FLAUTA – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

​De manhãzinha, seu Pedro descia os três degraus de escada, fechava a porta com chave, duas voltas, e seguia caminhando cabisbaixo como perseguido pelos sons da flauta que tocava nas horas de folga.

​Sempre aquele soprar enfadonho, semi-tonado, choroso e cabisbaixo como ele quando caminhava para o centro da cidade, onde funcionava a barbearia em que trabalhava há 40 anos, ali debaixo do antigo Grande Hotel do Pará.



Quando seu Pedro voltava, já começando a noite, alguns gatos atravessavam a rua, vindos do terreno baldio em frente e, miando, subiam pelo telhado de sua casa, entre as ervas ali dependuradas e telhas soltas cheias de limo.

Com a noite alta, os gatos atravessavam a rua e retornavam às suas moradas no terreno baldio do outro lado da rua. Então, terminava a folga dos ratos. A flauta se calava e o pessoal da república, a uma quadra dali, – Joca, Edílson Calouro, João Silva Santos, Veríssimo, Alípio e Edivaldo – acomodavam-se para estudar. Eu podia ver as notas correndo pela vala em meio à água rala que pouco cobria o lodo do fundo. Na rua tinha um cachorro vagabundo que, vez por outra, pulava na vala atrás delas, e as engolia de um só fôlego. Era ele fazer isso que a estudantada saía pela porta da sala e divertia-se ouvindo-o latir. Uns latidos meio miados, meio zunir de ratos, meio barulho de tesoura cega cortando cabelo.

Veríssimo era o mais moleque e o atiçava com uma toalha. Certa vez, foi tanta a algazarra que seu Pedro saiu na porta de sua casa e tocou na flauta um fado tão lamento, que as notas saíram da vala, da boca do cachorro, do barulho de uma rasga mortalha, e coloridas e em fila retornaram para a flauta. Seu Pedro fechou a porta e, mais depois, amanheceu. Tudo foi tão rápido que os degraus não tinham se levantado quando ele abriu a porta e desceu.

Noutro dia, eu soube que ele caíra e fora levado para o hospital. E que mais tarde toda a vizinhança o fora visitar. Uns levaram caqui, outros restos de mar, outros nacos de sol. Eu levei alguns gatos pardos e malhados e um rato, o que costumava cantar mais alto. Não consegui entrar.

À noitinha seu Pedro morreu. A vala foi aterrada pela Prefeitura. Chegou o carnaval e os gatos viraram tamborins. A flauta ficou pendurada na sala, guardando notas enferrujadas. Até que a casa ruiu. Os estudantes concluíram seus cursos e sumiram. Eu fiquei sozinho, escrevendo contos irreais sobre flautas, gatos, ratos, cães e valas. Coisas em que seu Pedro, também sozinho, nunca acreditou.

– Seu Pedro era canhoto?

* Além de contista, Luiz Jorge Ferreira é poeta, escritor e médico amapaense que reside em São Paulo e também é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames).
**Do livro Antena de Arame, Rumo Editorial- SP – II EDIÇÃO. 2017.

  • Seu Pedro continua a tocar sua flauta em outra dimensão e o Poeta Luís Jorge continua tocando poemas Imortais

  • Lendo o conto da flauta fico necessariamente dentro da cena.
    Ouço os gatos, cachorro, estudantes , tesoura e a flauta.
    O mestre Luiz Jorge sabe como ninguém fazer a gente deslizar por seus versos com emoção e beleza em busca do desconhecido, curtindo as surpresas do caminho das letras

  • Flauta, mais um conto gostoso de se ler, que sai das idéias de Luiz. Como sempre dando vida aos seres inanimados com tanta convicção, que chegamos a duvidar de que aqueles fatos são fantasia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *