Não joga pedra na Geni (conto de Ronaldo Rodrigues)

“De tudo que é nego torto / do mangue e do cais do porto / ela já foi namorada”. Eu era um perdido no caos do porto da vida e ela me amava assim mesmo. Desconsiderava minhas feridas e lambia meu corpo inteiro. Me colocava pra dormir em sua cama de papelão, sob a marquise de alguma loja. Ou no chão de um banheiro imundo. Ela acolhia a todos os famintos e dava de comer. Os que tinham frio, ela aquecia entre seus seios. Eu era mais um em sua teia, mas cada um sabia que era único. 

 
Ela nos fazia amados e preparados pra amar. Nos fazia crer que era possível continuar a sugar da vida tudo o que ela trazia de bom. O que era ruim já se conhecia tanto. Não devíamos desperdiçar energia em ofícios vãos, preocupações metafísicas, o segredo dos astros, a fofoca da esquina. Que vivêssemos! Vivêssemos! Vivêssemos! Só isso!
 
Ela não fraquejou nem quando a carruagem parou na entrada do beco. O Dono do Mundo desceu reclamando suas carícias. Ele desejava ter aquela mulher que tantos tinham. Ele começou oferecendo dinheiro, joias, roupas, viagens ao exterior. Ela disse não a um homem que não estava acostumado a ouvir essa palavra tão pequena na forma e tão grande em sua significação. Ele ofereceu toda a sua fortuna e ouviu outro não. 
 
Por fim, ofereceu apenas o seu amor. Quando ela duvidou disso, ele passou à chantagem. Colocou todos nós, os mendigos, como reféns. Ele só queria uma noite de amor, senão mandaria nos matar. Ela olhou o Dono do Mundo por longo tempo. A limpeza de suas ricas roupas a enojava. Seu perfume caro causava náuseas. Seu sorriso com todos os dentes lhe dava repugnância. Ela nos olhou e sorriu. Aceitaria aquela tortura por nós. E nós, covardes, não fizemos um gesto de impedimento. Também podíamos tão pouco. Ele apenas anteciparia a matança. 
 
“Ele fez tanta sujeira / lambuzou-se a noite inteira” e foi embora, nos deixando vivos. Ela nos abraçou e abençoou nosso cheiro azedo, nosso hálito de cachaça, tabaco e fome. Aquele homem que era dono de tudo não era nada perto de nós. E se a cidade toda quiser, um dia, apedrejá-la vai encontrá-la subindo aos seus céus, como uma santa, levando pelas mãos todos os perdidos.
 
Ronaldo Rodrigues
*Geni e o Zepelim – Letícia Sabatella (Chico Buarque):
  • Formidável…!!!
    O autor espreme dentro de um caldeirão toda a perspicácia da letra da Música Geni do fora de série Chico…e retira um Conto Supimpa…recebe excelentes ilustrações e a cereja do bolo… Letícia Sabatella…
    I n t e r p r e t a t e a t r a l m e n t e … A Canção.
    Aplausos….de pé.

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