Minha história

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Conto de Ronaldo Rodrigues

Ei! Deixa eu te contar a minha história. Uma coisa que aconteceu comigo quando eu era criança. Foi lá na cidade onde nasci…

Ele me interrompeu, muito delicadamente:

– Você se importaria de deixar pra depois? Não é por nada, não, mas estamos sendo bombardeados pelo exército inimigo. Está chovendo bala e você, em vez de se proteger, fica tentando me contar a sua história. Se você não se cuidar, pode ser hoje o fim da sua história.

Me abaixei para não ser alvejado por alguma bala inimiga e dei razão a ele. Mas eu queria tanto falar daquilo, queria tanto contar a minha história. Insisti:download (2)

– Acontece que se hoje for o fim da minha história, se a gente morrer aqui nesta guerra, eu vou morrer com tudo isso que preciso falar pra alguém. Vou morrer com a minha história engatada na garganta. Seria o mesmo que uma bala atravessasse a minha garganta agora.

– É, mas pode ser que a gente não morra, se você se calar e cuidar de salvar a sua pele, como estou fazendo com a minha.

Me abaixei mais ainda, admirando intimamente a sua forma de falar, mesmo naquele tiroteio dos infernos.

*** *** ***

6fd3e66d69e77206ba780ed4915ffcdfPerdemos aquela batalha, fomos aprisionados e ficamos à disposição da corte marcial, que decidiria nossos destinos. Não vi mais aquele soldado com quem travei aquele diálogo sobre a minha história. Fui amarrado a outro soldado e aproveitei para falar a este:

– Tem uma coisa que eu preciso contar. Quando eu era criança…

Este outro soldado me interrompeu, sem a delicadeza do primeiro:

– Ô, cara! A gente tá aqui, amarrados, com fome e sede, a poucos minutos de uma decisão dessa corte marcial que pode nos mandar pro paredão de fuzilamento ou para a forca. Você acha que eu tenho cabeça pra ouvir alguma coisa?

Aproveitei a deixa:

Mas é justamente por isso. Se a corte marcial nos condenar, eu posso morrer em paz com a minha consciência, por ter falado pra você isso que eu quero falar. Você falou que está sem cabeça pra pensar alguma coisa e, por falar em cabeça, creio que, se formos condenados à morte, deverá ser por enforcamento. É pra economizar munição.tom_hanks_cast_away_006

Ele agradeceu a informação e pediu para que eu ficasse em silêncio. Depois que olhou mais atentamente para a minha aflição, me disse pra eu falar com o padre:

Se formos condenados à morte, acho que temos direito a um padre pra ouvir nossas confissões, dar a bênção final, essas coisas. Aproveita e conta a tua história pra ele.

Achei boa a ideia, mas eu achei que não seríamos condenados à morte. Ainda não seria daquela vez. No máximo, nos deixariam presos até o fim da guerra.

Foi o que aconteceu. Fomos libertados dois anos depois, com o fim da guerra. Esse tempo todo eu segurando a história que tinha pra contar. Nesses dois anos, tentei falar várias vezes, com vários companheiros de prisão, mas não encontrei ninguém disposto a ouvir.

*** *** ***

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O tempo passou pra mim (e pra todo mundo, claro) e nunca encontrei alguém que quisesse ouvir a minha história. Tinha desistido de contar, até que ontem, no meu aniversário de 98 anos, a minha netinha de seis anos olhou bem lá no fundo dos meus já enevoados olhos e perguntou se eu tinha alguma história pra contar.

Meus já enevoados olhos ganharam brilho e me preparei para contar o que aconteceu quando eu era bem pequeno, da idade da minha neta. Só que eu já havia esquecido, tanto a história quanto a vontade de contá-la. E minha voz já não saía. Mas aquela atenção da minha neta para a minha história me fez mais feliz, disposto a suportar mais alguns anos de guerra.

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