Hum Conto. Nem sei – Conto de Luiz Jorge Ferreira

Conto de Luiz Jorge Ferreira

Ela foi vó sem ser mãe.
Por isso guardava os dentes de leite dele, amarrados em um cordão verde, agora sem nenhuma cor.
Todos os dias ela espera os bandos de Pardais fazerem sexo.
Para depois de pernas abertas receber o vento que vem do Sul.
De noitinha enjoa e no outro dia de manhãzinha pari Pardais.

Em uma ocasião destas, ele nasceu, coberto de um visgo semelhante ao visgo extraído da jaqueira para criar armadilha para passarinhar.
Passou a chamar-lhe Pé de Jaca.
Quem passava pela estrada defronte do casebre. Viajantes e Peregrinos. A chamavam de Divina.
Como podia atrair e viver com tantos animais e cuidar de todos.
Tão velhinha como estava.


Pé de jaca indiferente empinava pipa. Urinava no Igarapé. E dava cambalhotas.
A Divina dos pardais. A que contava histórias. Das quais a que Pé de Jaca gostava mais, era a do menino que tinha um cão que pescava peixes, e um dia ouviu o peixe lhe dizer larga… larga… está doendo. Daquele dia em diante o cão nunca mais pescou ajudava o menino a plantar e comia os grãos de milho plantados de parceria, ele, o menino, e o peixe. Até que um dia o cão morreu, o peixe foi embora, e o menino já homem, casou com a lua e virou um pássaro Jaburu que pesca peixe, mas não os devora. Come sementes e frutos.

Retirantes – Cândido Portinari

A cada dia mais viajante habituais, retirantes de vezsada, caminhantes fortuitos. Aglomeravam defronte da sua casa de pau a pique coberta de folhas secas de Bacabeira.
Já diziam que a água do poço ao lado do casebre perfumava, e curava quem a bebia.
Já outros a noite furtivamente arrancavam pedaços de barro de suas paredes e com eles faziam chás e adoçados.


Muitos começaram a acampar do outro lado da estrada atrapalhando o trânsito de grandes caminhões e carretas que levavam turbinas para a hidroelétrica de Matapi.
Veio a polícia e iniciou a expulsa-los. Não sem um protesto geral.
Com mortos e incontáveis feridos.
E ela a parir Pardais.


O alvoroço, o barulho, o vai e vem pelo quintal espalhou as borboletas, os saguis, os porcos do mato, as saracuras, o bem-te-vis, curiós coloridos e cobras cascavéis em fila com seus guizos reticentes. Foram os últimos a partir. Ficaram as bananeiras e suas aranhas e teias.
Ela assustada em fim com toda esta balburdia parou de parir os Pardais. Sussurrou algo no ouvido de Pé de Jaca. E quando anoiteceu ouviram os que acampavam em frente ao casebre. Um estrondo enorme no poço seguido de uma explosão e nada mais restou. Ficou como cicatriz uma cratera cheia de mato como se há muito tempo existisse ali fincada.


Pé de Jaca agora em um ancião sobrevive e ganha para orientar os barcos que chegam no Ver o Peso. Ajuda-os a manobrar pela Canal da Baia, lugar mais profundo do rio.
Aonde vai e seguido por um bando de gaivotas e um Jaburu velho de poucas penas, e com as penas sabrecadas de fogo.
Pé de Jaca é cego.

* Do livro “Na frente da boca da Noite Ficam os dias de Ontem” – Rumo Editorial (São Paulo – 2020).

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