Eu, meu emocional e o Covid – Por Lica Contente

Por Lica Contente

Hoje vim aqui falar de sentimentos, sensações, experiências, na verdade minha experiência. Quando tudo isso começou, covid 19, não sabíamos o que era ao certo, e o que iríamos viver, sentir ao longo de meses de extrema intensidade,

Sou fonoaudióloga e já atuo a muitos anos em hospitais públicos de minha cidade, me considerava até bastante experiente no que fazia, sempre quis dar o melhor de mim, na esperança de minimizar a dor e o sofrimento das pessoas que se encontram internados em hospitais.

E aí chegou o furacão COVID 19, foi um misto de medo, ansiedade, queria correr, fugir, me esconder, mas sabia que, dentro da fonoaudiologia hospitalar iríamos ”com toda a certeza” atuar com esses pacientes, mas não queria muito acreditar, preferia a dúvida do desconhecido. Minha família à essas alturas, por outro lado, já faziam pressão e diziam: “ te sai, não te mete nisso, você sabe o risco que tem para você e para todos nós”, então fui me esquivando o quanto pude, e deu certo por apenas um tempo, foi chegando um, dois, três pacientes em meu hospital com síndrome respiratória aguda grave que suspeitavam ser covid, e fui é claro, atendendo. Me cobria de muitos cuidados, me afastei por um longo tempo da minha mãezinha, morria de medo dela pegar, desenvolvi umas manias de limpeza, obsessões por álcool em gel, luvas e máscaras.

Medo, tudo isso se resumia nessa palavra, medo. A pandemia avançou, acompanhávamos atentos os noticiários, os números, os fatos, os relatos, “a ciência”, só ela nos salvaria desse pesadelo. Na contramão ainda passávamos raiva com um governo negacionista, que afirmava que tudo não passava de uma gripezinha…tivemos apagão de um mês nos deixando na escuridão total, no caos…e logo em seguida a pandemia chegou a mim, um grande e querido amigo meu agravou e entubou, está na uti, e eu fui junto, assim também entrava na uti também meu emocional. Mas o que tinha por vir ainda era bem maior.

Dezembro chegou e o meu estado decidiu concentrar todos os pacientes de covid em um só hospital, o Hospital Universitário, e logo fui chamada para compor a equipe de fonoaudiologia, daí então começaram os meses mais intensos de minha vida. Todos os dias antes de ir tentava me preparar de alguma forma, arrumava de véspera minhas coisas, fazia minhas orações, vestia minha capa e ia.

E assim os dias avançaram dentro daquele hospital, tudo novo, aprendizado, experiências a todo vapor. Aprendi com a dor de cada olhar que pude presenciar, seja de um paciente, seja de profissionais que lá caminhavam junto comigo.

E paralelo a isso aguardava sempre a melhor notícia do meu amigo, tirou o tubo, saiu da UTI, teve alta… faleceu, quando tudo parecia caminhar bem, senti a primeira perda que essa pandemia me trouxe.

Sigo atendendo, em frangalhos, mas atendendo. Os casos só aumentavam, o hospital começou a encher de uma maneira muito rápida, antes só UTI 1 agora 2, 3 e 4 meus pés doíam de tanto andar de lá para cá, para dar conta de atender a demanda cada vez maior.

A mãe de meu amigo mais próximo que trabalhamos juntos o tempo todo, internou, agravou, entubou, ele não conseguindo ficar por lá vendo tudo isso teve que parar os plantões e eu assumi os dele, o que acarretou mais tempo dedicado àquele lugar, e acabei por acompanhar toda a partida dela…

Os atendimentos aumentando, as mensagens em meu celular também, pessoas querendo notícias de familiares que estavam internadas, aflitos por alguma esperança um acalanto.

Antes víamos vovós e vovós tão queridos padecendo a esse vírus, agora o quadro era totalmente diferente, eram jovens, pessoas que estudavam comigo, que frequentavam os mesmos espaços, as mesmas festas, em idade laboral, curtindo ainda filhos pequenos, fazendo planos, com dificuldades para aceitar o momento da intubação.

A mãe de meu amigo se foi; Foi também a mãezinha de uma grande amiga que de longe morria de aflição e chorava sem parar; Foram também duas irmãs gêmeas, famílias inteiras, pais, mães, avós, tios, filhos e agora até crianças… nesse momento colapsei pela segunda vez.

Meus pulsos estavam a todo vapor, a adrenalina da minha vida alcançara o pico máximo.

O cantinho da UTI onde colocavam as pessoas que iam a óbito agora sempre estava cheio, cheio de histórias, de lembranças e dor. E todos os dias que chegava, passava por lá e reverenciava cada uma daquelas pessoas que perderam a batalha para aquela doença. Enquanto isso lá fora só se ouvia as lamúrias, os choros, a dor das famílias inconformadas por não terem tido pelo menos a oportunidade do adeus.

Morreu mais um amigo, e mais outro e mais outro; Morreu uma jovem de vinte anos com Síndrome de Donw, cheia de doçura, que era tão amada por seus pais que imploraram para direção dar o adeus à ela da porta da uti, onde caíram abraçados no chão, sem chão pela tamanha dor.

Morreu uma grávida!!! Mas conseguiram salvar seu bebe. Outra não teve a mesma sorte e morreu com o bebezinho ainda em seu ventre.

Morreram todos, se não quase todos, alguns conseguiram sair, para iniciar uma nova etapa, em busca da saúde que tinha ficado frágil demais por conta daqueles dias tão difíceis. Amigo esposo de uma amiga que estava preste a dar a luz saiu ainda a tempo de ver seu filho nascer, minha cunhada guerreira lutou, e conseguiu voltar para os braços de sua aflita família, minha querida e amada D. Selma, o xodó da UTI 1, foi alcançada pelo milagre da vida, e tantos outros que conseguimos devolver as suas famílias. Os cartazes de agradecimento pelos corredores só aumentavam.

Alguns dias lá, tinham tantas paradas ao mesmo tempo que parecia estar de fato em uma guerra. Eram dias de correria, equipes para lá e para cá, tentando de tudo, a qualquer custo salvar essas pessoas, e digo, nunca duvide disso, todos ali estavam dando tudo que tinham para ver a vida vencer. Em um fatídico dia como esse, compartilhei uma cena em que me levaria a colapsar pela terceira vez, acompanhei a reanimação de um pai de uma enfermeira que estava lá no momento em seu horário de trabalho, quando ela correu e se deu conta que a ocorrência era no leito de seu pai, caiu no chão em desalento. Médicos, residentes, enfermeiros, fisioterapeutas, todos em cima dele, tentando traze-lo de volta e eu fui ao chão abraça-la, mas confesso que tremia mais que ela de tão nervosa. Tentaram, tentaram, mas não deu ele não voltou, o médico saiu do leito encharcado de suor, ofegante de cansado, mais principalmente acabado com a derrota, abaixou, abraçou ela pediu desculpas e choraram juntos. Eu ….sai correndo, fui ao banheiro e tive uma crise de choro de pelo menos uns 40 minutos, mais ou menos igual ao que estou tendo escrevendo e relembrando tudo isso agora. Liguei para meu marido e pedi para ele ir me pegar que tinha chegado ao meu limite naquele dia.

Já em casa, escuto a vinheta do plantão extraordinário da rede globo e sai a notícia: Anvisa acaba de autorizar a primeira vacina contra covid 19, e tive mais uma crise de choro, mais agora de felicidade, meu coração acelerado não cabia dentro do peito.

Lica Contente – Arquivo pessoal

Fui a quarta pessoa a vacinar em meu Estado, só para vocês terem uma ideia do grau da minha ansiedade. Um mês depois minha mãezinha vacinou, depois minhas irmãs, esposo, amigos, e pouco a pouco acompanhamos a diminuição das ocupações de leitos, a esperança se renovou, e a alegria aos poucos está voltando em minha vida.

Hoje, setembro de 2021, estou me despedindo desse lugar, estou parando de fazer plantão pois o hospital irá fechar por falta de quantitativo de ocupações de leitos. Em minha memória sempre esses dias estarão. Mas escrevi tudo isso porque queria muito contar a vocês que hoje sou outra pessoa, amadureci no mínimo 10 anos, revi conceitos, desfiz amarras, refleti sobre a vida, o que vivi, o que senti, e tudo isso só podia me transformar muito. Espero um dia olhar para trás e sentir que fiz tudo que podia, que estava ao meu alcance. Esse é o sentimento de todos os profissionais que ali estavam, o sentimento de dever cumprido. Mas não se engane, sempre iremos pensar, que devíamos ter ido mais e mais além, e que poderíamos de alguma forma ter contribuído mais com aqueles pacientes.

E para aquelas pessoas, familiares, amigos, que pude ser uma ponte, uma fonte de notícia de calor, de amor espero sinceramente poder ter ajudado. Dia desses recebi um abraço inesperado, repentino, de um familiar. Essa energia que me encheu de forças para continuar. Meu muito obrigado.

A pandemia ainda não acabou, ainda seguimos na luta, cuidados ainda redobrados. Mas meu coração segue cheio de esperança que o sol voltará a brilhar em nossos corações.

Estou viva, sobrevivi!! Apesar de tantos colapsos…

Lica Contente – Arquivo pessoal

Dedico esse texto a todos os profissionais da saúde que assim como eu travaram e ainda travam a batalha pela luta em busca da vida. Meu muito obrigado.

A equipe de fonoaudiólogos que lá estiveram, mando um abraço especial, nós, juntos, fomos quase imbatíveis.

E em memória a todos os guerreiros que bravamente lutaram e padeceram. O meu respeito…

Macapá, setembro de 2021.
Lica Contente, fonoaudióloga.

  • Lica, eu me emocionei demais lendo seu relato, você é uma vencedora, filha abençoada do Altíssimo noso Criador e criador do universo, você cresceu especialmente em sua espiritualidade. Essa missão foi lhe dada por Deus e você a cumpriu lindamente com todo o amor, dedicação e respeito, assim como muitos. Vocês merecem receber uma grande homenagem. Divino Espírito Santo de Deus lhe abençoe, dê a você e a toda a sua família saúde, paz e grandes alegrias . Receba meu grande abraço e um beijo no seu coração

  • Nossa Lica, meus parabéns a você é a todos os profissionais da saúde, vocês foram super heróis.

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