Conto de Ronaldo Rodrigues
Estou sentado no banco dos réus enquanto se desenrola o meu julgamento. O juiz anuncia o veredito: estou condenado a assistir a vários trechos de filmes, para que eu possa compreender o meu país.
Sou colocado numa cadeira, em que fico totalmente preso. Algumas pinças mantêm meus olhos abertos, enquanto alguém pinga colírio (creio que seja colírio) a intervalos regulares. Quem já assistiu ao filme Laranja Mecânica pode fazer ideia do que estou dizendo.
As luzes se apagam e um projetor passa a ser acionado. Vejo o primeiro trecho de filme. Nele, o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados aparece dizendo que os africanos são seres amaldiçoados. Em outro trecho, esse mesmo homem revela sua aversão a homossexuais. Continuo achando absurdo que o presidente de uma Comissão de Direitos Humanos tenha tais opiniões. Se a intenção dos meus carrascos é me fazer compreender os acontecimentos recentes do meu país, não está funcionando. Estou ainda mais confuso.
Outro filme passa. Desta vez, vejo o presidente da Câmara dos Deputados metido até o pescoço em transações fraudulentas e sendo aclamado como o baluarte da ética, da moral, da honestidade.
Em outro trecho de filme, uma autoridade incita o povo a pedir a volta da Ditadura, com uma grande parcela disposta a segui-lo. Eu olho assustado para os meus carrascos pensando até onde eles irão nessa tentativa de me fazer compreender esse poço sem fundo para o qual a política nacional está caminhando.
Finalmente, depois de tantos filmes passarem por meus olhos atônitos, pergunto timidamente:
– Qual a causa da minha condenação? Esses filmes, esses episódios e esses personagens têm algo a ver com o fato de eu estar aqui, preso e obrigado a assistir a tudo isso?
Depois de longo silêncio, o juiz que preside a minha sentença responde, saboreando cada palavra:
– Sim. Todas essas cenas estão ligadas à sua condenação. Você acha abomináveis essas situações. Você não concorda com nada disso. Você torce contra esses senhores que apareceram nos filmes a que você está assistindo.
– Então… É por isso?
O juiz arregala os olhos enfurecidos e grita:
– Cale-se! Você não tem direito a se manifestar!
Eu penso (só penso, já que falar irritaria ainda mais o juiz): “Puxa vida! Acho que já estamos na Ditadura novamente… E agora?”.
O juiz continua sua gritaria:
– Eu nem sei por que estou aqui respondendo às suas perguntas, seu moleque! Só estou esclarecendo as suas dúvidas porque sou muito magnânimo! Pois eu vou lhe dizer qual o motivo principal, o grande pretexto, a causa imediata da sua condenação!
O suspense me sufoca. Receio não conseguir ouvir até o fim. E o juiz continua:
– Você foi condenado graças ao fato de…
Torço para ele falar logo e acabar com aquela tensão:
– Graças ao fato de você nunca ter conseguido pronunciar corretamente a palavra impeachment!
Fico mais confuso ainda. Que motivo mais fútil! Que loucura! Mais um absurdo destes novos tempos, que parecem tão velhos. Tomando fôlego, o juiz continua:
– Então, repita! Impeachment! Impeachment! Impeachment!
Os oito carrascos ao lado do juiz repetem aquela cantilena, formando um coro de altíssimo volume:
– Impeachment! Impeachment! Impeachment!
Ainda tento argumentar que não sou o único a não conseguir pronunciar corretamente essa palavra, mas sinto que estaria perdendo tempo. Repito à exaustão a palavra e espero que esta lavagem cerebral tenha algum efeito e eu possa, finalmente, entender alguma coisa.