É isso – Crônica de Ronaldo Rodrigues

Crônica de Ronaldo Rodrigues

Tenho tudo para ser feliz, mas acontece que eu sou triste. Acordei com esse pensamento, que nem é meu. Creio que seja do Vinicius de Moraes. Não vou procurar no Google. Vou resistir. Posso viver sem Google e até sem memória.

Enquanto manuscrevo, uma mulher massageia minha vasta cabeleira e pensamentos imperfeitos. Isso faz com que as ideias fluam. Pelo menos, deveria ser assim. Tento me deixar levar por isso e devo ter um poder de persuasão muito forte, já que, realmente, me convenço, mesmo sem qualquer ideia fluindo na minha mente.

Deixo cair a caneta, num gesto involuntário. A mulher que massageia meus cabelos diz que eu ainda vou quebrar a caneta, jogando-a sempre no chão. Nem tento dizer que, desta vez, não é de propósito.

Eu sei que é chato para você, leitor, ficar esperando que algo de interessante aconteça na vida de um escritor para que ele possa relatar numa crônica, num conto, num texto, enfim. Mesmo num recado ao pé da página. Pior é saber que nem precisa acontecer nada. Basta que o escritor imagine, fantasie, delire.

Será que o escritor tem mesmo essa missão de distrair sua plateia? Sei que o gênero crônica nasceu assim nos jornais. Ficava encravada na seção que continha horóscopo, receita de bolo, palavras cruzadas, quadrinhos. Itens que os editores de jornais acreditavam (erroneamente) serem amenidades ou passatempos. A qualidade dos cronistas brasileiros, como o papa do gênero Rubem Braga, alçou a crônica a um posto de destaque em nossas letras.

Pronto. Passei uma informação legal. Posso me dar por satisfeito? Claro que não. Os cientistas nunca se contentam com a resolução de um dilema. Eles sempre estão procurando adiante, além da resposta que pode parecer definitiva. É preciso desconfiar sempre do que se apresenta como verdade. Eu não sou um cientista, mas passei outra informação legal.

Agora estou na rua. Olho para o sinal de trânsito, que impede minha passagem. Contemplo a paisagem ao longe, um luar sobre a ponte. Volto meus olhos para o sinal de trânsito, que agora libera minha passagem. Acontece que não estou mais a fim de atravessar a rua.

Faço todo o caminho de volta, como um filme correndo ao contrário, e chego até o início deste escrito. Lembro o pensamento com o qual acordei. Será que é mesmo do Vinicius de Moraes? Fico espremendo os neurônios até me render à falta de memória e vou recorrer ao Google.

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste…

É um belo poema, se chama Dialética. E é mesmo do Vinicius. Ponto para o Google.

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