Discos que Formaram meu Caráter (Parte 46) – “Sobrevivendo ao Inferno” – Racionais MC`S (1997) – Por Marcelo Guido

Por Marcelo Guido

Muito bem moçada esperta!

Estamos de volta da batalha, andando vagarosamente pelo caminho torto das notas, rifs e viradas. A nave louca do som está presente novamente para tentar salvar a vida de vocês do tédio minguante que a vida adulta traz. Por menos normal que pareça, venho de longe com esta digníssima bolacha…

É com muita honra que apresento a vocês:

“Sobrevivendo ao Inferno” – segundo álbum dos caras do Racionais MC’s.

Por favor, todos de pé.

Corria o ano de 1997. No Brasil, o rock nacional estava em alta, com o Planet Hemp, O’Rappa, dentre outros, seguindo o caminho que os Raimundos tinham aberto nas rádios e nas grades de TV. A MTV Brasil fazia o seu papel muito bem, apresentando bandas que caíam no gosto da juventude; os medalhões do Rock Nacional, pareciam ter reencontrado o tesão para fazer discos bons. Realmente, o clima estava muito legal.

Dentro deste contexto, a molecada com a mente aberta começa a experimentar outras vertentes e o movimento musical brasileiro começa a abrir os olhos para outros conceitos e algo quase esquecido nos anos 80 começa a sair das cinzas: o Rap pede passagem.

E assim a galera do Racionais MC`S apresenta seu segundo disco de estúdio. Na batalha desde 1989, Mano Brow, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue já tinham mostrado ao que tinham vindo, com o espetacular “Raio X do Brasil” de 1993, e hits como “Fim de semana no Parque” e o clássico “O Homem na Estrada” já tinham caído no gosto popular e era difícil alguém naquela época que não conhecesse pelo menos um verso dessas duas bombas.

O desafio para o segundo disco era algo que não assustava os caras do Capão Redondo. Com certeza havia muito o que falar ainda, os temas recorrentes de uma realidade miserável que muitos eram testemunhas no dia-a-dia.

A denúncia presente nas letras deste disco, vem de encontro com a imagem que o Brasil vendeu durante muito tempo; ter a pobreza como enredo, o racismo que é mascarado em nossa sociedade, a truculência policial e vida ceifada de milhares de jovens – em sua maioria negros ou pardos. Realmente a nossa sociedade tinha mesmo que engolir esse disco.

Afiados como lanças, os caras não se comediam em mostrar seu descontentamento com a situação social brasileira, o abismo crescente entre ricos e pobres, onde a maioria sucumbe a uma realidade que sempre favorece a uma pequena parcela, as classes A e B tinham que escutar o grito que vinha das massas periféricas e o Racionais tomaria a cena na marra, mais uma vez.

Com letras que mostravam a verdade de um país desigual, onde o sol brilha para poucos, onde o Apartheid social é uma política extraoficial do estado, mas acaba sendo a realidade de uma maioria.

Sem mais delongas, vamos esmiuçar esta obra prima da música brasileira:

O disco começa a todo vapor com “Jorge da Capadócia”, resgatando esse clássico do Jorge Ben Jor. “Genesis”, litúrgico, uma introdução na voz de Mano Brow. “Capítulo 4 Versículo 3”, a ressureição da fúria negra, o dia comum na quebrada, a luta diária pela sobrevivência em uma dura realidade, o esforço para se manter bem e um lugar onde o fracasso é comum e sempre esperado. “Tô ouvindo alguém me chamar”, história de Guina, alguém que era parceiro, professor no crime, conseguiu tudo, o sistema nos pés, mas o fim trágico que sempre o aguarda. “Rapaz Comum”, o encontro com a morte em mais um dia comum. “Instrumental”, para relaxar. “Diário de um Detento”, olhar por dentro de uma das maiores tragédias da humanidade, o massacre do Carandiru. “Periferia é Periferia (Em qualquer lugar)”, uma verdadeira viagem pelas periferias de todo país, são iguais em todo lugar. “Qual mentira vou acreditar”, uma ode ao racismo disfarçado do Brasil. “Mundo Mágico de Oz”, o singelo olhar de quem quer que sua realidade seja um sonho .

“Fórmula Mágica da Paz”, como encontrar a paz em uma realidade que não te oferece isso, um estado de guerra todo tempo. “Salve”, uma lembrança a todas as comunidades.

Putaquepariu, que disco realmente fantástico! Sem dúvida alguma, uma aula de história do Brasil. Cumpre com maestria seu serviço didático de mostrar uma realidade que infelizmente continua escondida para muitos.

Quem não conhece, além de nunca conseguir uma medalha de foda, sinceramente merece ser deitado na porrada. Ultrapassou fácil os números de um milhão e quinhentas mil cópias logo no lançamento, algo realmente foda para um disco gravado e distribuído por uma gravadora independente.

Com certeza, formador de caráter.

Conheci esse disco ainda bem cedo, no ano de seu lançamento; abriu minha mente para outras realidades e fez ser quem eu sou. A voz dos excluídos precisa ser sempre ouvida.

Musicalmente falando, um verdadeiro show de batidas e grooves, que foram harmoniosamente bem pensados para que nenhum erro fosse cometido.

É, com muita justiça, considerado o álbum mais importante de todos os tempos do Rap Nacional, virou leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp, e é literatura, pois virou livro. Sem contar que foi o presente dado por Fernando Haddad – então prefeito de São Paulo – para o Papa Francisco.

Na lista da Rolling Stone, é um dos discos mais importantes da música brasileira.

Organizado: como movimento litúrgico, te tira da bolha em que vive e te convida para uma reflexão, que pode te acompanhar para o resto da vida. Atemporal: mesmo depois de mais de 20 anos de seu lançamento, continua atual. Muitos brasileiros passaram a se reconhecer como seres humanos ouvindo “Sobrevivendo ao Inferno”

Muito obrigado ao Racionais MC’S.

*Marcelo Guido é jornalista, pai da Lanna Guido e do Bento Guido, além de maridão da Bia.

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