NOVE NOITES – Conto sensacional de Fernando Canto

Conto de Fernando Canto

1

A primeira noite tem um nome: chama-se Obeda. Ela é homônima de uma lua cheia. Como todas as luas cheias ela surge risonha, aparentemente bem-humorada.

Estamos na terra dos sedentários lavradores Pernas-de-Pau, próximos a um quase inacessível monte de cristal espelhado que se interpõe e se protege por um vento gritante e avassalador. Aqui, o Grande Peido de Deus, estrondoso e respeitável por natureza, se espalha com o orvalho da madrugada, perfumoso, todos os dias.

2


A segunda noite não tem nome.
Seres-Rodas espiam meu comportamento, eu intuo, e os daqueles que estão comigo neste ambiente cegante.

3

Na terceira noite há um farfalhar de asas.
Um homem – um herói – acende um charuto e o atira em direção à floresta. Lá adiante o barulho de uma explosão ensurdece a todos nós que, estupefatos, vemos fugirem, voando, os mesmos demônios que nos atormentam em nossas noites de sonho. São os pesadáctilos.

4


A quarta noite é um mistério.
Uma moça linda é vista nesse território. O povo fala que ela é filha de um poderoso comerciante estabelecido acima das Cachoeiras Estrondosas. Grupos de jovens viciados procuram por ela em vão, ávidos com a possibilidade de ganharem alguma recompensa para poderem beber caxiri, fumar liamba ou cheirar rapé de paricá com pó de ostra calcinado… essas coisas todas.

5

A quinta noite de lua é a da beleza.
Lânqui, meu tio, a vê primeiro. Na terceira pequena queda d’água da curva do rio.
Ele avisa meu pai e a mim assim que aporta no cais de nossa casa. Vamos até lá. Ela está esplendorosamente nua, nadando, e não percebe nossa silenciosa presença. É linda, a moça. Tem um corpo pálido e roliço e se banha, na sua inocência, como uma deusa em seu nicho de adoração. Eu espero a próxima noite, pois nossos dias são inúteis. Nossas peles não suportariam os sóis. E a utilidade da noite é a nossa condição de felicidade

6

A sexta noite é a do desmascaramento.
Meu pai e Lânqui, o herói, se entreolharam e deixam suas roupas penduradas em uma árvore. Preparam-se para acender seus charutos explosivos quando os interrompo.
– Não matem a moça, por favor, falo baixinho.


Meus parentes se voltam lentamente para mim, com os rostos vazios, sem olhos, narizes, bocas e sobrancelhas. E sem as escamas que antes cobriam seus belos e brilhantes rostos, e que agora parecem fazer parte das roupas penduradas na árvore.
Sinto um arrepio percorrer todos os tutanos.


Os charutos, porém, já estavam acesos. Faltava colocar os rostos para tragá-los, porque era assim o procedimento ritualístico correto antes das explosões. E a moça está lá no rio, na sua inocência, prestes a ser detonada pelos tauaris dos heróis.

7

A sétima noite passa mais rápido que as outras. A lua Obeda brilha muito e faz a terra girar tão ligeiro que estonteia.
Mais que depressa salto sobre eles e tiro suas roupas e a pele facial dependuradas nas árvores. Elas pulam em meus braços, parecendo ter vida própria. São como máscaras vivas pedindo seus corpos, protestando e se enrolando em minhas mãos. Atiro-as no meio do rio e depois as recolho num saco de sarrapilha que uso para guardar caças. Chamo a moça, que está assustada e sem entender nada. Ela vem até a mim, colocando às pressas um vestido vermelho. Eu a tomo nos braços amorosamente e fujo com ela antes de ouvir a explosão.

8
A oitava noite é lenta e já dura quase quinze anos. Vivemos felizes.
Na margem esquerda do rio vejo meu filho correndo e gritando que eu estava em perigo. Ele salta sobre a canoa de meus perseguidores e pega sua mãe e eu para fugirmos em nossa ubá. De todos os lados surgem pessoas como por encanto, que se põem a jogar seixos sobre nós, na tentativa de ajudar seus heróis, que agora eram xamãs mais poderosos ainda e estavam, há tempos, em busca de suas roupas. Mas estavam muito idosos e secos.


Rapidamente apanho um velho saco de sarrapilha onde guardava há quinze anos aqueles despojos nojentos e o jogo no rio para atrasar a perseguição.
Enquanto eles nos atiram pedras vejo meu pai e meu tio Lânqui pularem n’água às cegas, para apanharem suas roupas e faces, que por sua vez se enrolam e se debatem, ganhando vida própria dentro do rio. Aprecio de longe: os heróis se renovam em suas roupas e máscaras.
Ocorre, porém, uma ressonância de odor delicioso trazido pelo vento. O Grande Peido de Deus, cheiroso por natureza, se espalha com o orvalho que já começa a cair. Fujo, para longe com a minha mulher e meu filho.

9


Na nona noite ressurge Obeda.
Deparo com uma cordilheira de espelhos.

– E agora? Pergunta meu filho. – Vamos atravessá-la, respondo.
Minha linda mulher, que pouco fala, me diz: – Ela não existe. São as lágrimas empedradas do meu povo sofrido que espera por mim além das cachoeiras.

– Sinto uma grande coceira no pescoço, diz meu filho, mudando o assunto. – Eu também, digo-lhe com certa agonia, esfregando e lanhando meu rosto.

A mulher entra no rio para se banhar e nos convida, nos informando da tepidez da água. Tiramos nossas roupas e as dependuramos em uma árvore.

A vontade de fazer e de fumar tauaris é irresistível, apesar de nunca termos experimentado essa arte xamânica. Eu olho para o meu filho e ele me olha estranhamente. Estou sem rosto. Ele também. Não nos reconhecemos naquele momento. Eis que sentimos em seguida, novamente, o estrondo e o aroma do Grande Peido de Deus que vem das montanhas.
Desisto de acender os tauaris e visto minhas roupas.


Quando a noite ameaça descobrir seu pálido lençol, enormes pesadáctilos levantam voos das frondes das mais altas árvores e Seres-Rodas sobem a montanha de cristal deixando rastros de fogo, com grande esforço.
Eu e meus familiares sorrimos felizes nesta longa noite, graças à fragrância providencial do Grande Peido de Deus.

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