MINHA HISTÓRIA INVISÍVEL – Conto de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

Atravessar a rodovia pela passarela da frente da Universidade. Na adversidade, admito. Na miséria de um pássaro sem ninho. Debaixo de uma chuva baguda. Barulhenta. Martelando a alma. A telha de zinco. Uma tortura catay. Umas gotas grossas por longos segundos. No cocuruto. Até eu te contar o que sei de ti. E de teus asseclas chineses. Estes que querem minha cabeça fora de Macau e Hong Kong. Talvez em um palco amazônico. Talvez pendurada no mais alto prédio de Dubai. Lá no deserto. Quando só os satélites veriam minha solidão.

A travessia da passarela não é um desfile. Nem palco de uma escola de samba. É como um caminho de pedra miltonascimenteano & fernandobrantano. Onde não posso sonhar. O suicídio iminente. Cair desse caminho. Ser atropelado. O corpo rolando sob as rodas dos automóveis. O sangue esguichando nos capôs. A massa corporal mutilada e magra. Irreconhecível aos parentes.

Retomar os passos. Chegar ao final e retornar. Inevitável. Ô merda! O celular esquecido na mesa do professor. Resgatá-lo à meia-luz na última sala do último pavilhão. Agora o sol se pondo. Uns clarões do anoitecer do fim do inverno. Outra baguda procela. Procela? Não. Tempestade equatorial.

A volta melancólica. Mecânica. Cabisbaixo vou. Pensarei em ti e no perigo que és, que representas ao mundo. Mundo humano. Mundano. Avassalador. Neste périplo estou eu no meio da ponte. Ouvindo o zoar dos veículos que vêm do shopping abarrotados de presentes & risos de amor & bocas lambuzadas de sorvete & pipoca & chopp. Vêm da praia também. Com cheiro de peixe & camarão.

Nesta travessia apanho o vento forte com uma das mãos. E me dou conta. Estou no meio do mundo. Sigo a leste. Em frente. Escapei da morte por causa de um esquecimento. De um celular barato que ninguém quis ficar. Escapei da Morte. Sim. Escapei do empurrão que me mandaste dar. Eu vi a sombra dos teus comparsas amarelos. No final da passarela. Um lapso me salvou a vida por duas vezes. Desenhada a lápis, a outra travessia estava na minha decisão. Hoje não. Sobre a rota certa eu ando. Minha trajetória consistirá, talvez, de atravessar a passarela, não a vida e o laço íngreme da morte. Sobre ela está a minha história invisível a todos. Minha paranoia & minha depressão & minha dor.

Hoje eu te mandaria à merda & à puta que pariu. Ainda que tanto te ame. zecabaleiramente. Que tanto te ame. Que tanto te ame & que te ame tanto.

  • Imensa!
    A passarela vida…Fernandamente…analisada.
    Bem escrita, como o foi…não nos implora …mas a gente vai.
    Frenético para atravessa-la.
    E eu soube…’ Que tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu…’
    Nunca esqueça o Celular…sobre a mesa do Grande Arquiteto.

  • Cabeça de artista é algo imprevisível.
    Como imprevisíveis os louros que dela saem.
    E nos remetem a lugares indescritíveis.
    Com o leve saber das plumagens.

    Obrigado por esta crônica.
    Luiz Marcos

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