergaminhava. Ela o encontrou na casa de um dos Escribas que lhe dera pernoite, sem cansar de ouvir admirado as palavras que saiam de sua boca. Os guardas levaram Madalena até o interior da casa. Madalena contou o que se passara com os animais e com Lazaro.

“- Descanse um pouco.” – disse-lhe. “- Logo vamos.” Deram-lhe água fresca e alimentos. Partiram antes da quinta hora. O Escriba fez questão de ir. Seguiu com um séquito de mais de trinta empregados. Andaram rápido, porque Nazareno, acostumado a caminhar longos trechos, andava a passos largos. Ao se aproximarem, podiam sentir o cheiro forte dos animais. As mulheres tinham jogado terra sobre eles sem, contudo, enterrá-los. O escriba derramou óleo perfumado sobre as vestes antes de descer na porta da cabana. As mulheres se afastaram e Nazareno sentou-se ao lado de Lazaro que estava escurecido, todo molhado de óleo, encolhido em torno de si. O escriba e todos os outros com panos na mão cobriam o nariz. Ele olhou Lazaro coberto da cabeça aos pés, colocou seu rosto sob a pele de cabra que o cobria e o chamou soprando em seu ouvido, como se lhe contasse um segredo. Um vento trouxe uma poeira fina do terreno ao redor que encheu o cômodo. O cheiro fétido sumiu e surgiu um cheiro de alfazema, estranhamente, vindo do quintal junto com a fina poeira que invadiu o lugar onde estavam. Lazaro continuou a gritar por Madalena. Era como se estivesse com a boca cheia de tâmaras e vinagre em um tempo só. O pior é que tudo estava longe e perto ao mesmo tempo e o olhar parecia olhar e não entender o que olhava. Tudo parecia galopar rapidamente em seu pensamento de frente para trás. Foi ficando mais forte o cheiro de alfazema e quando abriu os olhos, sentiu a presença dele ao seu lado.

Antes de olhar seu rosto, sabia que ele ali estava presente. Abriu os olhos. Ele realmente estava sentado ao seu lado com a cabeça encostada ao seu ouvido. Não o ouvia falar nada. Era como se o chamasse, sem dizer, uma palavra. Logo pensou. Estava surdo! Olhou espantado a multidão. E o que fazia ali toda aquela gente? Até um escriba em sua casa? Olhou para Nazareno, parecia que repetia seu nome, mas não percebia mexer os seus lábios. Os outros movimentavam a boca pareciam dar graças aos céus, aos gritos. Mas ele não escutava suas vozes, só enxergava suas bocas em movimento, seus pescoços túrgidos e suas mãos erguidas. Madalena veio em sua direção. “- Minha irmã!” – falou, mas nenhum som saiu. Estava mudo!

Nazareno levantou se do seu lado e foi em direção a porta. Os outros se ajoelharam. O escriba tomou sua mão e a beijou. Sua mãe e suas irmãs e os outros saíram com ele. Pareciam tão felizes… Sozinho, Lazaro tentou se erguer, mas estava muito cansado parecia ter caminhado muitos dias sem beber e sem comer. Pensou nos animais lá fora. Se Nazareno houvesse chegado antes teria ensinado uma poção para curá-los.

As pessoas foram se afastando no caminho de volta a Vila de Karfun. Porque tinham vindo ter com ele até sua casa? Pensou consigo sem entender nada. Enquanto levantava cambaleante em direção ao poço de água, ouviu o barulho dos camelos agora curados.

*Conto do livro Antena de Arame – Editora Rumo Editorial – 2ª Edição (2018) – São Paulo – Brasil.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *