Mercúrio em Virgem – Por Mayara La-Rocque

Por Mayara La-Rocque

Já te disse que a noite é prenha e que só a lua transborda. Certa vez escrevi isso, lá atrás, talvez eu tivesse a idade de meu irmão ou um pouco mais. Acontece que esses ares me voltam à cabeça, os daquela época – hoje a de meu irmão e dos amigos dele. Era um tempo em que eu escrevia pelas paredes do quarto e me arranhava em pensamento pelas ruas. As ruas desta mesma noite. Já te disse que ela é prenha e a lua continua a transbordar. Tudo ainda me cresce e apesar das luzes cheias de gentes que ofuscam, dos sinos que tocam, dos festejos que comemoram datas imprecisas – ninguém mais se lembra da história, quando foi que tudo começou, se era mesmo um deus que nascia ou deuses que morriam, mas vejo que foi desde então – os calendários estão atônitos, os noticiários se repetem na frente das igrejas, das praças, no homem que trucidou a mulher que chamou de sua, no corpo dessa mulher de pele e vias-lácteas violadas.

Contudo, tem algo ali entre a curva das mangueiras e a beira do céu quase a alcançar Mercúrio por cima de minha cabeça e que traz por entre as esquinas a queda de uma estrela, o tempo dilatado das ruínas. Não sei bem o que é, mas me afronta a memória como ostra viva, se assemelha a algo que talvez eu tenha lido ainda hoje – não bem em verbo ou carne ressequida, mas tinha gosto de vida, era fresco como orvalho entranhando as narinas; muito menos era palavra o que li, mas sim, o que eu vi tomou corpo e forma dos reencontros que tenho tido entre leitura e solidão.

Tudo isso já te disse. Então, tu preponderas e até refutas, indignado, pra quê tanta solidão? E eu te digo que dela o mundo está vazio, pois que é sempre muita gente sozinha em tumulto, muita fala ao mesmo tempo aglomerada, muita boca lotada de secura, muitos olhares perdidos por todos os lados a procurar, uma procura que desvia a procurar, procurar, procurar o quê? Sem solidão, ninguém sabe.

Mas eu dizia que as ruas ainda vivem nos meus passos. É quase sempre onde me faço ou descubro um pensamento, um caminho ruminando em algum lugar que ainda não conheço. Eu sei, todo mundo carrega tristezas, mas me pergunto – ora, veja, quem! – quem, realmente se dá conta por si e sabe de sua tristeza? Está bem, está certo, acho que, no fundo, todos sabem. E apesar das luzes tremendo o barulho que sibila, esse embaçado que carregamos frente aos olhos – e que dói até nas costas, meu Deus, eu sei que dói – apesar desse a-pesar, existe uma noite que é prenha. Está fermentando lá embaixo enquanto vivemos aqui na superfície: eu tenho fome, preciso, comer, minha garganta está seca, tenho sede. O que é a sede? Tu perguntas. Agora! Diz, tu tens sede exatamente do quê? Não sabes. Não sei. Tenho. Temos. Quero, e sabemos, queremos sempre mais. Toda-via, Deus meu, tem vida debaixo da terra e sei que tu ainda podes observar, ela percorre o giro da lua – decapitando as dormências e nos acordando na entrada dos olhos os zincos, as pratas e os metais e também as pérolas ativas do sonho que de heras vem se formando por debaixo dos oceanos feito anzóis em suspensão; é enquanto olhamos a crista das ondas do mar que pescamos: a noite é sombra que reflete o brilho, movimento que vai parar nos olhos; a fundo, da ponta dos cílios também tem um oceano querendo jorrar.

No momento em que estou indo para casa, lembro que tenho que comprar pão, também o café e outras embalagens, os ditos descartáveis, os resíduos manufaturados do supermercado, e os resíduos humanos seguem comigo, penso na minha vida adulta e nos meus projetos inacabados. Sinto fome. Continuo a especular, é sempre tudo mera especulação: quando chegar em casa, preparo algo para comer e é exatamente aí que, de repente, é como se tudo que estivesse na boca do estômago em estado de latência, ruminando, fervilhando, chegasse até o limiar da goela e, ao ser mastigado, voltasse a ser engolido e fosse para o lugar de onde veio. Saciada a fome da superfície, tudo se esquece, e volta a dormir no âmago do sonho.

*Mayara La-Rocque é paraense, educadora, escritora. Publicou a plaquete literária “Uma luminária pensa no céu”, pela Editora Escriba, em 2017. (além de velha amiga minha e colaboradora deste site).

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