Eu literarizo, tu literarizas… – Por Lulih Rojanski

Sem meias palavras: eu não quero nem saber do dia do escritor, dia da poesia, dia do poeta, dia do raio que o parta. Dia disso ou daquilo nada me dizem. Eu vivo a literatura com tudo o que ela arrasta consigo: poesia e prosa carregadas de amor, de sangue, de magia, de tesão, de realidade, de ilusão, de invenção… E vivo de um modo que já não posso dizer que da literatura minha vida possa vir a ser dissociável. São e sempre serão uma coisa só. “Escrevo para poder criar um mundo no qual eu possa viver”* e leio para ter a possibilidade de viver em outros mundos já criados. Portanto, não me perguntem onde estou ou porque sumi. Estou por aí, com a cara em algum livro. Ou escrevendo qualquer coisa que nem sempre se aproveita. Ainda agora, estava a assistir ao último voo de um flamingo, debruçada no derradeiro barranco de um país engolido pela ambição de outrem, segundo Mia Couto. Daqui a pouco poderei me perder nos labirintos de Clarice, de Calvino, de Garcia Márquez, ainda que varra a casa, que lave a louça, que dobre a roupa, que prepare café. Não é possível me encontrar em outro lugar. Sinto muito se você precisa de mim para algo, se requer minha presença, se acredita que realmente estou presente quando estou lá. Não me convide, pois não irei. Se eu for, estarei lhe enganando. Meus gatos são testemunhas, pois, no fim das contas, estão sempre comigo, onde quer que eu esteja de alma. De corpo, não garanto a presença dos gatos.

Sou dominada pela criação, a ponto de dar a algumas línguas adestradas a oportunidade de dizer que literarizo minha vida. Pouco me importa também. Não reclamo pelo domínio da literatura. Au contraire. Sou apaixonada pelo coronel Aureliano Buendia, e não se passa um dia em minha vida em que eu não lhe dedique um fundo suspiro. Ando por sua casa em Macondo, assim como percorro carreiros poeirentos e terras sonâmbulas em Moçambique, onde Mia Couto esconde seres estranhos e onde minha noite habita. Vivo apequenada pela tristeza das vidas de Saramago e engrandecida por transformar meu namorado em príncipe todas as vezes em que o beijo. Não posso explicar isto de um modo engenhoso: minha vida e a literatura são a mesma coisa.

Escritores Lulih Rojanski e Fernando Canto durante o lançamento do livro Pérolas ao Sol – crônicas – em2017

Ano após ano, estão aí os poetas se agrupando em panelas que grudam no fundo, explodindo o peito a céu aberto, berrando que existem, experimentando chapéus anacrônicos de escritores do passado, chamando Pessoa para uma mesa de bar, às vezes enfiando um punhal de gelo no peito de Maiakovski, quando lhe atribuem um poema que não escreveu. Não condeno ninguém. Mas prefiro berrar sozinha em todos os outros dias do ano. No fundo, ou nem tão ao fundo, estão todos tão enredados nas teias invencíveis da literatura quanto eu. Sofrem da mesma desordem. Quem vai saber?

Lulih Rojanski – Escritora. 

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