Doente ao contrário – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Minha última crônica aqui neste espaço (a última não! A mais recente, como diria um amigo supersticioso), tratava de médico e doença e tal. Esta aqui também. Deve ser a proximidade da morte (ou o prolongar da vida, como diria aquele amigo supersticioso que citei acima). Vamos à crônica então:

Vou ao consultório médico, me submeto aos exames de praxe e o médico saca logo o diagnóstico:

– O senhor tem uma doença muito séria!

– Sério, doutor? E qual seria essa doença?

– É um caso raríssimo, raríssimo!

– Mas é tão raro assim que o senhor não pode dizer?

– Vou dizer, mas é estranho admitir: o senhor está doente porque não tem doença alguma!

– Hein?

– Eu sei que é difícil acreditar, mas o senhor está resistindo bravamente ao assédio dessa doença que está se espalhando pelas redes sociais. Está se replicando, se multiplicando e complicando tudo! Poucas pessoas, e o senhor é um exemplo disso, estão resistindo a essa doença terrível!

Ele faz um breve suspense e dispara:

– O câncer!

Aí eu saio um pouco do meu estado de perplexidade:

– Peraí, doutor! Câncer não é uma doença nova!

O médico me olha como se já esperasse a minha reação e esclarece:

– Calma, meu amigo! Estou falando de um novo tipo de câncer!

E como se fosse o médico se transformando no monstro, ele conclui com uma voz gutural:

– O câncer da alma!

Acho que vai cair naquelas gargalhadas maníacas, esfregando as mãos. Mas isso não ocorre, o que não evita um arrepio que quase não me deixa fazer a pergunta:

– Cân… Câncer da… da… al… alma? Co… Como é… é… é isso, doutor?

– Preste atenção no bombardeio das redes sociais. Dê uma rápida olhada no Facebook. Fique somente dois minutos e verá as maiores manifestações de câncer da alma. Você vê, em tempo real, o câncer crescendo dentro da alma das pessoas.

Interfiro um pouco, só para entender que estou entendendo:

– Fale mais, doutor! Fale mais!

– Pois bem! Preste atenção, que parece loucura minha, mas é excesso de sanidade. Afinal, se há alguém certo no meio de tanta gente errada, o errado passa a ser esse que está certo. Certo?

Concordo com um movimento de cabeça. Ele prossegue:

– Veja bem: num espaço onde todos têm razão, ninguém tem razão. Onde todos estão certos, todos também estão errados. Na internet, estão cozinhando uma sopa de letras que, no final, vai dar indigestão em todo mundo.

– E tem cura?

– A longuíssimo prazo. Talvez dentro de cinco gerações, se a humanidade resistir a tanto. Talvez nunca tenha cura e pessoas como você podem ser extintas da face da Terra. Se isso ocorrer, o câncer da alma terá triunfado. Por que o câncer da alma só pode ser curado pela própria alma, que está se perdendo nas discussões rasas, nos argumentos equivocados, no aumento da futilidade, da frivolidade, da intolerância, da violência. Da falta de charme. Está entendendo?

– Estou entendendo tudo! Mas será que o câncer da alma não é o ódio?

Os olhos do médico brilham:

– Isso mesmo! Você está entendendo! E a cura é justamente essa: as pessoas precisam saber ouvir, entender, buscar o equilíbrio e encontrar o meio-termo entre suas posições!

Fico um tanto desolado porque sei da gravidade de tudo isso que o médico fala. Me sentindo um tanto bobo e, para dizer alguma coisa, arrisco um comentário que acho fora de hora:

– O quadro que o senhor pintou é muito ruim, mas sabe de uma coisa, doutor? Eu ainda tenho esperança!

Os olhos do médico voltam a brilhar, de forma mais intensa:

– Bravo! Viva! Esperança é o sintoma que confirma a sua total falta de capacidade de odiar! Isso prova que o senhor está imune ao câncer da alma, pois só quem está com a alma sã tem esperança! Se o senhor tem esperança, a humanidade ainda tem esperança, o planeta ainda tem esperança!

Concordo. Se existe um vírus benigno do qual jamais irei me curar é esse: esperança. Eu e o médico nos despedimos, vendo que a esperança de um contagiou o outro. Seria esperar muito que mais e mais e mais pessoas também se contagiem?

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *