DESTEMPO – Conto de Lulih Rojanski

Conto de Lulih Rojanski

Era a primeira vez em muitos anos que eu não via Florentino Ariza* sentado sob a acácia da praça, que eu não pensava em Florentino Ariza. A manhã havia parado de correr às oito horas, cristalizada em um tempo imóvel, no ar inerte, no súbito silêncio do trânsito e dos cachorros que suspenderam a travessia da faixa de pedestres para olhar em direção às nuvens, pressentindo a imobilidade do tempo. O mendigo errante, que naquele dia morava no canteiro, ouviu a tristeza das raízes das papoulas sob a terra há dois meses sem chuva. Uma menina que viera de longe para assistir ao sol dos trópicos, com sua pele morim e sua sombrinha floral, paralisou-se atenta ao céu, espremendo entre as pálpebras o azul juvenil das íris.

Pelo tempo que durou o destempo. Passaram-se minutos que podem ter sido horas, que podem ter sido dias, meses, qualquer medida oficial de tempo, quando a manhã voltou a correr. Mas os relógios nos pulsos, nos bolsos, nos painéis ofuscados pela claridade das oito horas marcavam ainda oito horas. Foi quando os cachorros prosseguiram a travessia, o mendigo moveu o silêncio em direção à menina de sombrinha floral, que por sua vez apressou o passo atrás das borboletas que sobrevoavam as papoulas. Somente Florentino Ariza não voltou a aparecer sob a acácia. Foi necessário o destempo para apagar minha lembrança de Florentino Ariza.

*Personagem de Gabriel García Márquez em “O amor nos tempos do cólera”
**Conto publicado no livro Gatos Pingados

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