O AMOR EM TEMPOS DE PANDEMIA – Conto de Osmar Júnior

Conto de Osmar Júnior

Aquele sítio abandonado era como que mal assombrado. Entrávamos por uma porta de ferro amarrado com arame. O vírus deixara tudo deserto, sem pessoas. Ali já fora local de festejos, pois havia restos de lixo como se tivessem desmontado um grande palco com cenário e luzes, pedaços de coisas sem sentido, um cemitério de objetos onde as coisas não se encaixavam.

Era tão abandonado que achamos na casa um quarto com uma boa cama, espelho, guarda-roupas com tudo que precisávamos, lençóis, colchas…enfim, a energia funcionava e achamos também um gerador. Isso era importante, pois a energia faltava por dias. Deixamos o resto da propriedade do jeito que encontramos, como se ninguém ali habitasse.

Então passamos a fugir pra lá. Passávamos o tempo fazendo amor e assistindo velhos filmes em uma TV com um DVD que ficou no espólio daquela família, cujos membros tinham morrido todos, todos mesmo. Às vezes dormíamos, outras vezes voltávamos para nossas casas com os fantasmas de nossos entes. Era uma volta triste, mas por algum motivo nós fazíamos aquilo numa espécie de tradição, de culto à morte e trégua para o nosso sexo exagerado sentir saudade.

Era comum o desapego material e não tinha desemprego. Na verdade desapareceu a ambição e o egoísmo, mesmo assim ficamos um pouco arredios naquela cidade quase fantasma. Homens e mulheres pararam de ter filhos, eram estéreis, silenciosos e tristes. Um departamento público funcionava com uma só pessoa. Um voo por semana, às vezes nenhum, com poucos passageiros em avião pequeno. O abastecimento de mercadorias era feito por embarcações piratas. Aquela ilha era tão triste e vazia quanto Chernobyl, não tinha festas, ninguém cantava.

Ela me perguntou sobre o meu dia. Eu apenas disse que o cara da funerária tinha me falado que não existia mais outras doenças, a morte tinha chegado a um estágio de banalidade, mas a maioria morria da peste ou de depressão, muitos eram os suicídios, alguns à beira de suas próprias covas.

Foto: Estadão

Era algo que fazia desaparecer sentimentos e lágrimas. Eram sacos plásticos para sepultar pessoas, não rezávamos, perdemos Deus de vista, apenas levantávamos a mão como sinal de adeus, enquanto o carro fúnebre passava.

Inventamos uma espécie de arqueologia, eu e minha namorada, entrávamos nas casas fechadas de famílias que morreram ou abandonaram e foram para cidades mais populosas. Olhávamos as histórias descobríamos as verdades e ligações familiares, como romances secretos e outras curiosidades. Era uma romântica invasão de privacidade.

Nós perdemos tanta gente naquela ilha… ficávamos lembrando dos conhecidos e dizendo: “Lembra do fulano?” “Sim, quando ele morreu?” “Não lembro”… Nós continuávamos vivos e a cada dia mais jovens. Éramos dois fantasmas e não sabíamos.

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