MEU FILHO VERSICULORUM – Conto de Fernando Canto – @fernando__canto

Conto de Fernando Canto

Antes de casarmos minha mulher Jeanerena era uma lutadora das causas sociais mais diferentes possíveis. Ela se metia em qualquer protesto e eu a acompanhava nessa luta.

Um dia ela soube que iriam cortar uma secular mangueira da praça principal da cidade, e já me convidou para impedirmos esse crime ecológico premeditado pela prefeitura.

Na noite anterior ao ato da derrubada da árvore fomos dormir nela. Subimos sorrateiramente pelos seus galhos com a ajuda de uma escada e nos acomodamos em uma forquilha para esperar o dia raiar. De início, formigas e mosquitos ficavam incomodando, mas depois fumamos um baseado entre os reclamos dos periquitos que ali também se acomodavam em seus ninhos. Transamos de um jeito muito doido que cansamos e adormecemos.

Acordamos com os bombeiros, a polícia militar, a Guarda Civil e técnicos da prefeitura que já estavam lá embaixo ainda de madrugada, com ordens para nos tirar de lá na marra antes da imprensa chegar.

Eles nos prenderam e derrubaram a mangueira, alegando que ela poderia tombar a qualquer momento com as fortes chuvas do inverno já em curso. Mesmo carregada de frutas ela deveria ser sacrificada, pois poderia deixar um enorme prejuízo à população daquele bairro.

Quase sete meses depois nasceu nosso filho primogênito, o Altino Versiculorum. Era verdinho e prematuro. Tinha a cabeça esquisita, pequena e uma cartilagem adunca sobre a boca. Parecia uma cabeça de periquito asa branca, da família dos psitacídeos.

Altino não sobreviveu, mas em respeito à sua alma-passarinho, e apesar dos senões da família, vou visitá-lo todas as terças-feiras no Museu de História Natural onde ele está soberbamente empalhado.

* Este conto está no meu livro “O Centauro e as Amazonas”, que sairá brevemente pela Editora e Distribuidora Brasil Cultural.

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