Menos um na multidão


Logo quando eu entrei na adolescência e passei a estudar no mesmo ambiente escolar que as turmas mais velhas, tudo parecia bastante hostil. Além da quantidade de matérias, professores e novos colegas de classe, ainda tinha as olimpíadas internas e os eventos de “arte e cultura”. Lembro que num ato de pura ousadia me candidatei a líder de turma, concorrendo com o melhor jogador de futebol da sala. Antes da apuração, ele ainda me cumprimentou pela derrota (eu era sempre o último escolhido das peladas), mas não contava que os votos femininos estivessem do meu lado (prometi uma atenção especial para a equipe de queimada mista).

Semanas depois, quando a professora de português obrigou todos os alunos a escreverem uma poesia para um concurso anual da escola, não sabia nem por onde começar e me apavorava a ideia de ir até a frente da turma apresentar um poema totalmente medíocre. Num súbito momento de inspiração, tomei um atalho literário que posteriormente eu viria a descobrir ser eficaz: parodiei a “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, misturando os versos ufanistas com rimas de protesto. “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / Violência, traficantes / E castanha-do-Pará (…)” O estilo rapper-de-aula-de-Geografia convenceu e eu fui selecionado pra representar a turma na final do concurso, em um auditório cheio de alunos, pais e agregados. Comecei a me arrepender de não ter escrito algo menos pretensioso.

Apesar das angústias e expectativas normais da puberdade, as coisas iam até melhor do que o planejado, o que eu não sabia é que o teste mais decisivo ainda estava por vir. Num exemplo de sadismo pedagógico, naquele ano a escola promoveu os jogos internos exatamente durante a semana cultural. Como líder de turma dedicado, durante aqueles dias tive que me esgoelar em campo, em quadra, como técnico, chefe-de-torcida… e cheguei às vésperas do concurso de poesias totalmente sem voz. A professora de português, consternada com a minha situação, ainda me ofereceu a primeira e última bala de gengibre que chupei na vida.

Nem gargarejo, nem promessa, nem macumba. Cheguei para a “grande noite” mais rouco que um fumante idoso em estado terminal e estava a um passo de me recusar a subir ao palco me prestar a este papel ridículo. Antes que eu conseguisse tomar uma decisão, contudo, ouvi meu nome ser chamado e uma salva de palmas formais indicava que eu deveria caminhar rumo ao escárnio público. Em instantes seculares eu estava sobre o palco com um microfone nas mãos e dezoito holofotes (daqueles de chamar o Batman) apontados pra minha cara – pelo menos assim eu não enxergaria ninguém me encarando na plateia.

Respirei tão fundo que senti até o tornozelo inflar e então disparei o título do poema. Uma voz de pato transmitida em rádio AM de pilha fraca com interferência no sinal ecoou pelo auditório lotado em silêncio e a gargalhada que se ouviu em seguida num estrondo quase uníssono poderia fazer qualquer humorista de stand-up comedy do primeiro escalão morrer de inveja. Fiz um grande esforço mental para tentar desintegrar espontaneamente cada célula do meu corpo e abandonar a minha existência ali naquele instante, mas como não teve jeito esperei a multidão fazer silêncio novamente para declamar meu texto do jeito que desse e acabar logo com aquilo. O primeiro verso causou quase a mesma reação da plateia, mas eu prossegui aos sussurros e as pessoas começaram a conter o riso para poder ouvir o resto do show cômico involuntário. Cheguei na última estrofe com meu tom de voz parecendo um apito pra cachorro, mas o silêncio ao fundo era tão sepulcral que ainda dava pra escutar as sílabas tônicas. Após o verso final o estardalhaço lembrava a comemoração de um gol na final do campeonato com o estádio lotado.

Saí do palco ovacionado e refletindo sobre a crueldade humana, que se excitava em aplausos, assovios e gritinhos histéricos após meu espetáculo vexatório. Estava decidido que aquele seria meu último ato de imbecilidade em vida (mal sabia eu que a maturidade é feita basicamente deles), mas ainda tinha que esperar até o final do evento pra poder finalmente ir embora e afogar minhas mágoas num copo de groselha.

Imerso em pensamentos suicidas, ouvi meu nome ser anunciado novamente no alto-falante e demorei uns bons segundos até entender que eu havia ganhado o concurso, derrotando autores de todas as outras séries mais avançadas – e com 100% da capacidade vocal para apresentar suas obras. Até hoje acredito que minha interpretação prejudicada naquela noite tenha sido decisiva para a vitória.

No fim da contas, tomei gosto pela escrita e esta virou minha profissão. Aquela reviravolta do destino, contrapondo emoções antagônicas, ficou guardada numa estante polida da memória para propulsionar meu otimismo inveterado diante das adversidades da vida sempre que preciso. Fazer do limão uma limonada.

De tantas lições extraídas com a experiência, um dos conceitos que levo na mais alta conta é a singularidade. Ser original, ou pelo menos tentar se destacar da média deveria ser pré-requisito para existir.

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