Crônica de Fernando Canto
É clara, companheiro, a hora da jornada. Em cada dia há um leão à espreita e uma longa fila de lampejos nas estradas.
Há sangue, flores falsas e mazelas a sabotar o edifício que teimamos em erguer no dia-a-dia.
É clara a hora de seguir. Em tempo vestiremos linho e nos untaremos de balsâmicos perfumes. É certo que pisaremos em chão de vidro estilhaçado, mas cada cicatriz terá uma história que será contada saborosamente no futuro.
– Os peixes já rumaram para as águas da baía!
Olha este chamado rouco que vem do mar, que o vento faz tremer pelas cidades, mas que não mete medo, pois parece a voz de um jardineiro quando canta em seu trabalho matinal colhendo flor.
Lembra que o que pega de galho não é apenas o amor, pois não se planta e não se colhe o que se quer, só por querer. Mesmo que os espinhos da flor bela e perfumada deixem raios de luz nas linhas das tuas mãos.
Quantas e quantas mil vezes não desviamos o olhar para o céu, só para ver a dança de andorinhas e a luz iridescente do equador.
Vimos barcos visagentos no horizonte – augúrios e pragas de contágio nas correntes – mesmo assim a ousadia se fez de ferro e então nos preparamos para esta viagem ao meio do protesto de cães que morreram sob a torre incendiada.
Ouvimos um discurso novo na cálida nascente. Era um vertedouro de palavras que aprendemos a grafar nas pedras do caminho.
Não nos calamos, todavia, ante as tempestades, nem sob vergalhões ameaçadores deste mar de suor e sal. E na manhã seguinte, no horizonte claro, construímos com metal, cimento e pedra os sonhos que tanto acalentamos em dias de ranço.
É clara, companheiro, a luz dos celulares no caminho. Há novas formas de grafar o mundo e de digitar novos valores que a vida nos exige agora.
A lança de Ogum, a flecha de Oxossi, a voz do santo Benedito do Laguinho não trazem mais notícias de mortes sem sentido, de armas antagônicas e lâminas sem fio, porque a morte verdadeira vem de frente, mas é a dor, a dor que a gente sente é que se mostra inevitável e sempre de perfil.