O amor pela arte que transforma e faz loucuras

Por Rita Torrinha
Fotos: Max Renê 
Até onde vai o limite do amor pela arte? Para os integrantes da Cia Cangapé, entidade cultural amapaense, esta questão é impensável. Na última terça-feira, 26 de maio, os integrantes inauguraram o prédio próprio do Centro de Cultura da Companhia, no bairro Araxá, com roda de capoeira, apresentação circense, música. Para que o sonho se tornasse realidade, uma dupla de “loucos” abdicou do próprio lar, para oferecer sua casa à comunidade do bairro Araxá e de todo o Amapá, pois a ideia é que ali se socialize cultura, nas suas mais diversas linguagens e pensamentos.   

Os loucos, loucos pela arte, é o casal Alice Araújo e Washington Silva. Eles ofereceram a casa deles para ser transformada no espaço do grupo ao qual ajudaram fundar, e passaram a morar de aluguel. Mas a história não é só deles, é de um grande grupo de amigos que apostaram na realização de um sonho em comum.
“Quando a gente começou a construir, e nossa casa foi jogada ao chão, teve um episódio que me marcou muito, nunca vou esquecer. A minha filha perguntou: Pai, o que fizeram com a nossa casa? Eu não sabia como explicar para ela que esta casa não era mais só dela, não era mas só nossa, mas de quantas crianças dessem aqui dentro”, conta Washington, emocionado.
Foram seis meses de construção, para abrigar o Projeto Corda Bamba no Equador Oficinas de Circo, que ensina crianças e jovens as modalidades arame, acrobacias, perna de pau, clown, tecidos, corda indiana, malabares, monociclos.
Pra o sonho virar realidade entraram em cena os construtores Washington, Tiago, Nilson, Emerson e Mauro. Eles suaram…pelas mãos deles cada tijolo foi colado, cada parede foi erguida, cada ponto de luz colocado, enfim, tudo foi construído por eles, com outra ajuda tão incansável quanto: a do seu José Tadeu. O mestre de obras é pai de Alice. Ele chegou a perguntar à filha se ela era louca em destruir a casa dela para erguer outro prédio que, a partir dali, seria “público”. Inicialmente deu pra trás, foi contra, no entanto, como todo pai, acabou embarcando nos sonhos da filha, e se juntou ao grupo dos loucos sonhadores. Juntos, de segunda a segunda, manhã, tarde e noite, varando madrugadas, o pequeno grande centro de cultura da Cia Cangapé foi erguido.
O espaço não está finalizado, mas está pronto para fazer o que se propõe: socializar, difundir, integrar, movimentar a cultura, ajudar famílias, formar cidadãos, renovar a expectativa de vida em crianças que antes só conheciam as mazelas do bairro onde moram. Hoje, o Araxá tem um ponto que só traz frutos positivos e que dignifica seus moradores.
Para quem utilizava espaços de escolas, igrejas, associações e até o prédio da polícia para reunir a comunidade nesse projeto de alcance social, a conquista da Cia Cangapé representa mais que um espaço próprio, representa a decisão de viver pela/e da arte, a busca por mudança de vida dessas centenas de crianças e adolescentes e a desmistificação de que bairro periférico se resume a perigo. Essa é a vontade de Alice:
“Pra gente é muito importante que saiam outras matérias sobre o Araxá. Aqui é perigoso sim, como em qualquer outro bairro, mas temos muita gente digna, trabalhadora e crianças de muito talento”. Recentemente Alice foi aprovada no concurso público estadual para professor, mas ela jamais esquecerá que durante toda a vida foi a cultura que sustentou sua família. A ela, a sua pequena Letícia, de 3 anos, que já se aventura nos aparelhos e nas atividades do grupo, e ao marido, Washington, fundador do grupo.
O sonho sonhado por todos virou equipe organizada
Na Cia Cangapé, para executar o projeto Corda Bamba na Linha do Equador, foi montada uma equipe na qual cada um tem sua função, e se torna indispensável: Naldo Martins (audiovisual, cineclube), Alice Araújo (coordenadora geral do projeto), Tiago Melo (suporte aos oficineiros, montagem, manutenção), Paulo Padovani (pedagogo, responsável pelo acompanhamento escolar da criançada), Marcelo Martins (criação), Rafaela de Senna (com formação nos cursos de letras e artes, ficará responsável pela biblioteca), Keila Moreira (na coordenação do projeto também), Nilson Miranda (apoio aos oficineiros), Jones Barsou (oficineiro de circo), Emerson Rodrigues (oficineiro de circo), Cleber Barbosa (sonoplasta e coordenador), Mauro Santos (tesoureiro e coordenador), Ranna Martins (atriz e membro fundadora), Raison Silva (colaborador do grupo) e Washington Silva (presidente do grupo, produtor, idealizador, oficineiro, entusiasta).
Os filhos da arte
Diogo Saraiva, 14 anos, está há dois no projeto, chegou verde e hoje tem porte atlético, é disciplinado, atencioso e com muita vontade de aprender. “Quero seguir o exemplo do Emerson, e chegar, quem sabe, no Rio de Janeiro, por isso me empenho ao máximo, amo o que faço e quero crescer”. Diogo também pensa cursar odontologia, mas sua primeira opção é o universo circense.
Vera Cristina (30) é a mãe de Diogo, acompanha a ele e os outros dois filhos que também participam do projeto, Danilo, de 8 anos e Rômulo, de 12. Os três estudam a tarde, e ao chegar em casa só dá tempo de tomar banho, comer algo e bater pé rumo a Cia Cangapé. “O projeto é maravilhoso, acho que o único dentro do bairro que tem atividades para as crianças se distraírem. Meus filhos são responsáveis, aprendem muito aqui, e é o lugar onde eles mais gostam de estar. Choram quando não podem vir as vezes por algum motivo de doença”.
Emerson Rodrigues é o ídolo citado por Diogo. Os seus primeiros passos no Teatro foram aos 14 anos – na igreja e na escola. É da primeira geração da Cia Cangapé, onde aprendeu e apaixonou-se pelo circo. A dedicação lhe rendeu frutos antes nunca imaginados. Emerson foi o primeiro amapaense selecionado para estudar na Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro, instituição onde todo artista dessa área idealiza chegar. “Fiz o curso básico de circo lá, mas o custo ficou caro, e em 2012 surgiu a oportunidade de voltar pra minha terra e trabalhar no Cangapé. Voltei, e hoje é como se eu estivesse retribuindo e contribuindo com tudo o que esta comunidade me ofereceu”.
Os dois filhos de Rosenilda Miranda também estão no projeto, Pedro Lucas (13) gosta de fazer rir, é palhaço; e Pedro Gabriel (11) optou pela acrobacia e malabares. Eles estão desde o início do projeto, que começou há 8 anos. A mãe se envolve pra valer nos sonhos dos filhos, é uma das colaboradoras assíduas, acompanha e ajuda no que pode. Como ela, outros pais e moradores da comunidade tornaram-se colaboradores da Cia Cangapé.

“Fico muito emocionada, meus filhos começaram quando o projeto funcionava no centro comunitário e na Polícia Interativa, e de lá pra cá evoluíram imensamente. Quero um futuro bom pra eles, uma profissão que lhes sustente, sei que na cultura tudo é muito difícil, mas se optarem por ela, vou apoiá-los da mesma forma, com o curso de teatro na Unifap temos mais uma opção, e quando apertar, vamos complementando como der, com outra profissão, quem sabe, mas sempre colocando o circo do lado”, diz a mãe, emocionada.
Circo para todos
O projeto Corda Bamba na Linha do Equador nasceu em 2009, sem incentivo público, feito pelos fundadores do grupo, oriundos de outras formações teatrais. Em dois anos sequenciais a história começou a mudar, o projeto foi aprovado pelo Prêmio Carequinha Estímulo ao Circo, da Funart, nos anos de 2011 e 2012. E em 2013 foi a vez do global Criança Esperança patrocinar o projeto, que está sendo executado este ano. Com duração de 8 meses, 100 crianças serão integradas nas ações de circo, teatro, atividades literárias, cineclubes. Mas desde sua fundação, mais de 400 já passaram pelo projeto.
Uma história de amor sem fim
O amor de Washington pela arte começou quando ele tinha 16 anos. Sua família foi uma das milhares de nordestinas que veio para o Amapá, no início da década de 90, tentar vida nova. Washington é de uma cidade pequena, São José do Mipimbu, no Rio Grande do Norte, comparada em tamanho ao município de Santana. Chegou ao Amapá aos 14 anos e as linguagens culturais desde então fazem parte da sua rotina. A família retornou para o nordeste, mas ele, daqui, não sai mais não. “O Amapá é a minha terra, aqui conquistei tudo o que tenho, daqui tive a oportunidade de viajar por todo o Brasil, com a minha arte, e aqui também constituí minha família, que é meu porto seguro”.
Qual o limite do amor pela cultura? Ah!! “Depois de coletivizar a nossa casa e ir morar de aluguel por acreditar numa proposta, não sei não qual o limite. Acho que não tem, porque a arte está no nosso sangue, é a nossa vida. Nossa casa própria? Temos mãos e pés para trabalhar e adquirir uma nova”, finaliza com os olhos marejados, Washington Silva.
O Centro de Cultura da Cia Cangapé, onde funciona o projeto Corda Bamba na Linha do Equador, está localizado na 4ª Avenida do Araxá, nº 470. Vai lá conhecer.

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